Insurgentes – A resistência vem da selva

Àquela hora da noite, a limpidez das águas do rio Araguaia já tinha cedido lugar a uma escuridão profunda e gelada. As incertezas que eles poderiam enfrentar naquela travessia mais que obrigatória só aumentava a angústia dos companheiros que estavam no mesmo lugar da floresta há um dia, observando a rotina das patrulhas da Marinha antes de partirem a nado para a outra margem, a quase um quilômetro dali.

A possibilidade de roubarem uma canoa para facilitar a passagem estava fora de cogitação, uma vez que isso poderia alertar as forças militares e acabar com o longo percurso que ainda tinham pela frente. Antes de entrarem na água, combinaram de seguir direto até à pequena ilha que separava os dois braços do rio. Criméia Alice Schmidt de Almeida, 25 anos, sequer hesitou, mas sabia das dificuldades que teria de enfrentar para atravessar todo aquele volume de água cercado pelos “caras da repressão”.

Não seria fácil para ninguém, muito menos para ela, grávida de três meses.

Depois de um dia de observações e planejamentos quase que abstratos, pois tudo poderia sair errado, Criméia e o “Companheiro” deslizaram Araguaia adentro. A primeira travessia foi como imaginavam: custosa, arriscada e desgastante. Talvez até um pouco pior. O frio entorpecente da água limitava o movimento da dupla que seguia nadando contra a correnteza não planejada e contra as cãibras que cismavam em mantê-los no lugar. Não fosse o medo e a insistência unidos naquele momento, teriam perdido a direção da ilha e o trajeto se tornaria um só.

Ainda de madrugada chegaram ao local combinado e decidiram ficar ali até o próximo anoitecer. A comida era escassa – se houvessem levado um estoque de suprimentos a caminhada teria se tornado mais complicada e, portanto, catavam o que havia espalhado pelas matas – e o cansaço, cada vez mais inevitável.

Após um breve descanso, a luz do sol, pungente já nas primeiras horas da manhã, chegou e trouxe ainda mais insegurança para aquelas duas pessoas dispersas no extremo da floresta amazônica temendo a fatalidade de uma captura. A tensão e a possibilidade de que tudo desse errado fizeram com que o dia passasse arrastado. A agonia só era quebrada vez ou outra por comentários fugazes ou pelo barulho das lanchas da Marinha que deslizavam constantemente pelos dois braços do Araguaia. Cercada por expectativas, a noite enfim chegou.

Atentos ao movimento da lancha, Criméia e Companheiro decidiram seguir para a outra margem ainda naquela noite, mesmo sem informações suficientes sobre a rotina da patrulha no braço direito do rio. Como haviam feito na primeira travessia, amarraram o saco plástico em que carregavam alguns pertences – a maioria roupa – na perna e mergulharam. Poucas braçadas depois, escassos fios de luz começaram a refletir sob a água e, em poucos segundos, já tinham se tornado mais intensos. Era o indí- cio de que uma embarcação se aproximava.

À claridade dos holofotes seguiram os sulcos formados pela lancha e o barulho do motor. Por mais que soubessem que os riscos durante a travessia eram iminentes, não conseguiram evitar o pânico que os dominou naquele momento e, mesmo enrijecidos pelo medo, impeliram suas forças rumo ao fundo do rio num impulso imediato. No entanto, os sacos plásticos, que estavam abarrotados de ar, perma- neceram acima da água, e qualquer claridade que refletisse sobre eles seria o suficiente para chamar a atenção dos militares.

Com o barulho da lancha cada vez mais próximo, puxaram as sacolas num movimento rápido e, usando toda a força que podiam, mantiveram-nas coladas aos seus corpos já sem sentidos e quase tão congelados como o próprio momento, que parecia durar o infinito.

Aos poucos, a intensidade da luz e o barulho do motor foram diminuindo. Ainda assustados e receosos de que pudessem ser capturados, conseguiram voltar à superfície já sabendo que a qualquer mo- mento a lancha voltaria. Decidiram, então, nadar de costas para ver melhor a aproximação do holofote e assim, terem tempo suficiente para submergirem antes de qualquer repreensão. Essa cena se repetiu diversas vezes até que eles conseguissem pisar em terra.

O casal chegou na margem oposta do rio com o cansaço físico atenuado pelo frenesi da situação. Eles ainda iriam permanecer juntos por mais algum pedaço da viagem, mas não poderiam seguir o mesmo caminho até o final devido a ordens recebidas ainda no Araguaia. Criméia, assim como o Com- panheiro era militante do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), criado em 1962 por dissidentes do Partido Comunista Brasileiro (PCB), e voltava para o Rio de Janeiro para restabelecer o contato com o partido, cortado pela repressão dias antes.

