O caldeirão que o diabo abominou

Por Fernando Soares Campos.

Há pouco mais de cem anos, bem no final do século XIX, ocorreu a Guerra de Canudos, quando, depois de algumas tentativas, finalmente tropas federais destruíram uma comunidade no interior da Bahia, matando seu líder, o beato Antônio Conselheiro, e milhares de resistentes, restando apenas alguns poucos idosos, mulheres e crianças. Cinco anos depois, Euclides da Cunha lança “Os Sertões – Campanha de Canudos”, e só a partir do lançamento dessa obra, provavelmente devido ao interesse de um editor que enxergou nela um grande filão, a história de Canudos chegou até os dias atuais. Certamente muitos pesquisadores se dedicaram ao esclarecimento dos fatos; mas, sem “Os Sertões”, talvez Canudos fosse apenas uma história de gente antiga, que não tem o que fazer e fica por aí assustando crianças que fazem xixi na cama.

Euclides da Cunha, na condição de correspondente de guerra do jornal O Estado de São Paulo, foi o “Repórter Esso” de Canudos: testemunha ocular da História. Enquanto os jornais das grandes cidades incitavam o novo governo republicano contra a resistência dos “monarquistas” de Canudos, Euclides da Cunha registrava a carnificina cometida contra um povo relegado ao abandono e à miséria, que se perpetuam através dos tempos, monárquicos ou republicanos.

Sobre Canudos, quase todo brasileiro conhece alguma coisa que seja, mesmo superficialmente, visto que, além da obra de Euclides da Cunha e tantas outras nela inspiradas, mais recentemente o filme Guerra de Canudos foi um grande sucesso de público e palpites da crítica, além de ter sido premiado em importantes festivais. Também muitos são os vídeodocumentários sobre a Guerra de Canudos; e a maioria dos professores de História recomenda a obra euclidiana aos seus alunos.

Porém, se o episódio de Canudos é conhecido mundo afora, principalmente através de “Os Sertões”, o mesmo não ocorre com acontecimentos idênticos que também tiveram como palco os sertões nordestinos, como, por exemplo, a destruição da comunidade Caldeirão da Santa Cruz do Desterro, no Sertão do Cariri (CE).

Em meados dos anos 20, José Lourenço (foto ao lado), um beato que foi preso por pregar em praça pública, acabou sob a proteção do Padre Cícero do Juazeiro, que lhe concedeu o direito de habitar uma propriedade abandonada, num pé da serra. Não demorou muito, o beato atraiu cerca de 500 famílias para o local, onde fundaram um vilarejo, a comunidade Caldeirão, no Sertão do Cariri. O vilarejo prosperou, com suas casinhas simples, igrejinha, escola, trabalho, atividades culturais, religiosas e de lazer, tudo sob sistema de mutirão, sem qualquer ajuda externa. A comunidade era formada por retirantes de diversos estados nordestinos.

Caldeirão tornou-se uma comunidade auto-suficiente, até mesmo ferramentas de trabalho eram fabricadas no local, algumas foram desenvolvidas apropriadamente para o trabalho em condições peculiares. Sobre a agricultura, remanescentes daquela experiência relatam que tudo era tratado de forma ecologicamente correta, atentando-se para a preservação do solo, dos mananciais hídricos, da fauna e flora, cujas explorações atendiam às normas específicas da comunidade. Criações de bovinos e caprinos garantiam o fornecimento de carne e leite, que por sua vez geravam a produção de charque, queijo e manteiga, enquanto as peles se transformavam em calçados, cintos, bolsas e artesanatos. A produção atendia ao consumo interno, e o excedente era vendido nas cidades vizinhas, principalmente nas prósperas Juazeiro e Crato, gerando receita para a aquisição de produtos necessários à sobrevivência naqueles confins.

No Caldeirão, a terra e os meios de produção eram de propriedade coletiva… Epa! Acho que foi aí que o bicho pegou! O leitor também já deve ter percebido o que deve ter acontecido com uma comunidade com essas características, na primeira metade do século 20.

Massacre de Caldeirão

Os coronéis da região, ricos fazendeiros, eram detentores de grandes fortunas, ostentavam fabulosos patrimônios que incluíam: terras, casarões, gado, engenhos, trabalhadores em regime escravo e até alguns políticos amestrados. Delegados e juízes também podiam ser considerados propriedades de alguns desses senhores da vida e da morte. Nesse contexto, prosperava uma comunidade formada por pessoas que ali chegaram arrastando corpos desnutridos, expressando abatimento moral e desesperança, como em “Retirantes”, quadro de Cândido Portinari.

