Quantas curtidas eu mereço?

Por terem origens psicológicas, distúrbios alimentares fazem com que suas vítimas tenham uma visão distorcida do próprio corpo. / Ilustração: Rafael Nascimento.

Por Daniela Müller e Mayara Santos.

“Toda vez que eu entrava nas redes sociais eu me sentia mal. Eu seguia alguns perfis e achava legal pelas fotos [de mulheres] e pelos corpos delas, mas aí eu fui refletindo e pensando que eu nunca seria igual a elas” desabafa T., de 26 anos. A insatisfação com a autoimagem é constantemente alimentada nas mídias, não é exclusividade de T., mas é apontada como presente, principalmente, na faixa etária de 14 a 24 anos. De acordo com uma pesquisa feita pela instituição de saúde pública do Reino Unido, Royal Society for Public Health, 90% das pessoas dessa faixa etária utilizam as redes sociais, sendo a mais frequente o Instagram.

Em paralelo ao aumento do acesso à tecnologia e o uso das redes sociais, as taxas de ansiedade e depressão nessa mesma faixa etária aumentaram em 70% nos últimos 25 anos, ainda segundo essa mesma pesquisa, a exposição a padrões estéticos inalcançáveis gera uma insatisfação constante com a autoimagem e a relação com o próprio corpo, que nunca parece adequado ou suficientemente bom para ser aceito. A implicação disso na autoestima das mulheres é proporcionalmente maior a dos homens. Nove em cada 10 mulheres se sente insatisfeita com o próprio corpo, segundo a pesquisa.

Segundo um relatório publicado pelo Comitê Técnico da Associação Brasileira de Psiquiatria, a exposição de jovens a imagens sobrevalorizadas de extrema magreza é um fator determinante da ocorrência de transtornos alimentares. E garante a existência de evidências consistentes de que expor mulheres jovens a imagens de modelos magras aguça os sentimentos de insatisfação com o próprio corpo.

Aos 23 anos, A. G. enfrenta distúrbios alimentares decorrentes de traumas da infância. “Eu fui uma criança acima do peso. Quando tinha uns 9 anos e brincava de modelo na escola, eu nunca era escolhida, pois não podia amarrar a blusa na cintura e mostrar a barriga porque ‘era gorda’. Nessa época, eu nem deveria ter que me preocupar com isso, mas lembro nitidamente da sensação de desconforto entre as minhas amiguinhas e como os meninos não queriam que eu fosse a namoradinha deles porque eu ‘não era tão bonita’”.

A nutricionista Daniela Dal Pozzo, que trabalha com ênfase no público feminino, especialmente com transtornos alimentares, diz que a maior parte das pacientes chega ao consultório insatisfeita com a própria imagem. Quando questionadas por ela qual a escala de 0 a 10 de sua satisfação com o corpo, a maioria é inferior a 5. “A questão das mídias sociais influencia muito. Positivamente para a minoria das pessoas, mas como temos um alto índice de ansiedade, as pessoas tendem a colocar suas próprias emoções nas daquela pessoa do Instagram. E acabam se frustrando e pensando: eu não consigo fazer isso, por que aquela pessoa consegue?”

Resultados de uma pesquisa realizada pelas repórteres com 163 mulheres.

A insatisfação corporal é fomentada pelas redes sociais à medida que essas permitem editar, recortar e expor uma realidade construída e manipulada, entregue, no entanto, como algo existente. Isso agrava o sentimento de não pertencimento a nenhum padrão estético, já que os próprios padrões expostos são uma falsa-realidade.

Além disso, as manipulações que as redes possibilitam podem ser usadas como mecanismos para tentar se inserir nesses moldes. R. via na fotografia possibilidades de aceitação nos círculos sociais: posava em ângulos estratégicos que diminuíssem as proporções de seu corpo.: “Até ano passado eu só colocava foto de rosto e com meu cabelo na frente pra afinar meu rosto, minha foto de perfil não parece eu. Eu fazia de tudo pra parecer mais magra do que eu realmente sou.”

SER MAGRA x SER SAUDÁVEL

A internet não só estabelece padrões estéticos, como também pode ser uma perigosa escola de práticas bulímicas e anoréxicas. Em uma breve busca, foi possível mapear várias postagens em sites, blogs e perfis no instagram propagando a Anna e Mia, como são chamados, por seus adeptos, os transtornos de anorexia e bulimia.

