Militares levam Covid-19 à Amazônia, mas recusam termo “genocídio”

Titulares da Defesa, do Exército, da Marinha e da Aeronáutica reagiram a fala de Gilmar Mendes, do STF, exatamente pelo uso da palavra; mas tropa verde-oliva aparelhou Funai e retomou espírito missionário que lembra os piores tempos da ditadura de 1964

Militares realizam missão contra Covid-19 no Parque Indígena do Tumucumaque (Foto: Exército)

Esplanada da Morte (XIV) — Militares levam Covid-19 à Amazônia, mas recusam termo “genocídio”

Por Bruno Stankevicius Bassi.

Reações exaltadas, ameaças, pedidos de retratação. As declarações do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes sobre as Forças Armadas estarem “se associando” ao genocídio posto em marcha pelo governo de Jair Bolsonaro, realizadas durante um debate online no dia 11 de julho, caíram como uma bomba no meio militar. De Olho nos Ruralistas mostra, nesta reportagem e nesta série, de onde o ministro do STF tirou essa percepção.

Em nota conjunta, o ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, e os chefes do Exército, Marinha e Aeronáutica, classificaram a fala de Gilmar como um “ataque gratuito”, chamando a acusação de “irresponsável e sobretudo leviana”. Três dias depois, o alto comando militar protocolou uma representação contra o ministro na Procuradoria-Geral da República (PGR).

A crise entre as instituições forçou o presidente Jair Bolsonaro, conhecido por seu perfil incendiário, a assumir um papel inédito de “apaziguador”, tentando acalmar o ímpeto dos militares — dois meses depois da reunião, revelada pela revista Piauí, em que pediu apoio das Forças Armadas para fechar o STF.

Comandando onze ministérios, os militares superam o Centrão e o núcleo ideológico como principal bloco de poder dentro do governo e são tema central da série Esplanada da Morte que, desde o dia 28 de julho, vem detalhando o papel de cada ministro (entre outros executivos do governo Bolsonaro) na matança que já vitimou 111 mil brasileiros.

Entre eles, dois militares: o general Eduardo Pazuello, ministro interino da Saúde, e o coronel Robson Santos da Silva, chefe da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai).

A décima quarta reportagem da série foca na pasta da Defesa, responsável por articular as ações do Exército, Marinha e Aeronáutica. Acusados de disseminar a Covid-19 entre os povos indígenas da Amazônia, os militares voltam a emular o passado sombrio da ditadura.

MISSÕES CONTRIBUEM PARA DISSEMINAÇÃO DA PANDEMIA

A logística precária e as grandes distâncias entre as aldeias e os centros urbanos — onde se concentra boa parte dos leitos hospitalares — faz as Forças Armadas terem um papel central na atenção primária de saúde aos povos indígenas da Amazônia, em articulação com a Sesai. Um protagonismo que cresceu com a pandemia.

Desde a publicação da Portaria Nº 1.232/GM-MD em 18 de março, que implementou a Operação Covid-19, militares protagonizaram diversas missões de atendimento à comunidades remotas. No Parque Indígena do Tumucumaque, na divisa entre Pará e Amapá e próximo da fronteira com o Suriname, profissionais de saúde do Exército realizaram, em julho, o atendimento médico e distribuição de cestas básicas a cerca de trezentos indígenas das etnias Tiriyó e Kaxuyana.

Missão militar causou aglomeração na TI Yanomani. (Foto: Reprodução)

O local serve de base para o 1º Pelotão Especial de Fronteira, onde, segundo líderes locais, dois indígenas, funcionários de uma empresa de limpeza que presta serviços para a Aeronáutica, contaminaram-se e levaram a Covid-19 para a aldeia Missão Tiriyó, dando início ao surto na região. À Folha, o Comando Militar do Norte confirmou que um militar do Exército apresentou sintomas graves e teve diagnóstico confirmado para a doença.

Outra missão, desta vez na Terra Indígena Yanomami, em Roraima, também foi cercada de polêmica. Realizada entre 30 de junho e 1º de julho, a delegação levou ao território — que até então não tinha nenhum caso confirmado de Covid-19 — o ministro da Defesa, Fernando Azevedo e o ministro Roberto Barroso, do STF, além de uma equipe inteira de jornalistas e fotógrafos da agência AFP. A missão contou com a presença de esposas de militares, que, conforme relatou o UOL, distribuíram roupas, maquiaram e pintaram as unhas de mulheres indígenas, causando aglomeração.

Segundo o portal Amazônia Real, o Ministério da Defesa aproveitou a ocasião para distribuir 66 mil comprimidos de cloroquina entre os indígenas das TIs Yanomami e Raposa Serra do Sol. O número responde por dois terços dos 100.500 comprimidos do medicamento, amplamente rejeitado por infectologistas, que foram entregues a indígenas, como contamos em julho: “Governo federal distribuiu 100 mil unidades de cloroquina para indígenas“.

A história rocambolesca levou o Ministério Público Federal (MPF) a abrir um inquérito para investigar se a missão violou as regras de distanciamento social e apurar como se deu a distribuição da cloroquina entre os indígenas da região.

