13 fatos que explicam a situação na Nicarágua

Há semanas, a grande mídia ocidental reproduz interpretações tendenciosas das informações vindas da Nicarágua, principalmente sobre a prisão de vários líderes da oposição e até de ex-sandinistas suspeitos de terem recebido financiamento estrangeiro - principalmente dos Estados Unidos. O economista argentino Mario Firmenich, ex-secretário-geral do grupo revolucionário Montoneros, traz ao debate uma série de realidades que a grande mídia deliberadamente silencia.

De acordo com as pesquisas, Daniel Ortega e a FSLN ganhariam as eleições com muito conforto, com bem mais de 50% dos votos.

Por Mario Eduardo Firmenich.

1) As leis eleitorais que regem a Nicarágua foram feitas pelo último governo de direita que governou de 2001 a 2006. Como a FSLN ganhou as eleições de 2006, a direita não quer mais essas leis.

As últimas emendas a essas leis, com o qual o governo é acusado de “armar uma fraude”, referem-se ao fato de que 50% dos cargos eletivos devem ser ocupados por mulheres (parece que a oposição não tem mulheres suficientes para completar as listas eleitorais) e também à proibição de financiamento de partidos políticos com origem no exterior; este último se aplica em qualquer país sério, o presidente mexicano Andrés Manuel López Obrador sofre perseguições dos Estados Unidos sob o mesmo pretexto.

2) A oposição nicaraguense é um “balaio de gatos” sem grande representação social. Seus partidos políticos não têm existência orgânica fora dos períodos eleitorais.

O único partido que existe com uma grande organização permanente em todo o território nacional é a FSLN (Frente Sandinista de Libertação Nacional).

Ao total, existem 19 partidos políticos legalmente reconhecidos. Um deles é a FSLN. Outros 16 (incluindo vários partidos indígenas) são aliados da FSLN. Existem apenas 2 partidos de oposição legalmente registrados que ainda brigam entre si.

A oposição que participa das eleições não pretende ganhar a presidência de Daniel Ortega porque sabe que isso é impossível. Eles lutam entre si para ver quem acabará em segundo, para ter acesso às vantagens e prerrogativas que a lei eleitoral, que a direita fez, confere ao segundo colocado.

A oposição mais violenta tentou derrubar o governo pela força em 2018 e depois fingiu que o governo negociaria com eles “reformas democráticas” sendo que nem eram partidos políticos, mas sim “ONGs”, que se autodenominam “sociedades civis”, financiadas pela CIA e a USAID.

3) Os processos criminais contra a Fundação Chamorro e seus membros não são uma invenção do “lawfare”. A lavagem de dinheiro existe porque essa fundação, que atuou como força de oposição sem ser um partido político, recebia explicitamente financiamento dos Estados Unidos.

Quando foi aprovada a lei que proíbe o financiamento externo da atividade política, essa fundação teve que se registrar como agente estrangeiro para ser legalmente autorizada a continuar recebendo tal financiamento, mas não o quis porque isso a desqualificava politicamente e assim se dedicou à lavagem, em sua contabilidade, do dinheiro recebido das agências estaduais dos Estados Unidos. Evidências documentadas de lavagem de dinheiro estão claras nos próprios registros contábeis da Fundação Chamorro.

4) Os ex-sandinistas recentemente detidos não são “a dissidência interna que questiona o poder personalista de Daniel Ortega”. São aqueles que saíram da FSLN há 30 anos, quando este perdeu as eleições. Eles estão sendo julgados em casos criminais por traição porque conspiram ilegalmente com os Estados Unidos para sabotar as eleições e derrubar o governo.

5) A cultura política do povo nicaraguense não é e nunca foi demoliberal ao estilo europeu. Sua cultura tem raízes camponesas e étnicas ameríndias, com minorias afrodescendentes. Atualmente, 40% da população nicaraguense é camponesa e vive nas terras concedidas há 40 anos pela reforma agrária da Revolução Sandinista. Outros 30% da população são camponeses ou filhos de camponeses que se urbanizaram em cidades de pequeno e médio porte, capitais de departamentos e em alguns bairros de Manágua.

A grande massa desse setor demográfico é sandinista desde a Revolução de 1979 e vive agradecida pela política do presidente Ortega, que desde 2007 permitiu que melhorassem sua renda e sua qualidade de vida (proporcionando saúde, educação, energia elétrica, estradas pavimentadas, alimentos para todos, capitalização da economia familiar, sustentabilidade ambiental e equidade de gênero). Esta população não se importa nem um pouco que a Sra. Cristiana Chamorro e seus associados sejam presos.