A anorexia nervosa é um transtorno alimentar, caracterizado pelo distúrbio de imagem e a preocupação excessiva com o peso corporal. A doença envolve transtornos psicológicos, fisiológicos e sociais. A pessoa anoréxica desenvolve um medo excessivo de engordar e, com isso, passa a praticar restrições alimentares severas e busca por métodos rápidos de emagrecimento. Além de que se auto-avaliar com excesso de peso, mesmo que esteja abaixo do peso ideal. As Pró-Annas (adeptas da anorexia) possuem uma linguagem própria para se comunicarem nas redes sociais, reconhecendo-se e evitando interferências externas. Para isso, usam nomes falsos, termos próprios para definir as práticas da doença e compartilham dicas para omitir a perda de peso de pessoas próximas.

Através das redes sociais, estas disfunções são romantizadas e até mesmo estimuladas como práticas benéficas. É possível encontrar além de dicas de como se abster da alimentação por dias a fio, exercícios para queimar calorias, palavras de apoio para se manter na dieta, imagens de mulheres extremamente magras?—?o chamado thinspiration?—?e medidas autodisciplinares, como dicas de como agir em caso de fome.

Grupo de WhatsApp onde adeptas da anorexia conversam sobre suas restrições alimentares. / Imagem: Reprodução da internet.

A bulimia também é vista como um transtorno alimentar por especialistas da área da saúde. Entretanto, é desencadeada através de episódios de compulsão, seguidos de culpa e práticas de compensação, como vômitos forçados e uso de laxantes, para evitar o ganho de peso.

A. G. carrega até hoje consigo as consequências da bulimia não tratada. Dentre as situações que a levaram a ser bulímica, destaca: “quando eu tinha uns 13 anos, tinha uma ‘amiga’ que era modelo e que vivia indo na minha casa. Um dia, eu tava trocando de roupa na frente dela, ela pegou um pneuzinho na minha barriga e começou a rir descontroladamente, dizendo que eu tava gorda, que era feio, se um cara me visse pelada, ia cair na gargalhada porque eu tinha ‘bucho’. Foi mais ou menos nessa época que eu comecei a vomitar”.

Já G. também adotou a bulimia, porém aos 14 anos. Para ela, ver as outras meninas de sua idade desenvolvendo um biotipo de corpo que não se parecia com o seu a deixava preocupada com sua alimentação. Cerca de dois anos depois, conseguiu contar para sua mãe o que estava acontecendo e esta lhe aconselhou a conversar com a terapeuta que já tratava de seus outros transtornos.

Atualmente, G. ainda reconhece que é difícil aceitar seu corpo do jeito que ele é devido a pressão estética que a sociedade impõe sobre as mulheres desde a infância, mas não se dá por vencida. “Hoje em dia eu busco me conhecer cada vez mais e me libertar do padrão imposto pela sociedade, amando cada curva do meu corpo”.

Na intenção de alertar jovens a respeito dos riscos de fazer parte desta realidade, há séries, filmes e novelas abordando o assunto em suas tramas. A série Skins, o filme O mínimo para viver e até mesmo a novela Malhação, retrataram personagens que sofriam de distúrbios alimentares.

Por outro lado, há a ortorexia, que é marcada por uma compulsão de estilo de vida saudável. Pouco explorada pela ciência, foi nomeada há aproximadamente duas décadas e tem se tornado cada vez mais comum entre jovens. A psicóloga Graziela Faccioni trabalha em conjunto com a nutricionista Daniela Dal Pozzo no tratamento de pacientes que buscam não apenas o emagrecimento, como também a saúde mental. “Tem casos que a pessoa tinha uma compulsão alimentar e consegue controlar isso e daí ela vira o louca da academia. Ela não falha nunca; vai viajar, vai na academia… será que ela realmente está curada da parte alimentar ou ela trocou de compulsão?”

Mensagens de grupo de WhatsApp, em tradução livre: “Vocês estão todas tão lindas!!! Eu estou apenas gorda & feia.” “Não. Você está bonita! E você está ficando mais magra agora” “Exatamente.” “Amanhã, eu tentarei comer quase nada. Eu vou compensar no fim de semana quando meus pais tiverem saído.” Imagem: Reprodução da internet.

