Homens de bem?

Por Raul Longo.

Me arrepio toda vez que ouço ou leio essa expressão.  E está em toda parte.

Abro minha caixa de correspondência e na primeira já encontro essa foto: dois homens e uma mulher de bem, comemorando o cumprimento da missão de destruição dos homens, mulheres e crianças do mal. Nesse caso não eram os de Hiroshima ou Nagasaki. O bolo comemorativo em formato de cogumelo atômico dessa vez era para os indígenas do Atol de Bikini. Indígenas nunca foram homens de bem.

Nem aqui no Brasil onde apenas serviam de repasto a estupradores e preadores. Como os negros. Onde já se viu negro de bem? Há quem insista em citar Machado de Assis, mas já nisso de ficar lembrando que o maior escritor brasileiro era um negro, há algo de mal, pois porque não se dar por satisfeito com a tão bem resolvida fórmula do saudoso jornalista Ibrahim Sued, o colunista dos homens de bem, ao definir Pelé como o preto mais branco do Brasil?

Enganam-se os que apressadamente concluem que pressinto na expressão algo de racismo. Nem tanto! Mas de faccioso, convenhamos… Se eu sou do bem porque sou o que sou e penso o que penso, quem pensam que sejam os homens do mal?

Um exemplo: quer descobrir as origens da miséria brasileira? Não procure nos famintos, nos marginalizados, nos periféricos e favelados. Mas sim nas instituições, associações, clubes e lojas dos homens de bem.

Ainda ontem, amiga minha que recém retornou de uma viagem à Escandinávia, se escandalizou com a afirmação recorrente em nossos veículos de comunicação de que os impostos brasileiros são dos mais altos do mundo, contando que não pagamos em imposto nem 1/3 do que pagam dinamarqueses, finlandeses, suecos.

“Ah! Mas lá o estado garante saúde, alimentação, educação, moradia, tudo! E aqui, para onde vão nossos impostos?” – se escandalizará o apressado leitor (foi lembrar do Machadão e já copiei o estilo!).

Pergunte-se aos homens de bem!

Claro! Ou aquela mulher que não tem o que dar de comer para seus filhos, alguma vez foi olhada como ser humano pelos cidadãos de bem desse país?  Ou aquela grávida que dá a luz no corredor do hospital, foi tratada como uma cidadã de bem por algum governo desta centenária república? Quando o cidadão no volante olhou para a criança vendendo doce no sinal de trânsito, como uma possível pessoa de bem?

 

Homens de bem não aceitam, sequer, destinar menos de 0,50% de seus rendimentos financeiros para que os demais tenham um atendimento de saúde minimamente humano.

Quem são esses demais? Os que sobram. Os que não são “de bem”. Os que estão de mal com a vida. Os que nasceram na barriga da miséria. Os alijados da…, da…, da DEMOCRACIA.

Sim, porque isto de Democracia é coisa dos homens de bem e os demais só têm de ir lá elegê-los a cada 4 anos. Mas nem isso têm conseguido fazer direito. Ultimamente, ao invés desses demais elegerem homens de bem, têm eleito demagogos, populistas.

Tão néscios esses demais, esses que não são “de bem”, que elegem políticos apenas porque lhes pagam cento e tantos reais para manterem seus filhos nas escolas. Tão estúpidos que se contentam com uma lâmpada acessa de programas demagogos de expansão de fornecimento de energia elétrica, de minha casa minha vida, de garantia de vagas de emprego e em universidades. Mas a que preço? Ao preço dos aumentos dos  impostos aos homens de bem! Aos verdadeiros democratas!

Que democracia é essa em que os “homens de bem” têm de pagar para que vagabundos miseráveis sobrevivam? Que democracia é essa onde o estado, ao invés de se responsabilizar pelas oportunidades a todos, como na Escandinávia, cobra impostos dos homens de bem?

Como na Escandinávia? Mas a amiga visitou os países da Escandinávia e disse que lá os impostos são muito mais altos. Será que não compreendi alguma coisa?

Na verdade isso não importa, o que importa é a democracia. Democracia, sim, como na Escandinávia com suas igualdades de oportunidades e atendimento de educação, moradia, empregos, salários e saúde garantida pelo estado. Mas não esta compulsória onde um homem de bem como o Sr. Silvino Geremia de São Leopoldo no Rio Grande do Sul é multado por dar um “grande exemplo de cidadania” conforme declaração abaixo reproduzida e há anos divulgada entre todas as merdas neoliberais espalhadas no ventilador da internet.

Qual o exemplo de cidadania do Sr. Silvino? Preocupado porque o Estado “não cumpre com sua obrigação de garantir estudo” aos trabalhadores, esse homem de bem deu duas Mercedes para inscrever os funcionários de sua empresa na instituição privada de outro homem de bem de sua cidade, muito provavelmente ambos são frequentadores da mesma agremiação dos homens de bem daquele município.

Diz a entusiasta ventiladora da nota do Sr. Silvino publicada pela Revista Exame que “talvez por iniciativas como essa” a região de São Leopoldo tem um dos menores índices de analfabetismo do país. Pode ser. Mas também pode ser porque as cidades do sul do país sempre foram melhor atendidas pelo governos brasileiros desde quando para cá se investiu na imigração europeia, lá pelos finais do século 19 e início do 20.

Ou será que antes do ¼ de século de existência da Irmãos Geremia Ltda. por lá houveram tantos outros homens de bem como o Sr. Silvino?