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A guerrilha do Araguaia, ou Força de Guerrilha do Araguaia (Foguera), é considerada um dos maio- res movimentos de resistência à ditadura militar no Brasil. Organizado pelo PCdoB entre fins de 1960 até 1975, o combate aconteceu na região do Bico do Papagaio, divisa entre os estados de Goiás – área hoje pertencente ao estado do Tocantins – Pará e Maranhão, e tinha como objetivo derrubar os militares do poder através da luta armada e da guerrilha rural, táticas difundidas por guerrilheiros cubanos que, em 1959, conseguiram derrubar o ditador Fulgêncio Batista.

Migrados para a região a partir de 1966, os combatentes foram, aos poucos, se alojando nas peque- nas vilas que beiravam a margem esquerda do Araguaia e agiam como cidadãos comuns. Novas identidades deram-lhes nomes falsos, e eles começavam a atuar como profissionais aparentemente distantes dos assuntos políticos.

A região do Bico do Papagaio tinha recém começado a dar seus primeiros sinais de progresso, quando os militantes chegaram ao local. Com a construção de Brasília em 1960 e os projetos do então presidente Juscelino Kubitscheck de interligar o Norte às demais áreas do Brasil, o desenvolvimento nessa parte do país foi aos poucos se incrementando, principalmente no que diz respeito à produção agropecuária e à extração vegetal e mineral.

A abertura da rodovia Belém-Brasília acelerou ainda mais a ocupação. Em 1940, a região possuía 1.462.420 habitantes, o que significava 0,41 morador por quilômetro quadrado. Trinta anos depois, o aumento populacional decorrente das ações de incentivo do governo mantidas pela ditadura militar foi de 40,3%, o que elevou o número de pessoas para 3.650.750.

Mesmo com o expressivo crescimento populacional, a região Norte ainda carecia de muitos empreendimentos básicos. No Araguaia, a população ribeirinha tirava o sustento da agricultura familiar, da caça e da pesca. Armazéns, farmácias e hospitais, estabelecimentos comuns para um local em desenvolvimento, eram poucos e geralmente distantes.

Assim, os “paulistas”, como eram chamados os guerrilheiros que se mudavam para lá, assumiram um papel assistencialista até então deixado de lado pelo governo e passaram a ocupar cargos de auxílio à população, como médicos, farmacêuticos, enfermeiros, engenheiros, professores, comerciantes e até mesmo agricultores, atraindo a simpatia de muitos moradores locais, que mais tarde iriam ajudá-los no luta contra os militares.

Durante os nove anos de militância no Araguaia, cerca de 70 combatentes, a maioria de São Paulo, partiram para a região. Criméia foi a primeira das 17 mulheres a incorporar a guerrilha.

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Era janeiro de 1969 e Criméia já estava decidida a partir para o Araguaia. A perspectiva de que a resistência à ditadura teria de ser uma resistência armada, como pensavam os membros do PCdoB, fora suficiente para que ela entendesse a importância da luta e resolvesse seguir em frente. “Eu achava assim: se a repressão do governo estava sendo armada, então por que a resistência não poderia ser também? Por isso, eu não pensei duas vezes antes de me incorporar à luta”.

Logo após o ano-novo, ela deixou o Rio de Janeiro, passou em São Paulo, onde recebeu instruções do Comitê Central do Partido, e seguiu rumo à região da guerrilha. Dali partiu sozinha, mas ao longo do caminho encontraria membros do PCdoB que também se encaminhavam para a região, inclusive João Amazonas, que passaria a ser um dos mais notáveis combatentes do Araguaia.

Criméia encontrou Amazonas num trecho bem adiante de São Paulo. Quando esteve no comitê, fora avisada de que nesse determinado lugar se ligaria a um companheiro, mas não recebera informa- ções de quem seria. Fisicamente, Amazonas, que usava os codinomes de “Pedro”, “Alcides” e “Cid”, em nada se parecia com um revolucionário. Conforme a descrição de militares encontrada no relatório da Operação de Informações organizado pelo CIE (Centro de Informações do Exército), no Sudeste do Pará, ele era “velhinho, baixo, 1,58m, 55kg, 60 anos, quase calvo, cabelos grisalhos, sem bigode e usava óculos para ler”.

