Por Paula Guimarães.
“Não pensem que o aborto vai ser tão fácil assim, primeiro porque é crime e, segundo, o juiz precisa autorizar. Até resolver isso, ela já estará com mais de seis meses de gravidez”, afirmou um escrivão à mãe de uma jovem vítima de estupro, segundo relato no documentário “O aborto dos outros”. A Norma Técnica do Ministério da Saúde estabelece que a palavra da mulher basta em casos de violência sexual, porém a desinformação, como nesse comentário, é recorrente em muitos centros de atendimento que ainda pedem boletim de ocorrência e até alvará judicial para autorizar o aborto previsto por lei. O substitutivo ao Projeto de Lei 5.069/13, de autoria do deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ), quer institucionalizar essa violência contra a mulher com a exigência de exame de corpo de delito e punição aos médicos e profissionais que prestarem qualquer orientação sobre os direitos da vítima à pílula do dia seguinte e ao aborto legal. O texto, discutido em audiência pública na semana passada, será votado em 6 de outubro, na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC) da Câmara dos Deputados.
“Com o objetivo inicial de aumentar ainda mais a criminalização, o PL propõe impedir a prevenção de gravidez para os casos de estupro, ou seja, retroceder no que hoje é um direito” diz um trecho da carta assinada por oito organizações voltadas aos direitos humanos das mulheres.
A matéria junta no mesmo pacote o código penal e a Lei N 12.845 de 2013, que dispõe sobre o atendimento às vítimas de violência sexual. Seus defensores entendem que a medida evitaria que mulheres “enganassem” o Estado informando ter sofrido violência sexual somente para acessar o aborto legal. Tipifica como crime o “induzimento, instigação ou auxílio ao aborto” com pena de até cinco anos e o “anúncio de meio abortivo” – atualmente considerado contravenção – com pena de até três anos. Altera os artigos 1 , 2 e 3 da Lei N 12.845 de 2013, exigindo como prova da violência sexual o exame de corpo de delito e excluindo os incisos IV e VII, que tratam respectivamente, da profilaxia da gravidez (pílula do dia seguinte) e do fornecimento de informações às vítimas sobre os direitos legais e todos os serviços sanitários disponíveis.
“O que não se pode omitir é que a pretexto de atendimento a mulheres em situação de violência se esteja promovendo o aborto de maneira indiscriminada. Qual seria o problema de mulheres terem que realizar exame de corpo de delito, se elas abrem as pernas quando abortam?” questionou o juiz favorável ao projeto, Rodrigo Pedroso, representante da União dos Juristas Católicos de São Paulo (Ujucasp).
Segundo a deputada Erika Kokay (PT/DF), entre as contradições do projeto está a retirada do acesso à pílula do dia seguinte, que justamente é para evitar a necessidade de interrupção da gravidez. Para ela, o projeto, além de ferir a dignidade humana e cercear o direito à informação, é vago na definição do crime, deixando margem para a prisão de profissionais de saúde – que em sua função ética devem orientar os pacientes – e de qualquer pessoa que exerça seu direito de livre expressão na defesa da descriminalização do aborto.
“É inconstitucional! Abriga dois elementos que são dispares, porque modifica o atendimento às vítimas de violência sexual, tirando o direito à informação e, ao mesmo tempo, criminaliza o anúncio ou incitamento, sem dizer o que é. Ficamos à mercê do poder discricionário do juiz, que a partir de suas próprias convicções, muitas vezes religiosas, poderá penalizar profissionais e mulheres simplesmente porque estão buscando utilizar seus direitos”, afirmou.
A deputada Jô Moraes (PCdoB/MG) se mostrou intrigada com a necessidade dos homens de regularem direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, “não para aprimorá-los, mas para restringi-los”. Para ela, os legisladores deveriam se preocupar em aperfeiçoar o processo de atendimento às mulheres, garantido há 64 anos no código penal. “O objetivo central do projeto é intimidar os profissionais de saúde que eventualmente deem apoio às mulheres. Ao invés de ampliar os cuidados, querem ameaçar a proteção à mulher que eventualmente tenha um aborto espontâneo ou provocado”, pontuou.
O deputado Evandro Gussi (PV/SP), relator do projeto, questionou a possibilidade de que as mulheres vivam sua sexualidade e negou o direito reprodutivo como direito humano. Ele frisou que o aborto é crime no país e, continua sendo mesmo nos casos não puníveis, como estupro e risco de vida à gestante. Assim, mesmo vítimas de estupro, as mulheres seriam criminosas quando recorrem ao aborto legal. “Essa questão de ter direito, me traz uma ideia muito preocupante de que um ser humano pode planejar um outro ser humano. Eu não posso planejar um outro ser humano”, afirmou.
