Horacio Cartes presidente do Paraguai durante a posse em agosto deste ano
Por Natália Viana
O que levou a maior força antidrogas do mundo a infiltrar agentes no círculo do atual presidente paraguaio Horácio Cartes? Por que o Departamento de Justiça americano oficialmente o considerava líder de “uma das organizações mais significativas de tráfico de drogas internacional”? E o que os policiais infiltrados pela DEA descobriram durante a investigação secreta?
Essas e outras perguntas levaram a Agência Pública a fazer uma série de pedidos pela lei de acesso a informação americana a órgãos do governo daquele país a respeito da investigação, realizada pelo governo americano, sobre Horácio Cartes e seu círculopróximo, três anos antes de vencer a eleição para a presidência do Paraguai.
A base para os pedidos foi um documento impressionante vazado pelo WikiLeaks em 2011, que descrevia os pormenores da operação “Coração de Pedra”, da DEA – a agência antodrogas americana – cuja missão era “interromper e desmantelar a operação de tráfico de drogas e lavagem de dinheiro na área da tríplice fronteira entre Argentina, Paraguai e Brasil, e em outras partes do mundo”. Segundo esse documento, a operação infiltrou, em 2009, agentes da DEA nas empresas e no círculo familiar de Horácio Cartes, empresário do ramo do tabaco que venceu as eleições no Paraguai após o contestado impeachment que destituiu Fernando Lugo, o primeiro presidente de esquerda do país.
Pouco se sabe, além deste documento, sobre os negócios pouco claros do atual presidente do país vizinho. Em 2004, o Banco Amambay, de propriedade de Cartes, chegou a ser investigado pelo Ministério Público Federal do Brasil no esquema conhecido como as Contas CC5 – em que brasileiros eram acusados de evadir mais de R$ 600 milhões do país através da instituição. O caso foi arquivado por insuficiência de provas.
O que todo mundo já sabe …
Na época do vazamento do WikiLeaks, como em todos os outros vazamentos, o governo americano não se pronunciou sobre o documento.
Agora, em resposta ao pedido da Agência Pública, a DEA liberou o mesmo documento, já vazado, considerado internamente como “sensível”. Comprova, assim, a sua autenticidade. Porém, se negou a revelar qualquer outra informação. Pior: o documento liberado apresenta mais de 80% do seu conteúdo censurado (tarjado) – embora o documento esteja disponível na íntegra neste link, para qualquer um ver.
O documento vazado pelo WikiLeaks especifica com detalhes como foi planejada a infiltração da organização de Horácio Cartes em 2009. Em uma reunião entre os dias 6 e 9 de novembro daquele ano, divisões da DEA em Assunção, Lima e Buenos Aires compartilharam informações sobre as investigações já realizadas e planejaram os passos seguintes. A mesma reunião contava, supreendentemente, com a presença de representantes das maiores empresas do mercado internacional de cigarros, British American Tobacco, Reynolds American, Imperial Tobacco e Phillip Morris.
Os agentes da DEA usaram, primeiro, uma “fonte colaboradora da DEA em Buenos Aires e outros funcionários da DEA disfarçados” para infiltrar o “empreendimento de lavagem de dinheiro” de Cartes. O próximo passo do plano era se aproximar de William Cloherty, lobista de Cartes em Washington, e de seus representantes Osvaldo Gane Salum e Juan Carlos Lopez Moreira – ambos hoje na equipe do atual presidente do Paraguai.
O objetivo final da DEA era “interromper e desmantelar a organização de tráfico de drogas de Cartes”. Três anos depois, não há sinal dos resultados dessa investigação. E Cartes assumiu a presidência do Paraguai em agosto deste ano.
…E o que os EUA acham que todo mundo pode saber
Partindo dessas informações a agência Pública fez em maio um pedido à DEA de todo o material existente sobre a operação “Coração de Pedra”. A agência negou, afirmando que “a busca levaria meses” e “poderia possivelmente interromper as operações normais da DEA”. Pedia que a Pública reduzisse o escopo da busca. Restringimos então a busca aos anos mais relevantes – 2009 e 2010, quando sabíamos que a operação de infiltração estava em andamento, e portanto, documentada em relatórios e evidências resultantes.
A resposta chegou no final de setembro deste ano. A DEA permitiu a publicação, parcial, do documento de quatro páginas, sendo duas completamente tarjadas pelo risco de “revelar uma fonte confidencial”, “constituir invasão de privacidade privada”, ou “revelar técnicas e procedimentos de investigação policial”. Detalhe: todos esses dados já estão disponíveis na web.
O real motivo é a verdadeira esquizofrenia da bucrocracia americana, depois dos recentes vazamentos, que disponibilizaram milhares de documentos ao público. Os Estados Unidos continuam considerando-os como “classificados” – mesmo os que foram publicados por jornais como o Guardian, ou na íntegra na web.
Em dezembro de 2010, a Casa Branca emitiu uma ordem proibindo todos os seus funcionários de acessar os documentos publicados pelo WikiLeaks, alegando que “informação classificada, tenha sido ou não postada em sites públicos ou pela mídia, continua sendo classificada e deve ser tratada assim por funcionários federais e contratistas”.
No dia 7 de junho deste ano, depois de publicadas as primeiras reportagens no Guardian sobre a espionagem da NSA com base nos documentos vazados por Edward Snowden, o Departamento de Defesa publicou um memorando idêntico. De autoria de Timothy A. Davis, Diretor de Segurança do Departamento, a ordem adiciona que “funcionários do Departamento de Defesa ou contratistas que buscarem informação classificada no domínio público, que reconheçam a sua acuidade ou existência, ou que proliferem a informação de qualquer maneira, estão sujeitos a sanções”. Não há descrição de quais seriam essas sanções.
A Agência Pública apelou da decisão, com base na primeira resposta: se o material em posse da DEA é tão extenso que “levaria meses de pesquisa”, por que apenas um documento, totalmente censurado, foi liberado? Estamos aguardando.
Fonte: Agência Pública
Foto: Divulgação