Por Bruno Lima Rocha.
Iniciar um debate como esse é sempre um tema delicado. Nos espaços onde publico e circulam ideias por mim difundidas, percebo que as críticas são bem recebidas e, ao mesmo tempo, posso estar abrindo feridas políticas com interpretações que podem ser bastante sectárias. Ainda que reconheça este risco, estou abrindo uma nova série, compartilhando tanto a crítica à nova direita que cresce na onda reacionária a tomar conta de parte do Brasil, como fazendo a crítica por esquerda, de forma, mas sincera.
Inicio pelo óbvio. Por mais boa vontade e sinceridade política que tenham centenas de milhares de militantes contra o golpe, não há como varrer as práticas políticas condenáveis para debaixo do tapete. Entendo que o abandono de mínimas posições classistas levou a uma espécie de paralisia política, onde o mecanismo de “cálculo político” operado pelos oligarcas de sempre, entrou na mentalidade da direção do partido de governo (PT) e seus aliados, de modo que contas de mal menor estivessem sempre na ordem do dia. Não cabe neste primeiro momento apontar supostos “erros ou acertos” dos governos de Lula e Dilma e sim debater, a dimensão estratégica, ou a ausência desta dimensão, quando apontada ao médio e longo prazo.
Neste texto, levamos em conta o conceito de André Singer a respeito do lulismo, considerando-o um pacto conservador, um jogo do “ganha-ganha”, com as seguintes características: o Brasil aproveita o crescimento econômico chinês e indiano; tenta estabelecer uma aliança de classes com os campeões do capitalismo nacional; não atinge de forma direta os interesses do capital financeiro e especulativo; aposta na política de exportação de commodities agrícolas, minerais e extrativistas; e, simultaneamente, abre cunhas de alianças com setores reacionários, em troca da gigantesca promoção de melhora nas condições materiais de vida. Logo, o que pode se observar é que, embora as mudanças materiais tenham sido consideráveis, não houve alteração nas estruturas de poder assentadas no Brasil, tanto àquelas de nível doméstico como na correlação com as forças externas. Logo, por mais que tenhamos praticado uma correta política externa de tipo “autonomia pela diversificação e inserção soberana”, a postura nacional e internacional foi coerente com o pacto de classes. Assim, tanto a inserção soberana no cenário internacional é o mal menor e não uma proposta de mudança na ordem mundial, como era nos anos ’80 do século XX; como aceitar a melhoria material como uma espécie de solução mágica para problemas estruturais de dominação foram o cadafalso da política lulista no Brasil.
Ao promover a melhoria da condição de mais de 44 milhões de pessoas, o que seria minimamente desejável seria a afirmação de estruturas de contra-poder, ou ao menos, uma capacidade de mobilização popular promotora de um poder de veto das maiorias por sobre os acórdãos oligárquicos e o viciado jogo burocrático-institucional. Ao contrário de fazer o afirmado aqui, o partido de governo reforçou o poder de seu líder político e eleitoral (Lula) e apostou toda a acumulação na vitória pelas urnas e não na construção de um novo consenso político-cultural, entregando a ideia de hegemonia societária para as estruturas pré-existentes. Deste modo, a inação levou a que nenhuma das estruturas centrais de poder no Brasil fosse alterada, ao contrário, se expandiram sob os narizes dos dirigentes petistas, tais como: o agronegócio e latifúndio; as “igrejas” neopentecostais; o poder da mídia corporativa; a financeirização da economia brasileira; a concentração econômica nos oligopólios nacionais (através de uma espécie de Bismarckismo tropical, já deveras elogiado por Eike Batista); a presença de capitais transnacionais nas telecomunicações; a divisão de poder no mundo do trabalho com as centrais pelegas; loteamento do primeiro, segundo, terceiro e quarto escalões do governo federal com oligarquias mercenárias; e, não menos grave, a negativa em modificar minimamente as instituições de segurança de Estado, verdadeiras máquinas de matar a própria população, acumulando entulho autoritário e violência endêmica na base de nossa pirâmide social.
Definitivamente, tais práticas de conciliação de classes e acomodação de forças são tão ou mais danosas do que a degeneração promovida pelo loteamento e rateio de práticas corruptas, ou do silenciar de investigações que poderiam cortar a cabeça da serpente, como as operações da PF Macuco, Farol da Colina, Chacal e Satiagraha. Para desespero de centenas de militantes com boa vontade, são as relações estruturais e as práticas políticas as atitudes definidoras da balança do poder interno e não, algumas acertadas políticas públicas, como as de renda mínima, de reconhecimento ou expansão das bases do ensino público.
A autocrítica necessária ou a desconfiança permanente
Expostas as feridas, é preciso falar em linguagem direta. Considerando tudo o que fora citado acima, entendo que, ou os dirigentes do PT, de seus partidos aliados (como o PC do B), das centrais sindicais que apoiaram o lulismo (como CUT e CTB), e setores afins fazem uma profunda autocrítica de suas práticas e alianças dos últimos 14 anos, ou toda esta indignação coletiva contra o golpe será jogada pelo ralo na próxima agenda eleitoral e eleitoreira. Esta crítica também vale para os movimentos componentes da Frente Brasil Popular e Frente Povo Sem Medo. Se este não é o momento para crítica e autocrítica então quando será? Para quem tem leitura da história política brasileira ou vivera o fim do ciclo populista, peço que seja lembrado o triste papel do PCB após 1964 e seus rachas sem fim até em função de sua inação diante do golpe evidente.
Afirmo que nem tudo está perdido e que há uma esquerda no Brasil, eleitoral e também não eleitoral e não é a este último setor, ao qual pertenço, para onde este texto se dirige. Há uma conta a ser paga e a mesma é salgada. Sei que este tema atinge afetos e amizades, mas o faço de maneira fraterna e direta. Ou a esquerda social restante (como a Via Campesina e as bases ainda mobilizadas da Teologia da Libertação) assume seus erros e parte para um projeto político de democracia com justiça social, pluripartidarismo e igualdade sócioeconômica ou a parcela hoje ainda majoritária (a da centro-esquerda oficialista e de apoio incondicional ao governo que caíra) ficará apelando para debates místicos e escapistas como: “a história não para e as relações são dialéticas” e sem debater a fundo um PROJETO DE PODER. Se este debate não começar a ser feito com a devida radicalidade e lucidez nos próximos meses, repito, toda esta indignação será jogada pelo ralo diante dos oportunismos do próximo ciclo eleitoral dos municípios. O tema é urgente e seguirei neste debate nas próximas semanas.
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Bruno Lima Rocha é professor de ciência política e de relações internacionais.
Fonte: EcoDebate, 07/06/2016) publicado pela IHU On-line, parceira editorial da revista eletrônica EcoDebate na socialização da informação.
[IHU On-line é publicada pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos Unisinos, em São Leopoldo, RS.]