Ao contrário da romantização dos blogs e comunidades virtuais, no mundo real, tais patologias tomaram proporções preocupantes. Segundo dados divulgados em 2009 pela Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e da Síndrome Metabólica (Abeso), a nível mundial, a anorexia atinge cerca de 1% das mulheres enquanto a bulimia 5%. Já em 2014, a Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo divulgou uma pesquisa que aponta que 77% possui propensão a desenvolver algum transtorno alimentar, sendo o Brasil o país que mais consome remédios de emagrecimento.

A endocrinologista Sandra Van De Sande Lee, do Hospital Universitário da Universidade Federal de Santa Catarina, ressalta que não apenas o psicológico fica debilitado ao ser acometido por um distúrbio alimentar, como também o corpo passa a demonstrar desequilíbrios fisiológicos. “Pode ocorrer hipoglicemia?—?níveis baixos de açúcar no sangue?—?, baixa de hormônios sexuais, ausência total da menstruação, alterações dos níveis de minerais no sangue, principalmente potássio, e diminuição da densidade dos ossos, podendo evoluir para osteoporose. O paciente ainda pode desenvolver anemia, alterações nos rins e cardíacas. Em casos mais graves, pode levar à morte”.

DESCONSTRUINDO

Na contramão de perfis que pregam ideais estéticos irreais, manipulam corpos, experiências, relacionamentos e maquiam inseguranças, começam a despontar perfis dispostos a remar contra a maré, buscando romper com os padrões rigidamente impostos e expor suas falsas perfeições. Problemas de autoaceitação, distorção da imagem corporal, distúrbios alimentares, inseguranças estéticas e sentimento de exclusão entram em pauta justamente em uma plataforma que ajudou a reforçar esses falsos critérios de beleza: o Instagram.

O ideal estético é, aos poucos, desconstruído com a inserção de imagem de mulheres reais, com corpos que fogem do restrito padrão e seus corpos carregados de simbolismo só por se fazerem presentes?—?nus e despidos de inseguranças. A fotógrafa Milena Paulina, de 23 anos, em busca de representatividade, resolveu formar o coletivo Eu, Gorda, com o intuito de fotografar mulheres gordas nuas ou de roupa íntima para que vissem beleza em seus corpos como veem em outras mulheres. “Eu sou uma mina gorda e, quando eu vi uma mina gorda nua em uma foto, aquilo me mudou muito. Eu pensei: também preciso me enxergar dessa mesma forma, sabe? Não necessariamente me enxergar bonita, mas me enxergar como algo que existe.”

“Quando criança, passei por algo que me fez apagar a existência do meu corpo, aos meus próprios olhos. Eu ainda olhava meu corpo e não entendia nada sobre a existência dele”, relata em uma breve apresentação sobre seu trabalho. Fotógrafa há 2 anos, sua conta no Instagram possui mais de 29 mil seguidores e ela já coleciona ensaios com youtubers que também discutem sobre a falta de representatividade de seus corpos.

Todavia, mesmo possuindo milhares de seguidores que se identificam e se sentem contemplados com o conteúdo produzido por estas mulheres, existem pessoas que se sentem incomodadas e não medem ofensas em fotos e vídeos postados em suas redes. Durante entrevista, R. admite não olhar os comentários postados por outros usuários, pois, quando são negativos, se sente afetada por eles. “Quando eu vejo uma pessoa gorda sendo esculachada por causa do corpo, eu me sinto tão mal por mim também, sabe? Porque poderia ser eu”.

Visto que a existência de influenciadores digitais que discutem a importância da auto-aceitação e saúde mental acaba por criar uma tendência, é comum encontrar publicações na internet com feminismo, amor próprio e depressão nos títulos, fazendo parecer que tais assuntos são o estilo de roupas das estação.

K. tem 30 anos e utiliza pouco as redes sociais por reconhecer que é um ambiente tóxico para ela. Por outro lado, acredita que a mudança vai acontecer aos poucos. “Não vislumbro que essas redes sociais e esses movimentos que tão acontecendo agora vão acontecer a nível de serem equivalentes com todo esse padrão que a gente já tem vivido. Acho que, ao longo dos próximos 50 ou 60 anos, várias barreiras ainda vão ser quebradas e que a gente vai conseguir ver os resultados”.

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