Há uma pequena porcentagem da população claramente espanhola e branca, a maioria dos quais remanescentes da oligarquia de Somoza e dos antigos poucos setores médios que estavam a serviço dessa oligarquia. Este setor é violentamente hostil ao sandinismo; sua única chance de reconquistar o poder seria uma intervenção dos Estados Unidos para derrubar o governo e é isso que procuram.

O resto é uma pequena classe média urbana que surgiu graças ao progresso econômico e social do governo presidido por Daniel Ortega entre 2007 e 2018, quando a tentativa fracassada de golpe violento interrompeu o processo de crescimento econômico. Uma população urbana de base étnica crioula-mestiça, dedicada ao comércio e outros serviços, juntou-se a essa classe média.

6) A realidade sócio-política é que Daniel Ortega e a FSLN vencem as eleições com muito conforto, com bem mais de 50% dos votos.

A prisão de opositores ligados à interferência estadunidense, autodenominados “pré-candidatos” (embora não sejam registrados como tal por nenhum partido legalmente habilitado para as eleições), não é uma “repressão totalitária necessária para ganhar as eleições”. Cristiana Chamorro, nas pesquisas mais favoráveis (se for candidata da oposição unificada) tem 21% de intenção de votos e nas mais desfavoráveis (se for candidata apenas do “seu” partido, por ora inexistente) tem apenas 5%.

As ordens de prisão preventiva por lavagem de dinheiro que financiam a interferência eleitoral dos Estados Unidos estão de acordo com a lei. Para a cultura política não demoliberal dominante na Nicarágua, não importa que haja detenções no início do processo eleitoral.

Obviamente, para países culturalmente demoliberais como os europeus ocidentais (ou quase-demoliberais, como Argentina e México) isso parece um “ultraje ditatorial que impede uma competição eleitoral justa”.

Na Argentina, “o normal” teria sido que os “operadores judiciais” (agentes dos serviços de inteligência do Estado), seguindo as instruções do presidente, ignorassem a divisão de poderes e determinassem a data eleitoralmente mais conveniente para a ordem judicial de detenção.

Na Nicarágua não existe essa hipocrisia pseudo-demoliberal e por isso são presos no momento processual apropriado, independentemente da campanha eleitoral, porque as eleições são vencidas pela FSLN de qualquer maneira.

Não há nenhuma mobilização social exigindo a soltura dos Chamorros e seus associados.

7) Os setores mais conservadores da Igreja Católica promoveram abertamente o levante golpista de 2018 desde os púlpitos (de uma forma muito semelhante ao golpe contra Perón em 1955, identificado com o “Cristo Vence”). Hoje, a Igreja Católica tem uma posição de “oposição elíptica” nas homilias, mas clama pela paz.

Tudo parece indicar que o Papa Francisco interveio, com a habitual discrição vaticana, afastando os padres mais violentos e induzindo essa mudança no discurso político. A figura e a mensagem do Papa Francisco são divulgadas publicamente e elogiadas pelo próprio governo.

8) A Constituição da Nicarágua e a legislação eleitoral são juridicamente democráticas e pluralistas; nesse contexto, a realidade sociopolítica mostra um sistema partidário hegemônico pluralista.

Isso não é consequência de alguma manobra proibitiva do sandinismo, mas a manifestação política natural de uma sociedade com muita pouca diversidade de classes sociais.

Há uma imensa maioria popular camponesa pobre, historicamente explorada e ignorada tanto pelo capitalismo neocolonial de Somoza quanto pelos partidos neoliberais que governaram entre 1991 e 2006.

Não existem grandes massas de setores médios que poderiam dar uma base social a um sistema onde, por exemplo, 3 grandes partidos que poderiam se alternar no poder formando coalizões se consolide.

Há uma minoria social de ricos (alguns muito ricos) que são antissandinistas e uma imensa maioria pobre que são sandinistas porque desfrutam de uma melhoria sustentada em sua qualidade de vida. A faixa social de “independentes” ou “apolíticos” não é politicamente significativa.

O partido hegemônico surge porque a FSLN é o único partido nacional que representa e favorece o progresso socioeconômico e o orgulho nacional da imensa maioria ameríndia e afrodescendente, podendo construir alianças com partidos regionais e indígenas.

9) A paz social que se observa a olho nu na Nicarágua é muito superior à que existe na Argentina e no México (com à que se vê na Colômbia, Equador ou Chile então nem se compara).

Não há piquetes que cortam ruas ou estradas; não há greves sindicais ou locautes de empregadores para paralisar o país.

Também não há violência social/criminal do tipo das maras salvadorenhas ou violência das grandes gangues do crime organizado. Não há assaltos a bancos, nem sequestros de empresários, nem máfias de traficantes violentos, como no México ou na cidade de Rosário, na Argentina.

Os mercados populares, os shoppings e centros comerciais da classe média e superior exibem um funcionamento socioeconômico normal, em paz e sem tensões visíveis.