Médicos entre a cruz e a espada
Para Olímpio Barbosa de Moraes, vice-presidente da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo), é preocupante a criminalização de médicos que “prestarem informação ou qualquer auxílio para que o faça”, porque contraria o código de ética médica, no que diz respeito ao direito humano à informação e à vida. Ele teme ser preso, pois não negará qualquer informação que possa salvar a vida de mulheres. “Quando uma paciente pergunta ‘eu tomo Misoprostol ou coloco sonda, se eu colocar sonda o que acontece?’. Eu preciso dizer que a sonda causa infecção e que se ela colocar não deve ficar em casa pois irá perder o útero e morrer. Esse é o dever do médico: salvar vidas. Informação é um direito humano e não pode ser negado”, declarou.
Segundo Olímpio, uma pesquisa da Febrasgo, realizada com 18 mil médicos, indicou que 40% deles já orientaram ou deram informações a mulheres desconhecidas que desejavam abortar e 90% quando se trata de pessoas próximas ou da família. “O código de ética diz que não podemos discriminar. Não podemos ter uma medicina para quem a gente ama e outra para pessoas do SUS”, analisou.
Conforme a Lei N 12.845 de 2013 que dispõe sobre o atendimento às vítimas de violência sexual, a mulher que busca o serviço de saúde precisa assinar três termos, o Consentimento Livre e Esclarecido, em que escolhe por manter ou não a gravidez, o Termo de Responsabilidade, onde declara legítima expressão da verdade e o Termo de Relato Circunstanciado, no qual detalha como a agressão ocorreu. “Além disso, fazemos a ultrassonografia, onde é possível coincidir a data da agressão com o tempo de gestação. Quando a data não coincide, avisamos à mulher e, assim, a interrupção não é realizada”, explicou o médico.
De acordo com a norma técnica, o objetivo do serviço de saúde é garantir o exercício do direito à saúde e seus procedimentos não devem ser confundidos com aqueles reservados à polícia ou à justiça. O código penal não exige qualquer documento para a prática do abortamento, a não ser o consentimento da mulher, que não tem o dever legal de noticiar o fato à polícia. Garante que a palavra da mulher que busca os serviços de saúde “afirmando ter sofrido violência deve ter credibilidade, ética e legalmente, deve ser recebida como presunção de veracidade”.
A via sacra das mulheres vítimas de violência sexual
Uma pesquisa da Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM) mostra que no país todo há 37 serviços ativos voltados para o aborto legal, sendo que sete estados não contam com infraestrutura, ao contrário do que aponta o Ministério da Saúde que lista 62 serviços em funcionamento. O estudo levantou os dados nos três casos permitidos por lei: estupro, anencefalia e risco de morte para a mãe. Das 1.283 pacientes das cinco regiões brasileiras, 40% têm até 19 anos. Em cinco casos, as meninas tinham 10 anos ou menos. Só 10% das mulheres estão na faixa de 35 anos ou mais.
O trabalho apontou que 94% das interrupções decorreram de violência sexual e alguns centros de atendimento fazem exigências fora da lei: em 14% dos casos as mulheres tiveram que apresentar boletim de ocorrência, em 11% foi pedido parecer do comitê de ética da unidade de saúde e 8% só realizaram abortos mediante alvará judicial. Mais de 50 mil estupros foram registrados em 2013, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública mais recente. Pesquisas internacionais apontam que apenas 35% das vítimas procuram a polícia, o que elevaria a estimativa anual para 143 mil estupros no país.
Depoimentos extraídos da Audiência Pública Extraordinária disponíveis na WEB Câmara.
*Paula Guimarães é jornalista e feminista.
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Não surpreende o retrocesso. E a bem da verdade, não foram os primeiros a negar o direito de abortar em caso de estupro. Helio Bicudo, o ”santo jurista” disse numa entrevista sobre o assunto, que ”era muito difícil mulher provar que foi estuprada” (sic). A entrevista já tem anos, ele ainda era o guru jurídico do PT. Na mesa, presidida pela jornalista Mônica Teixeira, estava um médico na defesa do procedimento e, se não me engano, ele era do Hospital do Jabaquara, um dos poucos autorizados a fazer aborto nos casos de estupro, com ordem judicial. Bicudo afirmou que tanto o juiz que autorizava quando o médico que realizava o procedimento, além da vítima, estavam todos cometendo crime, uma vez que a CF88 (lembrando que ele é um jurista constitucionalista), na parte que garante o direito à vida, não fazia distinções entre vidas geradas por estupro ou não, e que mesmo a lei usada pelo juiz para fundamentar a decisão de autorizar, era lei sem efeito diante da lei maior que a CF. Pequem o vídeo da entrevista e confiram.