PESQUISADOR ALERTA PARA MILITARIZAÇÃO DA POLÍTICA INDIGENISTA

O papel dos militares no governo Bolsonaro vai muito além da condução da política de saúde durante a pandemia. Membros das Forças Armadas, incluindo reformados, controlam onze dos 23 ministérios.

Fernando Azevedo em sua despedida do Exército, em 2018. (Foto: Reprodução)

Além de Fernando Azevedo na Defesa e Eduardo Pazuello na Saúde, militares comandam as pastas de Infraestrutura (Tarcísio Gomes de Freitas), Minas e Energia (Bento Albuquerque), Educação (Milton Ribeiro), Ciência e Tecnologia (Marcos Pontes) e Segurança Institucional (Augusto Heleno). São eles os principais articuladores do governo, chefiando a Casa Civil (Walter Souza Braga Netto), a Secretaria de Governo (Luiz Eduardo Ramos), a Controladoria-Geral da União (Wagner Rosário) e a Secretaria-Geral da Presidência (Jorge Oliveira).

Mas a ocupação militar vai muito além da Esplanada. Bolsonaro bateu o recorde de ocupação de cargos comissionados por militares: 2.558 em 18 órgãos públicos, um aumento de 33% em relação ao governo de Michel Temer (2016-2018). É o maior número desde a ditadura civil-militar iniciada em 1964.

“É uma lógica de ocupação e subordinação do Estado”, afirma Marcelo Zelic, representante do grupo Tortura Nunca Mais. “O sentido de obediência militar, em que um soldado segue as ordens de seu superior, reforça uma visão de mão dura do governo”.

E não há outro setor em que esta ocupação seja tão notória quanto na política indigenista. Desde o fim de 2019, a Fundação Nacional do Índio (Funai) trocou o comando de 20 das 39 das coordenadorias regionais. Feitas sem consulta prévia às comunidades, boa parte das nomeações é de militares da ativa ou da reserva.

“O aparelhamento da Funai por militares é um dado histórico”, pondera Zelic. “A gestão dos povos indígenas sempre foi tutelada pelas Forças Armadas de forma muito direta. Não é a toa que, num primeiro momento, o Serviço de Proteção do Índio fica sob o Ministério da Guerra [1934-1939] antes de migrar para o Ministério da Agricultura, uma insanidade que o governo Bolsonaro tentou repetir”.

O pesquisador coordena o projeto Armazém Memória, uma biblioteca digital sobre a resistência do povo brasileiro durante a ditadura, com destaque para a resistência indígena. Para Zelic, essa ingerência das Forças Armadas sobre a política indigenista no governo Bolsonaro retoma uma noção desenvolvimentista de integração forçada do indígena à “civilização”:

— A Comissão Nacional da Verdade (CNV) mostrou o que o conceito de integração apregoado pelos militares trouxe aos indígenas: genocídio, perda de territórios e a morte de culturas inteiras. Essa visão tutelar, segundo a qual o Estado sabe o que é bom para os povos indígenas, foi derrubada na Constituição de 1988 mas permanece em vários setores da sociedade, especialmente no meio militar.

Segundo o pesquisador, isso traz de volta a ideia do vazio demográfico, que está de novo no centro das políticas de desenvolvimento do governo Bolsonaro. “O indígena, o ribeirinho ou o pequeno agricultor que não estiver no modelo que eles pensam para o país será tratorado”.

MILITARES DIZIMARAM MAIS DE 8 MIL INDÍGENAS DURANTE DITADURA

Livro ‘Os fuzis e as flechas’, de Rubens Valente, contou histórias de repressão. (Foto: Reprodução)

A devastação causada pela Covid-19 nas comunidades indígenas não é o único genocídio enfrentado pelos povos originários. Da invasão portuguesa até a redemocratização, foram vários os momentos em que populações inteiras foram dizimadas pela ação direta ou pela omissão do Estado. Boa parte desses crimes ocorreu durante governos comandados por militares.

O caso dos Waimiri Atroari é ilustrativo. Visando liberar o caminho para a construção da BR-174, que liga Manaus a Boa Vista, militares jogaram veneno e lançaram explosivos de helicópteros sobre as aldeias da etnia. Os indígenas eram então atacados por terra, antes que tratores destruíssem os vestígios da matança. Entre os relatos que integram a Ação Civil Pública movida pelo MPF contra a União e a Funai, sobreviventes contam que aqueles que não conseguiam fugir para dentro da mata eram degolados ou fuzilados por soldados.

Outra política amplamente adotada durante a ditadura consistia na criação de campos de concentração, onde indígenas eram submetidos a trabalhos forçados e tortura. O principal deles, localizado no município de Resplendor (MG), ficou conhecido como Reformatório Krenak, para onde foram enviados, entre 1968 e 1973, indígenas de 21 etnias.

Em outubro de 2019, 46 anos após o fechamento do centro de detenção, o MPF denunciou formalmente um oficial reformado da Polícia Militar de Minas Gerais, Manoel dos Santos Pinheiro, pelo crime de genocídio contra a etnia Krenak.

Segundo levantamento da Comissão Nacional da Verdade, pelo menos 8.350 indígenas foram mortos durante a ditadura militar, doze vezes mais que o número de mortos pela Covid-19, entre 146 etnias, até o momento.

Bruno Stankevicius Bassi é repórter e coordenador de projetos do De Olho nos Ruralistas

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