Notícias falsas: votação apressada pode aprovar texto que cria brechas à censura política

Especialistas e entidades da sociedade civil alertam para riscos à privacidade e à liberdade de expressão nas redes

Foto: Pexels

Por Cristiane Sampaio.

Atualmente em sua quinta versão, o relatório do Projeto de Lei 2630/2020, conhecido como “PL das Fake News”, continua gerando protestos. Com votação adiada para a próxima terça-feira (30) após as divergências que surgiram com a apresentação do texto minutos antes da votação, inicialmente prevista para quinta (25), a proposta é alvo de críticas de especialistas e entidades civis que acompanham o tema no país. De autoria do senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE), o texto é relatado pelo vice-líder do PSD no Senado Ângelo Coronel (BA).

Os opositores apontam que a última versão do parecer trouxe alguns avanços, mas tem pontos considerados preocupantes. Um deles é a permissão para que as plataformas digitais retirem do ar, de forma imediata, conteúdos que possam ser objeto de uma ação penal. A Coalizão Direitos na Rede, que aglutina 37 entidades civis, afirma que a medida mexe com questões subjetivas que podem ser manobradas de forma equivocada e promover a censura.

“A gente pode ter, sem dúvida, uma derrubada excessiva de conteúdos e o cerceamento à liberdade de expressão principalmente pra quem estiver usando as redes pra fazer critica política, pra criticar governantes, membros do parlamento e do Poder Judiciário, pra criticar autoridades”, realça Bia Barbosa, do coletivo Intervozes, uma das organizações participantes da frente.

Pode fortalecer os mecanismos de censura privada que as plataformas já desenvolvem.

A proposta teria sido inspirada na legislação alemã, que passou a adotar a medida nos últimos tempos, mas hoje é motivo de controvérsias. “É algo que está sendo muito criticado por organizações de defesa da liberdade de expressão lá e talvez seja até revisto pelo Parlamento alemão. Aqui no Brasil, o relator resolveu copiar isso no último minuto. Isso, sim, pode fortalecer os mecanismos de censura privada que as plataformas já desenvolvem”, alerta a especialista.

A coleta de dados pessoais de usuários de internet é outro trecho do texto que incita controvérsias. A proposta cria mecanismos de identificação obrigatória de internautas para que seja permitido navegar nas redes sociais e utilizar aplicativos de mensagens. Esse aspecto está entre os alertas feitos pelas organizações da Coalizão, que soltaram nota pública nesta sexta-feira (26).

O ponto já vinha sendo criticado nas versões anteriores do parecer de Ângelo Coronel e foi reformulado pelo relator em sua quinta versão, mas segue recebendo críticas pelo fato de permitir que a medida seja aplicada a partir de denúncias, dúvidas ou processo judicial. A novidade restringe o conjunto dos brasileiros que devem ter os dados coletados.

Isso pode ser usado pra perseguir ativistas, jornalistas, defensores de direitos humanos.

Bia Barbosa avalia que a ideia de exigir o repasse de dados mediante provocação de um internauta tende a criar uma “guerra de denúncias” para derrubar determinados perfis. Mais uma vez, a subjetividade impõe riscos à medida, segundo avalia a especialista.

“Da forma como está colocado, isso é algo que não vai depender de nenhuma análise técnica, nem das plataformas nem de nenhuma suspeita fundada de autoridades, de investigação, do Ministério Público, etc. Vai depender de uma mera denúncia de um usuário pro outro. Isso pode ser usado pra perseguir ativistas, jornalistas, defensores de direitos humanos, pessoas que estão fazendo denúncias contra o poder público, etc.”, salienta.

Em entrevista ao portal UOL na quinta-feira (25), o autor do PL, senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE), disse não ver associação entre a identificação dos usuários e as chances de cerceamento da liberdade de expressão. Ele afirmou ainda que a proposta não irá criar o “Ministério da Verdade” e que o “PL não trata de conteúdo que possa ser encarado como censura”.

