São Miguel do Oeste: sem políticas públicas = sem água. Quem paga são os empobrecidos

A natureza, o maior corpo vivo do planeta, avisou que não suportaria tamanha violência. Quem paga o preço pela falta de água, neste momento em que a pandemia avança para a segunda onda no Brasil, são os empobrecidos. Em São Miguel do Oeste o contágio pelo novo coronavírus, desde final de outubro, aporta um índice de mais de 10 casos diários divulgados, um número expressivo para um município interiorano. Somado a isso, as pessoas não têm água para higienizar-se devido à falta de políticas públicas e debates com participação popular. Enquanto o agronegócio avança, pessoas idosas e doentes passam dias sem ter água para banho, preparação dos alimentos e limpeza básica

Arte: Julia Saggioratto, para Desacato. info.

Redação.

São Miguel do Oeste é um município do interior de Santa Catarina, localizado ao Extremo-oeste do Estado. É uma das mais de 80 cidades da região em que as pessoas sentem, neste momento, a urgência de políticas públicas voltadas ao meio ambiente e, especialmente, à preservação de matas, rios e seus mananciais, da natureza em todo seu corpo vivo.

Renate Weinman tem 65 anos, é aposentada e cuidadora de seu companheiro que foi vítima de AVC há 18 anos. Há um mês, por falta de água, não está sendo possível manter a higiene necessária para os cuidados com o marido e com ela mesma. Hoje, dia 24 de novembro, foi a primeira vez que ela e o marido tomaram um banho no chuveiro com a água que lhes foi entregue com caminhão pipa. No entanto, nos dias anteriores, a situação era outra: “Antes da seca já tinha muita falta de água. Me mandaram ligar de manhã na Casan antes das 8h, já faz um tempo isso. Eu ligava e ninguém atendia o telefone. Depois, ouvi de umas pessoas que a Casan ‘não tinha bola de cristal’ para adivinhar na casa de quem estava faltando água. Mas isso não é só eu. Todos estão passando pela falta de água. Todas as ruas, um comenta com o outro para ver se tem água para emprestar, mas não tem”.

Ouvi de algumas pessoas que a Casan não tinha “bola de cristal”, mas em todas as ruas, um comenta com o outro para ver se tem água para emprestar, mas não tem.

Sem poder tomar um banho no chuveiro nos últimos dias, Renate dava banho em seu marido, Aristides, 71 anos, utilizando um pano e água mineral. “Há quase 18 anos que ele sofreu um AVC, usa fraldas, às vezes tá agitado e arranca tudo, molha cobertor, lençol. Tudo tem que ser lavado. Ele tinha que tomar pelo menos três banhos por dia, mas não dá. Tem dias que tem que molhar o pano na água mineral para conseguir passar um pano nele. Não tem como tomar banho. Eu sou alérgica ao pó, é bem ruim porque não conseguimos fazer nada de limpeza. O médico já disse que não é só passar álcool, tem que lavar com água”, contextualizou.

A higiene da casa também é outra preocupação levantada pela moradora. “Os cobertores finos dele preciso lavar todos os dias. Me ensinaram colocar vinagre na água para tirar o cheiro, mas o cheiro da urina não sai da pouca água que puxo da caixa para colocar na máquina, não tem como. E como vou usar uma água com urina para passar pano na casa? Ele e nem eu, poderia estar nessa poeira pelo problema no pulmão”.

“A falta de água não é novidade. Foi anunciada”.

Marciano Silva, é Engenheiro Agrônomo, Pós-graduando na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Foto: Arquivo Pessoal.

Seca. Estiagem. Mudanças climáticas. Queimadas na Amazônia, a fumaça que atinge Santa Catarina e diversas outras partes do Brasil. La Niña.  El Niño. Aquecimento Global. Falta de políticas públicas para o meio ambiente. Depredação, desmatamento. A natureza, o maior corpo vivo do planeta, avisou que não suportaria tamanha violência.