10) Na Nicarágua, mais de 80 canais de televisão são assistidos gratuitamente.

Existem vários canais de TV privados nicaraguenses independentes (canais 10, 12, 14, 23) que expressam vários graus de agressividade opositora. Eles gozam de uma liberdade de expressão que pode ser considerada até excessiva; o canal 10 é o mais violento e é normal ouvir a qualquer hora do dia que “o ditador Daniel Ortega é um criminoso que mata camponeses”, e nada acontece!

Além disso, a Igreja Católica tem um canal próprio que transmite com total liberdade tudo o que vem à mente, incluindo as homilias do purpurado em todas as suas missas ao vivo. Por outro lado, também se vê o canal de televisão do Vaticano em espanhol, que goza da mesma liberdade de expressão.

Também pode-se assistir gratuitamente a CNN em espanhol e inglês, o canal Euronews, a TVE espanhola, a rede Caracol da Colômbia, vários canais mexicanos, TeleSUR, Russia Today e o canal chinês CGTN em espanhol.

Como televisão partidária existem vários canais, alguns privados, relacionados com o governo e um canal parlamentar oficial.

A única estação de televisão que foi fechada cometeu crimes graves ao instigar explicitamente e dar instruções operacionais em tempo real para que os golpistas destruíssem e incendiassem instalações públicas e de militantes sandinistas durante o golpe fracassado de 2018.

11) A edição em papel do jornal de oposição La Prensa é limitada pela simples razão de que não há quiosques de jornais e revistas ou “canillitas” (vendedores ambulantes) que vendem jornais em voz alta nas esquinas. O jornal é vendido por assinatura às pequenas classes alta e média. A grande maioria da sociedade nicaraguense não lê jornais de papel.

A edição digital do jornal La Prensa é publicada diariamente sem problemas

12) A Nicarágua não é em nada como um país comunista e seu sistema econômico está longe de ser estatista.

Não há banco estatal comercial, como Banco Nación, Banco Provincia ou Banco Ciudad na Argentina. A lei não autoriza o estabelecimento de bancos cooperativos. Todos os bancos comerciais são privados e oponentes, que têm o luxo de boicotar as operações financeiras diárias do governo, na medida em que há funcionários públicos que têm de receber seus salários no Banco Central.

Não existem grandes empresas estatais. Há livre conversibilidade da moeda entre o córdoba nicaraguense e o dólar. Pode se pagar em dólares em qualquer comércio e não há fixação de preços pelo governo.

O planejamento econômico é indicativo e baseado na demanda; é executado por atores privados da economia familiar e cooperativa. As instituições governamentais fornecem assistência técnica e financeira para que esses atores socioeconômicos populares possam implementar planos nacionais de desenvolvimento econômico e social.

A taxa máxima de imposto de renda era de 10% até 2019 e atualmente é de 15% (na Espanha é de 49%). É comum que os empresários obtenham isenções fiscais do governo.

A taxa geral de IVA é de 15% e os alimentos frescos estão isentos (na Argentina a taxa geral de IVA é de 21%, 27% para eletricidade e 10,5% para alimentos frescos).

Existem grandes empresas estrangeiras funcionando normalmente (incluindo empresas como a Cargill e cadeias de hotéis transnacionais). Os principais investimentos estrangeiros estão em regime de Zona Franca e, portanto, não pagam impostos.

13) Como se explica que esta realidade mereça a avassaladora e repentina campanha mediática mundial para implantar, como “pós-verdade”, as fake news de que uma “ditadura populista-comunista” está suprimindo a liberdade de imprensa, prendendo candidatos da oposição quem venceriam as eleições e perseguindo dissidentes sandinistas que se oporiam ao personalismo ditatorial de Daniel Ortega dentro do partido no poder?

Esta campanha de fake news por multimídias oligopolizadas da globalização neoliberal nada mais é do que um “novo tipo” de bombardeio contra um Estado e um povo soberano na Terceira Guerra Mundial atualmente em curso.

Estamos vivendo uma guerra que é ao mesmo tempo uma típica disputa geopolítica entre potências (por enquanto sem disparos de mísseis estratégicos) e também uma guerra civil mundial genocida, declarada pelo establishment econômico da globalização contra os pobres do mundo; o objetivo é privar os povos pobres de sua soberania sobre os recursos naturais cada vez mais escassos e reduzir a população mundial.

O que mais além de defender-se com suas próprias leis os Estados e povos soberanos podem fazer quando uma potência estrangeira tenta promover uma guerra civil interna para derrubar seus governos e destruir seu sistema social?

Tradução por Bruno da Luz.
A opinião do/a autor/a não necessariamente representa a opinião de Desacato.info.

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