“Me parece um pouco de má vontade do autor não conseguir entender isso quando até o relator da ONU [Organização das Nações Unidas] está chamando atenção pra essa questão”, contrapõe Bia Barbosa, em referência a uma manifestação feita por David Kaye. Na última segunda-feira (22), ele pediu que o Congresso Nacional adiasse a votação do PL.

“O Congresso brasileiro está promovendo um projeto de lei sobre desinformação que parece ser extremamente problemático em relação a temas como censura, privacidade, Estado de direito e devido processo legal, entre outros”, disse o relator da ONU para a Liberdade de Expressão.

Já o relator do PL, Ângelo Coronel, afirma, em seu parecer, que a ideia seria buscar “maior transparência nas práticas de moderação de conteúdos postados por terceiros em redes sociais”.

Número de telefone

O relatório do parlamentar também prevê a suspensão de contas de usuários de serviços de mensagens instantâneas para os casos em que o número de telefone do internauta tiver sido desabilitado. Contrário à proposta, o jurista e ciberativista Paulo Rená, do Instituto Beta Internet e Democracia (Idibem), sublinha que nem todos os serviços dessa natureza estão vinculados a uma conta telefônica, como é o caso de aplicativos como o Signal e o Messenger, este último pertencente ao Facebook.

É uma invenção muito prejudicial, em especial pra quem é pobre.

“Veja bem, [suponhamos] que alguém furtou meu telefone. Eu ligo pra operadora pelo celular de um amigo, falo o que ocorreu, eles cancelam minha conta, aí eu vou nos meus perfis no Facebook, no Instagram, no Telegram pra avisar aos meus contatos que aconteceu isso comigo, mas não consigo comunicar isso porque a minha conta vai ter caído por causa da obrigação que a empresa vai ter de fazer isso”, exemplifica Rená, acrescentando que a iniciativa também tende a gerar exclusão.

“É uma invenção muito prejudicial, em especial pra quem é pobre. A pessoa não tem dinheiro, não paga a conta, pode ter internet por wi-fi do vizinho, de algum lugar, por exemplo, e vai ficar sem [acesso]. A gente não vê nem de onde saiu isso”, enfatiza.  

Diálogo

Os especialistas e entidades envolvidos no tema se queixam ainda da pressa na tramitação do PL, que foi protocolado em meados de maio e, por conta do novo sistema de votações remotas do Congresso Nacional, não passou por audiências nem consultas públicas. O esquema de trabalho adotado pelo Legislativo durante a pandemia reduziu o rito de andamento das propostas, que agora não precisam passar por debates nas comissões e vão direto ao plenário após acordo entre as lideranças das bancadas.

Movidos pelo contexto pré-eleitoral e pelo cenário de maior oposição popular às fake news por conta do avanço do coronavírus, ocasião em que as autoridades de saúde batalham contra a disseminação de conteúdos falsos nas redes sobre a doença, os parlamentares que defendem a matéria estariam vendo o atual momento como uma janela de oportunidade para tentar acelerar a proposta, que também precisa seguir para avaliação da Câmara dos Deputados, caso seja aprovada no Senado.

De modo geral, os parlamentares favoráveis ao PL têm dito que consideram o debate sobre o tema amadurecido, mas o rito enxuto não escapa às críticas da sociedade civil. O grupo pede prazos mais largos para a discussão do PL e a realização de debates multilaterais para aprofundar a pauta.

“Isso tudo, essa pressa limita o debate institucional. O processo todo é muito estranho e a nossa percepção é de que o relatório de quinta-feira disparou novos alertas. Será que daqui pra terça-feira não vem coisa por aí? A gente fica nessa interrogação e de orelha em pé. Temos que ficar atentos a tudo e renovar na sociedade [o estímulo] pra que as pessoas se engajem e entendam essa preocupação”, encerra Paulo Rená.

Edição: Rodrigo Chagas

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