O fetiche cruel do “Ouro Olímpico”

Por Ian Johnson*.

É possível acompanhar os Jogos Olímpicos de duas maneiras. A primeira é a certa: você presta atenção nos atletas e torce por boas performances. Você os vê chorar e se abraçar de felicidade ou olha feio por um mau desempenho. Você simpatiza com eles como seres humanos e debate se Michael Phelps é o melhor atleta olímpico de todos os tempos ou apenas o melhor nadador. Você pensa sobre doping mas tenta acreditar que as agências esportivas o mantêm mais ou menos sob controle.

E também há o meu jeito de assistir à Olimpíada: como um estudo estatístico sobre geopolítica e políticas públicas destrutivas. Os indivíduos importam, até certo ponto – mais como produtos do sistema do que como personalidades distintas. Admiro o desempenho do chinês Ye Shiwen, mas me pergunto mais sobre por que os técnicos de natação do país recebem quase tanto quanto os investimentos do governo central gasta com a preservação da cultura popular, quase morta no país. Acho que Phelps é um grande espécime físico, mas me pergunto por que os norte-americanos ficam cada vez mais gordos. E olho com espanto o repentino crescimento da Grã-Bretanha no quadro de medalhas – o conto de fadas de um país com complexo de inferioridade que decidiu gastar enormes quantias de dinheiro em chamar a atenção das elites esportivas: a inveja do pênis moderna.

As Olimpíadas costumavam ser mais fáceis de acompanhar. Nos primeiros cinquenta anos, eram um evento muito menor, comumente interrompido por guerras. Apenas Hitler parecia perceber o potencial de relações públicas dos jogos. Então, veio a Guerra Fria e as disputas tornaram-se um campo de batalha para ideologias rivais. Países como a Alemanha Oriental e a União Soviética gastavam enormes somas em esportes, como uma forma de ganhar reconhecimento. Especialmente a Alemanha Oriental, que precisava de respeitabilidade, tinha um desejo quase patológico sobre o sucesso nas Olimpíadas. Em apenas cinco edições, o país ganhou 409 medalhas.

A maior parte das pessoas pensa que o sucesso do antigo bloco socialista era apenas uma questão de doping geneeralizado – mulheres com pomo-de-adão e barba. Mas os países inteligentes perceberam que havia outras explicações para o sucesso. Os países do Pacto de Varsóvia gastaram muito em esportes, é verdade, mas a chave era que eles se concentravam apenas nos atletas com chances de ganhar medalha. A Alemanha Oriental, por exemplo, nunca se importou com hóquei no gelo, porque percebeu que teria de treinar pelo menos uma dúzia de atletas de elite para montar um time – e mesmo assim, seria difícil competir com as potências estabelecidas. Ao invés disso, focou-se nos esportes em que um atleta poderia ganhar várias medalhar – ciclismo, por exemplo. Isso também evitava esportes que dependem de equipes (basquete, baseball, hóquei no gelo e outros): era melhor apoiar atletas que treinavam sozinhos por precisarem de menos infra-estrutura. E é claro que atletas como Katarina Witt ganharam bastante dinheiro – e visibilidade nacional – para fazer disso uma profissão. Amadorismo era para perdedores.

Mesmo antes de a Guerra Fria acabar, os países ocidentais imitaram essas táticas. A Coreia do Sul chamou muita atenção nos Jogos Olímpicos de Seul, em 1988, ao ganhar mais medalhas que a Alemanha Oriental e acabar em quarto lugar no quadro de medalhas. A Austrália foi ainda mais longe: depois de não ganhar nenhuma medalha de ouro nos jogos de Montreal, em 1976, montou uma burocracia de esportes centralizada, que estabeleceu novos padrões atléticos e canalizou recursos para programas de treinamento e especialmente para os ganhadores. Apesar da pequena população, o país ficou em quarto lugar no quadro de medalhas de Sidney e Atenas (caiu para sexto em Beijing e aparentemente está ainda pior, em Londres).

Os problemas da Austrália refletem o acirramento da competição e o fato de as democracias terem maior dificuldade em financiar pesadamente luxos como esportes. Outros países, com ainda mais habitantes e dinheiro, começaram a canalizar recursos para a elite esportiva com grande chance de ganhar medalha. Curiosamente, o Comitê Olímpico Internacional (COI) implicitamente apoia esta mentalidade da medalha de ouro. Seu site não estampa um quadro de medalhas, mas apenas uma classificação dos países segundo as medalhas de ouro alcançadas. As de prata e bronze são contabilizadas apenas como desempate. Isso evidencia o que apenas os norte-americanos classificam os países pelo total de medalhas. Para todos os outros no mundo, o ouro é o que importa.

Ainda mais notável é que a Alemanha mudou de rumos e começou a retomar a política da Alemanha Oriental, em favor de escolas atléticas. A peça central é o enorme Centro de Ensino e Performance em Esporte, em um subúrbio de Berlim Oriental, não distante da prisão da Stasi em Hohenschönhausen (isso não é um tiro no escuro; os dois eram parte do aparato de domínio do partido). Por anos, a escola apodreceu, com apenas um pequeno setor, que funcionava como estabelecimento de ensino médio. Agora, está sendo renovada. A piscina foi reaberta e antigos treinadores da Alemanha Oriental foram trazidos de volta. Apesar do doping ser banido e de os regimes de treino não serem tão extremos, é uma mudança radical, para um país que estava revoltado com os excessos da máquina de esportes da Alemanha Oriental, fechada quase completamente nos anos 1990.