Em 1936, Caldeirão se distinguia como uma comunidade relativamente próspera. Foi aí que os coronéis da região começaram a sentir dificuldade de conseguir mão-de-obra barata, trabalhadores semi-escravos. Logo se iniciou uma campanha contra aquilo que as oligarquias regionais chamavam de “uma nova Canudos”. Não demorou muito e o beato José Lourenço e seus seguidores foram perseguidos sob a acusação de “prática de comunismo primitivo”.

Depois de intensa campanha, a ditadura getulista autorizou a invasão da comunidade Caldeirão pelas forças da Polícia militar do Ceará e do Ministério da Guerra. Seus crimes: haviam encontrado uma maneira de sobreviver à seca, à fome e ao coronelismo, apenas unindo forças e pacificamente trabalhando a terra. Porém, ao contrário do que se propagava, a comunidade não dispunha de armas ou planos para enfrentar os invasores. Caldeirão, ao contrário de Canudos, não ofereceu resistência, exceto alguns gestos isolados de defesa e proteção pessoal sob impulsos do instinto de sobrevivência. Quando da invasão, os armazéns da comunidade encontravam-se abarrotados de algodão, milho, feijão, arroz, rapadura e farinha. Havia máquinas e objetos importados. Tudo foi destruído, inclusive as novas plantações e muitos animais. As mulheres foram estupradas, e os objetos pessoais de valor foram levados como prêmios de guerra.

Sobreviventes da comunidade Caldeirão, entre eles o beato José Lourenço, reorganizaram-se na Chapada do Araripe (CE), fundando nova vila, com a mesma orientação comunitária do Caldeirão. Logo, esta também foi considerada um embrião do “comunismo ateu” que se instalara do outro lado do mundo e, na visão tosca dos fazendeiros, ameaçava migrar para aquelas bandas. Desta vez os membros da nova comunidade se prepararam, ainda que de forma rudimentar, para a luta de resistência armada. Na Serra do Araripe as forças de repressão usaram aviões para bombardear um grupo de resistentes armados de peixeiras, foices, facões e espingardas de caça. A Polícia Militar do Ceará e o Exército getulista destruíram a vila e enterraram mais de mil mortos em valas comuns.

Protegido pelos seus seguidores, novamente o beato José Lourenço escapa e se refugia em Pernambuco, seu Estado de origem.

Tentativa de resgate da história

“A Universidade Regional do Cariri (URCA) planeja percorrer os caminhos trilhados pelo Beato, na busca de locais para implantação de uma sociedade solidária. A URCA pensa, também, revisitar as trilhas utilizadas por José Lourenço, nas suas fugas das forças policiais. Por conta disso, já em outubro de 2005, uma equipe da URCA refez o itinerário de José Lourenço, na fuga do Caldeirão até sua nova morada: o Sítio União, localizado no município de Exu (PE). Com a permissão do atual dono da propriedade, a equipe percorreu o local, em busca de algum vestígio que lembrasse a passagem do Beato por aquele lugar. Infelizmente, somente o alicerce do engenho, o açude e um depoimento de Zé de Teresa, neto de uma testemunha da época, resistem ao processo de esquecimento da memória de José Lourenço.”(*)

A imprensa, sob a censura do DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda, do Governo Vargas), quase nada publicou sobre os massacres, e mesmo as matérias obscuras que instigavam as autoridades contra as comunidades sumiram das redações, apagaram o pouco que haviam escrito sobre essa história, um importante capítulo das lutas populares no Brasil.

À comunidade do Caldeirão faltou um Euclides da Cunha para registrar a covardia, até mais brutal que em Canudos, pois o arraial baiano resistia às ofensivas: o fracasso da primeira expedição militar contra Canudos rendeu aos conselheiristas as armas do contingente que investiu contra a comunidade; o armamento adquirido no primeiro confronto serviu para vencer as tropas das duas expedições seguintes e para lutar bravamente contra a quarta expedição militar, aquela que finalmente destruiu o sonho de milhares de pessoas que insistiam em sobreviver com dignidade.

Esta é apenas uma introdução à história do Caldeirão que o diabo abominou.

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Ilustração: AIPC – Atrocious International Piracy of Cartoons

PressAA

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