Em razão das queimadas na Amazônia, em São Miguel do Oeste/SC também foi possível, infelizmente, perceber a fumaça cobrindo o céu. Foto: Claudia Weinman, para Desacato. info.

É impossível pensar a falta de água da casa da senhora Renate, sem mencionar os diversos fatores que afetam, especialmente, e, de forma primária, as comunidades e bairros empobrecidos. Marciano Silva, Engenheiro Agrônomo, Pós-graduando na Universidade Federal do Rio de Janeiro, acompanha o debate internacional sobre as mudanças climáticas, fala sobre esse tema. Ele destaca que a seca afeta o mundo inteiro e que o poder público em cada região deve investir em políticas públicas para a proteção do meio ambiente.

“O Poder público, independente de quem seja, precisa ser cobrado, possui responsabilidades. Em São Miguel do Oeste, por exemplo, as pessoas votam em quem confiam, inclusive ocorreu reeleição para prefeito. Mas o que fizeram? Nos outros anos, as outras pessoas que ocuparam esses cargos, o que fizeram? Não fizeram nada”, enfatizou.

Imagem registrada no município de Barra Bonita/SC. Moradores sentem os impactos da seca, da falta de chuva e de políticas públicas para o campo.

“Botaram a culpa na população, que não podia lavar calçada, disseram que os agricultores tinham que fazer armazenamento da água da chuva, mas quais investimentos o poder público fez”?

Silva acrescenta perguntas sobre as responsabilidades diante de um tema que é global. “Botaram a culpa na população, que não podia lavar calçada, disseram que os agricultores tinham que fazer armazenamento da água da chuva, mas quais investimentos o poder público fez? Deixou tudo na conta dos agricultores, dos moradores de periferia. Quero refletir aqui: Nos anos 90 o Projeto Microbacias, por exemplo, determinava um limite de produção agropecuária de acordo com o ambiente. Qual era esse limite? Temos que entender que se puxar toda água do rio ele vai secar, se queimar a Amazônia não terá chuva. Quais foram as ações, as medidas tomadas? Quais foram os projetos de preservação da mata nativa? O que tem em São Miguel do Oeste de propostas”?

“Estão negando o que os cientistas estão dizendo”

Silva vai mais a fundo e comenta sobre o processo de desregulamentação da legislação ambiental, o desprezo intencional de investimento e de fiscalização em Santa Catarina mas, também, em todo o Brasil. “Houve, nesse último período especialmente, um desmonte de várias políticas públicas em Santa Catarina e no Brasil. Uma verdadeira negação do que os cientistas estão dizendo e eles estão falando que vai ficar pior. As estiagens estão se prolongando e as políticas não são implementadas. A ONU está dizendo que o Brasil não quer cumprir as normativas. Quem está se beneficiando é o setor privado”, argumentou.

“Não é qualquer obra, não pode ser na fazenda do grandão, tem que suprir as demandas de toda a população, dos pequenos agricultores, da periferia, atender a demanda social. A responsabilidade é de todos? Sim, mas é diferenciada, não vou lavar meu carro, vou economizar. Mas todos têm que fazer. Quem consome mais água? O setor industrial, o agronegócio. Como são cobrados”?

O Engenheiro Agrônomo disse ainda que ao refletir sobre as políticas públicas é necessário que aconteça um estudo das realidades e da vontade do poder público constituído em cada região do país, como em São Miguel do Oeste. “Mas atenção. Não é qualquer obra, não pode ser na fazenda do grandão, tem que suprir as demandas de toda a população, dos pequenos agricultores, da periferia, atender a demanda social. A responsabilidade é de todos? Sim, mas é diferenciada, não vou lavar meu carro, vou economizar. Mas todos têm que fazer. Quem consome mais água? O setor industrial, o agronegócio. Como são cobrados? É necessário que haja participação social na tomada de decisão, consultas públicas, debates, o povo tem algumas respostas e isso deveria ter sido pensado. Agora na pandemia, como vai aglomerar pessoas para esse debate”? Acrescentou.

