Retrospectiva: A casa de Seu Aristide e Dona Renate

 

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Faz 16 anos. Como tornar isso tudo menos doloroso?

Por Claudia Weinman, para Desacato. info.

Faz 16 anos hoje.

A nossa casa. Foi ali que a gente viveu os momentos mais felizes e também, os mais tristes.

Passamos muito tempo planejando. A cor que a casa seria pintada, pois ela nunca havia recebido uma cor que fosse. Como seria a vida com uma estrutura melhor. Teríamos uma calçada ajeitada, com grama por toda parte. Como um fio condutor, a gente foi crescendo com vários sonhos. Meu pai estava para se aposentar então ele contava com esse dinheiro para fazer tudo isso. Uma das coisas mais interessantes é que ele queria muito comprar uma antena parabólica, pois gostava demais de assistir TV e o sinal era bem ruim, pouco dava para ver a imagem na telinha, se chovesse então, aí é que não se via nada.

Nossa casa ficava no fim de linha. Meu irmão do meio gostava muito de organizar os arredores. Ele reunia as pedras e formava um jardim de belezas. Plantava árvores, flores, coqueiros especialmente e, também, na parte da produção de comida, sempre ajudou muito. Planejamos uma roça para nós dois, mas eu ficava pulando ao redor dele, olhava, brincava. Gostava muito quando meus dois irmãos estavam juntos, em casa. Eu sempre esperava meu irmão mais velho vir pra casa da faculdade no final do ano ou feriado pra gente deitar juntos no sofá. Eu abraçava, beijava, queria ler Dom Quixote de la Mancha mas não entendia a metade das palavras. Meu irmão sempre dizia que se eu tivesse um namorado ele iria “sofrer” muito, pois eu apertava demais nos abraços, queria ficar junto, sempre.

A gente viveu a Páscoa. Demorei para entender o que aconteceu com Jesus. A ditadura romana que o torturou e levou à cruz. Pregaram seus braços e pés, o mataram, pois ele comunicava ao povo pobre uma consciência rebelde, de que se poderia viver bem, de que seria possível construir um “reino”, um mundo, um lugar, cada qual chame do que quiser, onde não existisse a exploração e por consequência, nem o sofrimento de uns em detrimento do luxo dos outros.

Minha mãe cuidava de toda casa, da gente, muitas vezes esteve sozinha, ela sempre procurou tratar a pobreza, as dificuldades de maneira que a gente não sofresse tanto. Meu pai era o cara que trabalhava em uma fazenda ali próxima de casa, enquanto os donos bebiam demasiadamente e comiam de jogar fora os alimentos, ele passava os dias trabalhando muito. Vez ou outra, raramente, mandavam um pão mofado pra ele levar pra casa.

Mas a gente tinha esperança que ele iria se aposentar. Minha mãe ainda estava longe disso. Mas isso só aconteceu tempos depois, quando meu pai já estava adoentado, isso porque ele se recusou a fazer campanha na comunidade em que era ministro, para um candidato em questão. Esse candidato havia pego os documentos do meu pai pois era advogado e como meu pai se negou a fazer campanha, ele rabiscou os dados, números, datas, atrapalhando todo o processo. Precisávamos de mais testemunhas, de mais documentos, de mais “provas”. Não bastasse uma vida toda de trabalho e sofrimento.

Chegou a Páscoa

Eu lembro que naquela madrugada, meu pai veio até meu quarto, parece que sinto as mãos dele tocarem meu rosto, ele disse que me amava, beijou minha cabeça, como se adivinhasse algo. Mas ele não estava bem, sofria de epilepsia desde muito jovem, então quando as crises estavam por vir, ele sentia. As dores de estômago incomodavam e não demorava muito para ele cair no chão. Por isso minha mãe sempre estava ali, de olho.

Depois que ele saiu do meu quarto, ouvi o pulo dos meus irmãos das suas camas, e alguns sinais de desespero. Lembro que me ajoelhei, peguei a réplica de nossa senhora Aparecida e comecei a rezar pedindo que Deus ajudasse a gente. Ele foi para o hospital.

Amanheceu o dia e eu achava que iria voltar logo, como das outras vezes. Passamos a Páscoa, eu e meu irmão do meio, jogando bolita. Eu tinha feito uma cestinha de algodão e papel e faltava encher as casquinhas de amendoim doce, que a mãe fazia. Estão vazias até hoje, bem aqui na minha memória.

Poucas foram as ajudas para quem meu pai serviu a vida, muitas foram das pessoas da comunidade. Do patrão, eu e minha mãe levamos para casa um monte de cascas de cuca e pão mofadas. Precisávamos de dinheiro para uma ambulância que levasse meu pai até o hospital regional de Chapecó. Ofereceram-nos o que pode ser considerada a maior pobreza humana, sem compaixão alguma pelo sofrimento alheio.

Quando me perguntam em que momento da vida tive o despertar da consciência crítica, ou algum passo para isso, sempre digo que foi nesse. Veio a revolta, as perguntas de por qual razão Deus não tinha ajudado, meu pai havia sofrido um AVC e agora, havia se tornado uma pessoa diferente, sem consciência das coisas, não sabia mais quem a gente era, precisava de cuidados extremos.

Então, sentimos a Páscoa.  A vida de milhares de torturados e torturados pelo capitalismo, pela ganância. A dor dos povos indígenas, do saqueamento das terras, da política assassina, dos mortos em Brumadinho, dos desaparecidos em Mariana. Sentimos hoje mais essa Páscoa, da celebração da ditadura imperial romana, que matou quem defendia os seus, os pobres, marginalizados. A derrota humana nos discursos de ódio, no uso de armas de fogo, na fala de mulheres defendendo sua submissão.

A Páscoa. Eu lembro da casa velha e de todos os nossos sonhos lá, guardados nela. Tudo o que ficou, o que preciso ainda libertar daquele lugar pois a luta, ela está em outro contexto agora, tivemos a sorte grande de ter uma mãe, mulher como a nossa, que tanto amou, ama e cuida para que façamos as coisas diferentes. Mas nós seguimos sentindo essa Páscoa tão dolorosa, dos 80 tiros por “engano”. Como tornar isso tudo menos doloroso?

Claudia Weinman é jornalista, diretora regional da Cooperativa Comunicacional Sul no Extremo Oeste de Santa Catarina. Militante do coletivo da Pastoral da Juventude do Meio Popular (PJMP) e Pastoral da Juventude Rural (PJR).

 

A opinião do autor/a não necessariamente representa a opinião de Desacato.info

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