O Hábito

Por Fernando Evangelista.

Eu frequento a mesma padaria, diariamente, há mais de dois anos. A senhora do caixa, com lenço preto no cabelo e camiseta impecavelmente branca e bem passada, repete dia sim e outro também a mesma frase:

– Bom dia. Como vai? Algo mais?

O crachá informa que seu nome é Ana.

Nestes mais de 24 meses, em nenhum momento, ela me viu. Olha os pães e o queijo, a geléia e o leite, embrulha cada qual com destreza, marca o preço num caderno, registra no computador e devolve tudo atenta às mãos do próximo cliente.

Ontem, depois de informado o valor da compra, entreguei-lhe uma nota de cinquenta reais. E ela perguntou, mexendo nos pacotes:

– É débito ou crédito?

Pegou o dinheiro e repetiu a pergunta, colocando a água em outra sacola:

– É débito ou crédito?

– É à vista, respondi.

Ao perceber que tinha feito uma pergunta sem sentido, olhou nos meus olhos e riu:

– Desculpe, é o hábito.

Percebi que aquela mulher de lenço preto no cabelo e camisa branca, tinha olhos verdes claros, muito bonitos. Como se quisesse mudar de assunto, sem jeito e sem segundas intenções, me perguntou:

– É a primeira vez que o senhor vem aqui?

– Mais ou menos, respondi.

Fui embora lembrando-me da cena final do Grande Ditador, primeiro filme falado de Chaplin, lançado durante a Segunda Guerra. A história é uma sátira ao nazismo e ao fascismo. O personagem principal dirige-se à multidão e diz, entre outras coisas: “Não sois máquina, homens é que sois”.

Quantas vezes por dia nos esquecemos disso? Quantas coisas fazemos mecanicamente, sem sentir, sem ver e sem ouvir? Quantas pessoas com as quais convivemos, no trabalho ou em casa, passam por nós sem serem vistas de verdade?

O personagem de Chaplin, em frente à plateia que o ovaciona, consciente de que o discurso está sendo transmitido pelo rádio, dirige-se a Hannah, seu grande amor, de paradeiro desconhecido:

Hannah, estás me ouvindo? Onde te encontrares, levanta os olhos! Vês, Hannah? O sol vai rompendo as nuvens que se dispersam! Estamos saindo da treva para a luz! Vamos entrando num mundo novo – um mundo melhor, em que os homens estarão acima da cobiça, do ódio e da brutalidade. Ergue os olhos, Hannah! Ergue os olhos!”.

O Brasil, dizem as estáticas sociais e econômicas, está saindo das trevas. Mas as pessoas e principalmente os mais novos, com seus iPods, iPads e iPhones – vivem olhando para baixo, sem reparar ao redor, e fazem isso automaticamente, como Ana, a funcionária da padaria, a mulher de olhos verdes claros, olhos que não vêem.

 

Fernando Evangelista é jornalista, diretor da Doc Dois Filmes e colaborador do Portal Desacato. Mantém a coluna Revoltas Cotidianas, publicada toda terça-feira.

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