Moro e a mídia: jogando perigosamente para a torcida

Sérgio Moro recebe das mãos dos donos do grupo Globo o prêmio de homem do ano 2014.
Sérgio Moro recebe das mãos dos donos do grupo Globo o prêmio de
homem do ano 2014.

Por Samuel Lima.*

Há quase dois anos, em 17 de março de 2014, a Polícia Federal deflagrou a chamada Operação Lava Jato, em seis Estados e no Distrito Federal. Num primeiro momento, 22 pessoas foram presas, entre elas um conhecido “delator” de outro grande escândalo – o Caso Banestado, em 2003, que virou uma CPI no Congresso e terminou em “pizza”. Trata-se do doleiro Alberto Youssef, suspeito de “comandar o esquema” que teria movimentado cerca de US$ 10 bilhões em propina da Petrobras.
De lá para cá, são 22 fases, dezenas de presos, dentre os quais empresários e executivos de mega empresas da construção civil, entre elas a Engevix, Odebrecht, Andrade Gutierrez, OAS, Galvão Engenharia, Camargo Correia e UTC.
A 22ª fase, batizada de “Triplo X”, cujo foco é investigar a propriedade de um apartamento tríplex, atribuída ao ex-presidente Lula, foi anunciada no último dia 27 de janeiro deste ano. Os “nomes” das operações foram meticulosa e midiaticamente pensados para repercutir da forma mais ampla possível. Revisitei alguns: “Juízo Final” (no contexto das eleições de 2014), “Pixuleco” (nome dado ao boneco do ex-presidente Lula vestido de presidiário), “Radioatividade”, “Erga Omnes” (o estardalhaço da prisão dos presidentes da Odebrecht, Marcelo Odebrecht, e Otávio Azevedo, da Andrade Gutierrez), “Que País é este?”, “My way” entre outros.
Entrando em seu terceiro ano de existência, o jogo entre mídia, o Judiciário Federal aqui representado pelo juiz Sérgio Moro, Ministério Público Federal (do Paraná) e Polícia Federal, parece entrar em seu momento mais sensível e complexo, do ponto de vista do futuro da democracia e do Estado Democrático de Direito, no país.
Moro convoca a opinião pública
Nos últimos dias, circulou pelas redes sociais, blogs e portais noticiosos, o trecho de um discurso do juiz Sérgio Moro, cuja plateia era composta por empresários, profissionais de mídia e formadores de opinião, em São Paulo. Reproduzo o trecho final, objeto de milhares de compartilhamento nas diferentes redes (confira aqui:http://migre.me/t0b8D):
“Eu estou vinculado aos fatos, às provas e à lei. E é isso que eu vou fazer nos meus processos. Seja para absolver o inocente, seja para condenar o culpado. E eu me disponho a ir até o final dos meus casos. Mas esses casos envolvendo graves crimes de corrupção, envolvendo figuras públicas poderosas, só podem ir adiante se contarem com o apoio da opinião pública e da sociedade civil organizada. E esse é o papel dos senhores. Muito obrigado!”
Notem, caros leitores e leitoras, que o magistrado faz inusitado apelo à opinião pública e à sociedade civil organizada, atribuindo aos seus interlocutores esse “papel”: o de mobilizar a sociedade em apoio às sentenças que ele, Moro, vier a proferir em nome do suposto combate à corrupção.
Ora, desde quando uma ação legítima do Judiciário, no cumprimento estrito de sua missão constitucional, depende da mobilização da opinião pública e sociedade civil organizada? O que se espera, num processo de tão demorada e profunda investigação, é a condenação dos eventuais culpados, com a apresentação de provas irrefutáveis de seus crimes, sem atropelo do amplo direito de defesa previsto em Lei.
Na prática, o que se tem visto, é um processo de vazamento seletivo de fragmentos da investigação (documentos, depoimentos em vídeo) sempre para as mesmas empresas de mídia – grupos Folha de S. Paulo, O Globo (TV e jornal) e Abril (revista Veja). Das 22 fases da Lava Jato, as 10 de maior impacto e repercussão foram deflagradas em dias de fechamento das edições das revistas semanais (quinta e sexta), pauta casada e conectada ao Jornal Nacional dos sábados e edições dos programas noticiosos e de entretenimento na noite de domingo. O casamento entre Moro e a mídia é inequívoco, consagrado pela prática e crença do magistrado que sempre se espelhou no modelo da “Operação Mãos Limpas”, na Itália.
Rompendo a “conspiração do silêncio”
A última fase da longa investigação (batizada de “Triplo X” ou “Triple-X”) é um gesto final na tentativa de Sérgio Moro prender o ex-Presidente Lula, a quem o juiz chama de “Nine” (do inglês nove, uma referência jocosa a Lula).