Assista o depoimento na íntegra: 

Na prefeitura

Em matéria divulgada no site da prefeitura, consta a oficialização do Decreto  9.424/2020, publicado nesta terça-feira, dia 24 de novembro, segundo o qual:

De acordo com Trevisan, serão afetados os trabalhos de manutenção de estradas e demais intervenções da equipe de trabalho do Município, tanto na área rural quanto urbana, enquanto perdurar a situação de estiagem. O prefeito pede a compreensão da população, e a colaboração no sentido de economizar água durante este período. Também está prevista a concessão de férias coletivas para os servidores do setor de Obras e de Agricultura, a partir do dia 20 de dezembro, sendo mantida apenas uma equipe mínima, responsável por questões emergenciais e de combate aos efeitos da estiagem. Os serviços que são executados por empresas terceirizadas, por ora, ficam mantidos”.

Audiência Pública

Em matéria divulgada pela assessoria de imprensa da Câmara de Vereadores de São Miguel do Oeste, consta a informação sobre a realização de uma audiência pública, amanhã, dia 25 de novembro.

“A Câmara de Vereadores fará na próxima quarta-feira (25), às 19h, uma audiência pública para debater sobre a situação do abastecimento de água, a qualidade da água fornecida, as cobranças das faturas e as soluções para resolver o problema do abastecimento de água em São Miguel do Oeste. A proposição é da vereadora Maria Tereza Capra (PT), que apresentou o requerimento, aprovado por unanimidade.

Foram convidados para a audiência o prefeito municipal, representantes da Companhia Catarinense de Águas e Saneamento (Casan), do Ministério Público de Santa Catarina, do Procon e da União das Associações de Moradores de Bairros (UAMB).

Maria Tereza justifica que há inúmeras reclamações da população com relação ao abastecimento de água. Ela apresentou na sessão um vídeo recebido de uma moradora em que aparece água de cor marrom saindo da torneira, e questionou se essa água é cobrada dos usuários. Maria ainda ressaltou que fez requerimento de informação à Casan, que “simplesmente não respondeu”, e que agora a Companhia deverá dar explicações de forma presencial.

Toda a comunidade é convidada a participar da audiência pública, limitada a capacidade a aproximadamente 70 lugares no plenário do Poder Legislativo. As medidas de prevenção à covid-19 – distanciamento social, uso de álcool em gel, uso de máscara e medição de temperatura – serão tomadas no evento. A audiência também será transmitida pelas redes sociais da Câmara, no Facebook e no Youtube.

Crescem os casos de covid-19 em São Miguel do Oeste, faltam medidas

O Boletim Epidemiológico divulgado hoje, dia 24 de novembro, informa que mais 12 pessoas estão contaminadas pelo novo coronavírus em São Miguel do Oeste/SC. Desde o dia 31 de outubro, data em que nenhum novo caso havia sido diagnosticado, a média é de 10 a 14 casos diários. A ocupação dos leitos de UTI está em 50%.

Imagem: Divulgação.

A situação em todo Brasil aponta para uma segunda onda de propagação do vírus. Segundo matéria divulgada pela revista Carta Capital: “Pesquisadores brasileiros afirmam que o Brasil vive o ‘início de uma 2ª onda’ da pandemia do novo coronavírus, em nota técnica divulgada na segunda-feira 23.  Eles afirmam que “a situação do Brasil se deteriorou fortemente nas últimas duas semanas, e o início de uma 2ª onda de crescimento de casos já é evidente em quase todos os estados, de forma particularmente preocupante nas regiões mais populosas do país. Os especialistas apontam urgência na adoção de medidas, como uma ação coordenada pelo governo federal, políticas de isolamento e distanciamento social, testagem em massa com rastreamento de contatos, campanhas públicas de informação e apoio financeiro aos cidadãos menos favorecidos”. A matéria pode ser lida na íntegra em: Especialistas divulgam nota com alerta para 2ª onda da pandemia no Brasil – CartaCapital.

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