Mas os esforços da Alemanha estão apenas começando – o país está caminhando para uma das suas piores performances nas Olimpíadas – e de qualquer forma, ficará muito atrás da China. O governo chinês não revela seu orçamento para esportes de elite, mas o volume é incrível. De acordo com reportagens da imprensa australiana, treinadores estrangeiros ganham 250 mil dólares por medalha de ouro, 150 mil por prata e $100 mil por bronze. O treinador de Ye, Ken Wood, disse que “o dinheiro não é o objetivo” – mas os atletas chegam acompanhados de grupos completos de treinadores e cozinheiros, e vivem em apartamentos de luxo. Fiz a comparação com a cultura popular porque, segundo uma antiga autoridade chinesa que entrevistei esse ano, o país gasta US$ 2 milhões por ano para proteger artistas folclóricos de música, teatro e dança.

Escolher a China, no entanto, não é justo. Qualquer país tem necessidades mais importantes que medalhas de ouro para um atleta. Enquanto a Sports England – a organização de esportes de massa, voltada para a participação popular e a vida saudável – teve seu orçamento para este ano reduzido a 82 milhões de libras (eram £98 milhões, em 2011); a UK Sports (que financia a elite esportiva) gastará £264 milhões com os jogos de Londres. Focará principalmente em esportes nos quais a Grã-Bretanha tem chances de ganhar ouro. Isso torna cada vez mais improvável que os Jogos incentivem a prática de esportes. Na vida extra-Olimpíadas, as praças esportivas estão sendo vendidas para cortar os gastos.

E os Estados Unidos? O país não tem uma agência de esportes centralizada, para promover o sucesso. Em vez disso, os êxitos dos EUA refletem algo mais novo, mas também mais traiçoeiro. Do lado positivo, o país tem uma sociedade civil vibrante e muitos filantropos querendo ajudar. Mais recentemente, a Nike participou do financiamento de corridas de longa distância, ajudando a revitalizar as chances norte-americanas nesse campo. Mas apenas as escolas e universidades têm uma rede importante de equipamentos esportivos. Nada disso é produto de um esquema governamental para iludir os cidadãos com pão e circo.

Mas isso reflete o lado ruim – o fato que muito do sucesso esportivo dos Estados Unidos é devido a um redirecionamento de prioridades que começa nas raízes. Eu estudei na Universidade da Flóriida, a alma mater do nadador Ryan Locht, que ganhou duas medalhas de ouro em Londres. É uma escola que enlouqueceu em relação aos esportes, construindo um estádio profissional de futebol americano e luxuosas instalações para os atletas. A instituição afirma que os esportes são um setor separado e auto-sustentado, mas o efeito no campus é debilitante. A escola oferece prêmios fáceis aos atletas e fomenta uma cultura de que os esportes são tão importantes quanto a academia. Em alguns momentos, parecia que você estava em uma escola de esportes com outros cursos adjuntos.

Os esportes tornaram-se tão ensandecedores nos Estados Unidos que as famílias gastam quantias enormes de dinheiro em crianças com potencial atlético de elite. Os pais de Lochte perderam sua casa hipotecada, e a mãe da ginasta Gabby Douglas tornou-se insolvente. Nada disso significa que os norte-americanos estejam mais ativos ou saudáveis que em outros países. Para a maioria, esportes é algo para ser vista, ou praticado em equipamentos muito caros ou clubes muito seletos, uma ou duas vezes por semana.

Então, como comparar os países estatisticamente? Um de meus sites preferidos nesses jogos tem sido uma rede de televisão alemã, ARD. Ela criou um “barômetro de medalhas” que permite seguir a quantidade de medalhas de ouro de um país ao longo do tempo. A página é em alemão, mas é fácil de usar. Clique em quantos países desejar, e o software compara os ouros obtidos por eles. É difícil não ver isso como espelho da ascensão dos países. Compare a China com os Estados Unidos, e você verá uma potência tradicional enfrentando um país que veio “do nada” para ganhar. E se você comparar regiões – a página permite isso – poderá acompanhyar a ascensão da Ásia e o declínio da Europa.

Isso parece menos inocente quando você conhece o poder do dinheiro. Escolha a Austrália e veja o crescimento e queda. Ou compare a Alemanha (uma potência tradicional em esportes, com estruturas esportivas públicas fantásticas) com a Grã-Bretanha, que é uma versão ocidental da China – um país com infra-estrutura pública para esportes imitada e pouca participação popular, mas decidido a ganhar ouros. Esse gráfico não passará em branco na Alemanha, que provavelmente vai investir ainda em esportes de elite e reduzir ainda mais as instalações públicas esportivas.

O que provavelmente a maioria das pessoas esquecem é que 77 dos países ou territórios do mundo nunca ganharam uma medalha. Se a maioria não fosse pobre, alguém poderia considerá-los sortudos – livres da corrida que consome os possíveis campeões.

Tradução: Daniela Frabasile

*Ian Johnson, no New York Review of Books. Ele escreve para o New York Review of Books de Beijing e Berlim. Prepara um livro de ensaios sobre a China: Chinese Characteres: Profiles of Fast-Changing Lives in a Fast-Changing Land [“Tipos Chineses: perfis de vidas que mudam rápido, num país que se transforma rapidamente”]

Foto: O sul-coreano Hyeonwoo Kim.

Fonte: http://www.outraspalavras.net/

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