O antenado observador de mídia Luís Nassif publicou atual e pertinente análise sobre o jogo Moro-Mídia, incluindo também o indefectível ministro Gilmar Mendes (Supremo Tribunal Federal), que assumirá em maio deste ano a presidência do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Escreve Nassif: “Nos últimos dias, o juiz Sérgio Moro explicitou de vez seu ativismo político. Manteve um fluxo interminável de vazamentos contra Lula, em relação ao tal tríplex de Guarujá e o sítio de Atibaia. Quebrou “inadvertidamente” o sigilo que a própria Polícia Federal solicitava para a ampliação das investigações sobre o sítio, a fim de não interromper o fluxo de vazamentos” (leia o post aqui:http://migre.me/t0dRA).
Na realidade, uma das últimas jogadas no xadrez de Moro foi mandar “deter funcionários da Murray, empresa controlada pela Mossak Fonseca, lavanderia panamenha, em nome da qual estavam vários imóveis do edifício Solaris de Guarujá. Quando se soube que a Murray detinha o controle também da mansão dos Marinho, das Organizações Globo, em Paraty, foram soltos imediatamente e o assunto morreu” (Fonte cit.).
Qual o nexo dessas decisões de Moro com o jogo da alta política no país? Nassif explica com clareza solar: “Essas preliminares são importantes para se analisar os antecedentes de sua decisão de “oferecer” ao TSE (Tribunal Superior Eleitoral) três delatores visando incriminar o Caixa 1 da campanha de Dilma Rousseff”. Com Gilmar na presidência, a oposição tentará a última carta do impeachment da Presidente da República.
Nesse contexto de alta sintonia entre Moro e os principais grupos de mídia, seria impensável supor que alguém rompesse o “pacto de silêncio da mídia” em torno, por exemplo, da mansão tríplex da família Marinho, no litoral de Paraty. O cartunista Laerte, da Folha de S. Paulo, rompeu o silêncio na edição desta terça (16/02/2016, pg. A2) e publicou uma charge histórica (veja ao lado), na qual anuncia que “aceita permuta com tríplex em Guarujá”.
Democracia e combate à corrupção
Para o jornalista Janio de Freitas (Folha de S. Paulo), uma das vozes mais respeitadas da mídia brasileira, o jogo midiático do juiz Sérgio Moro impõe riscos à democracia e ao futuro da luta contra a corrupção, no país. Ele resgatou (em sua coluna de 21/01/2016) um episódio de manipulação recente (da gravação à transcrição) de parte da delação premiada de Paulo Roberto Costa, que inocenta o empresário Marcelo Odebrecht.
Segundo Freitas, não houve erro de leitura ou releitura. Comparemos: a) transcrição da fala do delator premiado na Lava Jato: “Paulo Roberto Costa, quando de seu depoimento perante as autoridades policiais em 14.7.15, consignou que, a despeito de não ter tratado diretamente o pagamento de vantagens indevidas com Marcelo Odebrecht”; b) o que disse Costa aos procuradores que assim transcreveram foi o seguinte: “Então, assim, eu conheço ele, mas nunca tratei de nenhum assunto desses com ele, nem põe o nome dele aí porque ele, não, ele não participava disso”.
Não precisa, obviamente, desenhar. Janio de Freitas acrescenta ao final: “É chocante a diferença entre a transcrição e o original, entre ‘não ter tratado diretamente com Marcelo Odebrecht’ e ‘nem põe o nome dele aí por que ele, não, ele não participava disso’. A reformulação da frase e do seu vigor afirmativo só pode ter sido deliberada. E é muito difícil imaginar que não o fosse com dose forte de má-fé. Do contrário, por que alterá-la?”. O procurador federal Roberson Pozzobon chamou isso de “tempestade em copo d’água” e o atribuiu “releitura equivocada” do advogado de defesa. Não se trata de equívoco de leitura, releitura ou algo assim. Foi um grave erro ético de Moro e sua equipe, sem meias palavras.
Resgato as palavras de Freitas, recolocando os riscos dos desatinos da Lava Jato, em dimensão e retrospectiva histórica: “Se a Lava Jato almeja corrigir maus costumes, só pode ter autoridade se não incorrer, ela própria, em alguns deles. O rigor nos procedimentos não impede e nem mesmo dificulta investigações e a condenação de quem deva tê-la. O contrário do rigor foi o que começou como mau uso de poder, na Petrobras, e levou a criação da Lava Jato”.
A ver os desdobramentos do jogo de Moro-mídia, nas cenas dos próximos capítulos.
(*) Professor do Departamento de Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). É pesquisador do Laboratório de Sociologia do Trabalho (LASTRO/UFSC) e do Observatório da Ética Jornalística (objETHOS/UFSC).

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