Será que mais uma vez eu não entendi alguma coisa?

Fato é que assim não dá! Assim não é democracia! Como pode ser democracia um Brasil onde as cidades do norte-nordeste passam a ter escolas só para os pais das crianças viverem na vagabundagem gastando em pinga os cento e poucos reais que recebem por mês, para eleger demagogos que não selecionam os privilégios dos homens de bem do sul?  Isso é democracia compulsória!

Não é a toa que o Sr. Silvino, indignado, se recusa a pagar um centavo que for para a Previdência! Pois se a Previdência apenas presta atendimento de saúde e aposentadoria, além de administrar alguns outros direitos trabalhistas adquiridos por seus funcionários; ele deu nada menos do que duas Mercedes para a educação de seus 280 funcionários.

Não sei o valor de um Mercedes, mas pelos padrões escandinavos tenho a impressão de que a cotação do produto no Brasil anda hipervalorizada. Ou a qualidade da escola do amigo do Sr. Silvino não é das melhores de São Leopoldo. Não sou empresário e não vou me meter a ensinar o padre a rezar missa, mas me pergunto se não seria mais negócio ele comprar as Mercedes e meter seus funcionários em escola pública?

Afinal, se São Leopoldo tem um dos menores índices de analfabetismo e miséria do país, o ensino público por lá deve valer algo mais do que duas Mercedes.

Mas não pensem que qualifico o Sr. Silvino como homem de bem por mera decisão própria. Quem sou eu para definir quem é homem de bem?

Hoje mesmo já fiquei confuso ao ler uma qualificação ao Itamar Franco como homem de bem do escopo de um Tancredo Neves, por alguém que comprova Lula não ser homem de bem porque Collor subiu em seu palanque e aceitou aliança de José Sarney como presidente do Senado.

Embatuquei! Não terá sido Itamar eleito como vice presidente na chapa de Collor de Melo? E Sarney não foi o vice de Tancredo?

Mais uma vez, tem algo que não consigo entender. Mas percebo porque não posso ser incluído entre os homens de bem.

Só um homem de bem pode definir outro homem como “de bem” e quem são os interesseiros, os beneficiários de sinecuras, os do mal. Sequer é preciso conhecê-los ou saber quem sejam! Ao faro arguto do homem de bem não escapam os que pensam ou não aceitam a correção de suas definições.

E também à imprensa. Sem os homens de bem e a imprensa seríamos capazes de ainda enxergar Pelé como um preto qualquer e não o preto de alma branca, assim devidamente qualificado para ingressar no reduzido rol dos homens de bem.

Pois em 1996, de quando da publicação daquele desabafo do empresário de São Leopoldo à Revista Exame, toda a imprensa brasileira festejou o Sr. Silvino Geremia como homem de bem. Mais recentemente, desde há uns dois ou três anos e até hoje, centenas de internautas ventilam a matéria com o anacrônico intuito de comprovar o acerto em se convencerem pela imprensa de que desde 2003 o governo do Estado brasileiro não é do bem, embora o reclamo tenha sido publicado no século passado, quando o governo e a democracia ainda era outra, bem menos compulsória e mais neoliberal.

Lamentável, porém de fato real, é que apesar do próprio então Ministro da Previdência, Reinhold Stephanes, na edição de 23 de outubro de 1996 da mesma Revista Exame, ainda que lembrando não ser função da Previdência fazer assistência social, considerou como justa a consideração do Sr. Silvino. O então ministro do governo FHC declarou como justa a indignação do empresário gaúcho contra seu próprio ministério, embora tenha ligeiramente faltado com a verdade na afirmação de que Teria mandado dinheiro para fora do País e não estaria me incomodando com essas leis absurdas”, conforme se lê na reprodução do exemplo de cidadania aqui ventilado em atendimento ao pedido mantido na epígrafe do clamor adiante reproduzido.

Bastante sintomática aos homens de bem aquela hipótese aventada pelo Sr. Silvino, mas segundo o Ministério Público Federal nem tão hipotética assim, pois segundo a apelação criminal nº 2003.71.00.048791-5/RS contra o mesmo, ele e seu irmão “alienaram em 11 de setembro de 1996 o controle acionário da empresa nacional IRMÃOS GEREMIA LTDA. para a empresa EVI OIL TOOLS INC, sendo que somente parte da quantia recebida em pagamento foi oferecida à tributação, mantido o restante fora do território nacional, sem ser informado às autoridades monetárias…”. nos Estados Unidos da América, na localidade de Irving, Texas, (receberam) cada um deles, a importância de US$ 1.000.000,00 (um milhão de dólares norte-americanos), quantias estas que não foram objeto de declaração pelos acusados ao órgão fazendário, portanto não oferecidas à tributação, nem informadas para fins de comunicação da manutenção de ativos no exterior.

Mas essa é apenas a ponta do iceberg da cidadania deste alardeado homem de bem perseguido pela compulsória democracia do estado brasileiro. Quem queira maiores detalhes é só consultar o link desta publicação de 12 de janeiro último:
Inteiro Teor.APELAÇÃO CRIMINAL ACR 48791 RS 2003.71.00.048791-5 (TRF4)

www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/…5…/inteiro-teor4 –

 

Imagem do Almirante William HP Blandy, e sua esposa com o contra-almirante Frank J. Lowry, 1946

 

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