Por Sindri Eldon.
O vídeo do repórter Sven Bergmann questionando o então primeiro-ministro islandês Sigmundur David Gunnlaugsson sobre suas contas offshore é um documento fascinante. Se assistir com atenção, você consegue ver o momento em que a verdade escondida sobre a Islândia emerge das profundezas. Isso fica escrito na cara de Gunnlaugsson, enquanto sua retórica populista elegante dá lugar à gagueira e raiva indignada, e ele mostra esse lado que sua terra natal já conhecia.
Antes de Bergmann mandar a grande pergunta, Gunnlaugsson é o modelo do estadista nórdico: cheio de tato, erudito e articulado, falando platitudes sobre restaurar a confiança entre o governo e a população — o que é bem engraçado analisando agora.
“Como todas as sociedades nórdicas, acho, damos muita importância a todos fazerem sua parte”, Gunnlaugsson explica pacientemente para Bergmann, que mantém a poker face diante de toda a hipocrisia e condescendência. “A sociedade é vista como um grande projeto de que todo mundo precisa participar.”
Quando questionado sobre suas contas offshore, Gunnlaugsson, claramente catapultado de sua zona de conforto, murmura alguma coisa sobre sindicatos antes de dizer “Essa é uma pergunta incomum para um político islandês. É quase como ser acusado de alguma coisa”.
Não consigo deixar claro o suficiente o quão significativa é essa resposta. Ele já começa mentindo. Há semanas Gunnlaugsson vinha bloqueando repórteres querendo saber sobre suas maracutaias no exterior recentemente descobertas. Além do mais, ele e todo seu gabinete estavam sob ataques de vários meios de comunicação islandeses, por suas ações e decisões, desde que ele assumiu o cargo em 2013. Ele vinha se esquivando de perguntas — e acusações — como essa há mais de três anos.
Então, se ele tinha que mentir, por que escolher essa carta para jogar na mesa? Porque Bergmann é um estrangeiro, e os olhos do mundo estavam em Gunnlaugsson. É fundamental para a direita islandesa manter para o mundo exterior a história que as pessoas da Islândia gostam deles — que os islandeses estão felizes com seu governo. Eles controlam os tribunais e a polícia, e através de uma mistura de recusa teimosa e cara de pau em mimar certos grupos de interesse, eles conseguiram manter a Islândia fora da União Europeia. Resumindo: não há uma autoridade poderosa o suficiente para impedir o que eles estão fazendo, fora, talvez, o tribunal da opinião pública internacional. Assim a direita islandesa, nas décadas de poder quase sem rivais sobre o país, descobriu que era do interesse dela ficar na linha da imagem que a maioria do mundo faz da Islândia: um país de escandinavos felizes, cheio de artistas de vanguarda, homens de negócio e políticos sensatos que se importam com a população, um lugar onde um jornalista nunca insinuaria que um político fez alguma coisa escusa.
Mas a joia da coroa do vídeo é, sem dúvida, quando Gunnlaugsson é encurralado pelo repórter islandês Johannes Kr Kristjansson, que vinha investigando a história há meses. Mesmo quando as perguntas de Bergmann se tornam mais afiadas, Gunnlaugsson mantém a seu comportamento calmo e civilizado. Mas quando confrontado com um rosto conhecido da mídia islandesa, Gunnlaugsson se torna rude, curto e cheio de indignação. Ele mostrou ao mundo o rosto que a Islândia conhecia há três longos anos, e que provavelmente vai continuar a mostrar, já que deixou claro que apesar de ter renunciado como primeiro-ministro, não está saindo da política. A entrevista acaba virando uma repetição de todas as confrontações sérias que a administração de Gunnlaugsson teve com a mídia: ofuscação irritada e reivindicações de vitimização, seguido de choque fingido e interrupção abrupta. Nenhuma resposta clara é dada.
O vídeo captura tão perfeitamente a dicotomia do “político islandês falando com um estrangeiro” versus “um político islandês falando com um local”, que deveria ser mostrado em palestra sobre ciência política e jornalismo no mundo inteiro. O vídeo é um pequeno triunfo do jornalismo, e em qualquer lugar são do mundo, sinalizaria uma mudança enorme. As mentiras foram desnudadas, em vários níveis.
Mas isso vai realmente mudar alguma coisa na Islândia? Duvido. A renúncia do primeiro-ministro é um osso ofensivamente pequeno que os partidos de direita jogaram para o povo. Dois outros ministros de gabinete estão implicados no escândalo, mas não vão renunciar, e Gunnlaugsson pôde escolher seu sucessor: o ex-ministro da Pesca e Agricultura Sigurður Ingi Jóhannsson. A renúncia na semana passada foi uma vitória muito pequena, praticamente a definição de “muito pouco, muito tarde”.
O gabinete inteiro precisa renunciar e novas eleições devem acontecer — eleições que reflitam melhor o desejo das pessoas, não as promessas de campanha vazias que colocaram a coalizão de direita no posto. O apoio ao Partido Progressista foi estimadoem 7,9% depois que a história dos Panama Papers surgiu. Eles já estavam perdendo apoio há uma década, e só conseguiram arrebatar a última eleição com promessas falsas de cancelar as dívidas de moradia, depois que a quebra dos bancos deixou milhares de famílias devendo. Não dá para superestimar o quanto essas pessoas foderam com a Islândia, e vêm fazendo isso há décadas.
O prédio do parlamento está cercado de manifestantes todos os dias há semanas, e o que a Islândia está mostrando em resposta a isso? Nada. Um primeiro-ministro decorativo sendo trocado por outro. O governo parece querer continuar como se nada tivesse acontecido, falando ameaçadoramente de “negócios inacabados” que precisa conduzir, não deixando tempo para ouvir a multidão enfurecida que pede a renúncia de todos.
Protestos similares aconteceram depois do colapso da economia na Islândia em 2008 (que, agora sabemos, aconteceu em parte devido a transações de empresas de fachada, exatamente como a de Gunnlaugsson) e trouxeram o fim do governo de direito, então muitos acharam que a história ia se repetir. No entanto, parece que o governo aprendeu uma lição importante com os protestos de 2008, mesmo que os eleitores não tenham aprendido (eles colocaram os partidos de direita de volta no poder em 2013), e essa lição é: não desistir, não se render. Eles só precisam tapar os ouvidos e esperar que os protestos morram, aí voltam aos negócios de sempre. Afinal de contas, eles têm bancos, hospitais e companhias de energia para privatizar, e um eleitorado para desinformar até a próxima eleição.
Tradução do inglês por Marina Schnoor.
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Fonte: Vice