A personalidade firme, no entanto, não deixava dúvida quanto à verdadeira identidade do homem. Na primeira oportunidade que teve, avisou a Criméia:

– Você é a primeira mulher que está indo pra guerrilha e a ida de outras vai depender do seu desem- penho lá.

Transtornada com a atitude machista do companheiro, a moça respondeu:

– E se um dos primeiros homens que chegaram lá não tivesse dado conta, vocês teriam encerrado a guerrilha? Você não pode colocar essa responsabilidade nas minhas costas.

Amazonas calou-se.

A viagem fora cansativa. Como se não bastasse a precariedade do ônibus e as estradas irregulares, o clima abafado ajudava a tornar o percurso ainda mais demorado. Em pontos solitários ao longo do caminho, motorista e passageiros paravam para almoçar e jantar em toscas barracas de palhas improvisadas por moradores da região, que tiravam seu sustento dos serviços que prestavam aos transeuntes.

À noite, a parada em mais uma dessas barracas indicava a hora de dormir. Com redes em mãos, os passageiros saíam do ônibus e dirigiam-se para o fundo da cabana. O espaço imenso e vazio rapidamente tornava-se num amontoado de redes penduradas que sustentavam ideais vencidos momentaneamente pelo cansaço da viagem. E assim foi durante cerca de duas semanas, até Criméia chegar na vila Ponta de Pedra (PA), a poucos metros das margens do Araguaia, onde foi morar com mais três insurgentes – dois companheiros e um dirigente do PCdoB.

A nova vida, no entanto, não era fácil. Além dos trabalhos corriqueiros realizados para ajudar a comunidade, eles ainda tinham uma rotina de preparação para a guerrilha, com treinamentos físicos e militares – tanto nas próprias lavouras como na floresta.

Criméia, que ao chegar no Araguaia passara a se chamar Alice, e, portanto, passou a viver como clandestina política, virara quase que voluntariamente uma agente de saúde. Tendo cursado dois anos de enfermagem na Universidade Federal do Rio de Janeiro, a militante fazia diagnósticos – muitas vezes baseados nos livros que ela fizera questão de levar –, prescrições, curativos e até mesmo proce- dimentos mais complexos, como amputações e partos. “Ainda que eu não tivesse ido para o Araguaia com essa função, até porque, a principal função de qualquer um ali dentro era sobreviver, eu me tornei enfermeira pois, afinal de contas, entendia do assunto. Aí tinha de conciliar a guerrilha e as atividades de caça, pesca, plantio e colheita, importantes para a nossa sobrevivência, com a enfermagem”.

A casa onde Criméia se alojou durante os trêas anos e oito meses em que permaneceu no Araguaia era relativamente pequena, mas de alto nível para a vila Ponta de Pedra. Feita de barro e coberta com telhados de argila, a casa situava-se num local isolado à beira do Araguaia, sendo que o vizinho mais próximo ficava a 6 quilômetros dali.

“Eu lembro que para comprar alimentos e remédios, coisas essenciais, dava muito trabalho. Nós tínhamos que ir para as currutelas [pequenos conglomerados com um número de moradias reduzido e que serviam como uma espécie de ‘centro urbano’ para a população vizinha], que não eram tão pró- ximas de onde a gente ficava. O local mais perto de Vila de Pedras era a cidade de Imperatriz (MA). A viagem até lá durava um dia de barco”.

A saga, no entanto, não parava por aí. Sem mobília adequada para armazenar os alimentos e os remédios, os membros da Foguera tinham de improvisar latas para guardar esses produtos. Depois de pintá-las com betume e tapá-las com um material isolante que era fornecido pelo partido, cavavam um buraco de um metro no sentido vertical e dois metros na horizontal – o que ajudava a proteger da umidade -, colocavam as latas dentro e fechavam a toca com pedaços de madeira e terra, camuflando-a para que os militares não achassem caso houvesse confronto. O que não demorou muito para acontecer.

A primeira campanha de cerco e aniquilamento aos militantes do PCdoB aconteceu entre os meses de abril e julho de 1972 e foi uma grande derrota para o exército. As Forças Armadas tinham pouco co- nhecimento sobre a mata de quase 7 mil quilômetros por onde os guerrilheiros se infiltravam e muitos soldados não se adaptaram à floresta, sucumbindo diante das dificuldades encontradas.

Diante dessa primeira investida, o PCdoB passou a operar em três destacamentos independentes entre si e subordinados à Comissão Militar, comandada por Maurício Grabois. O destacamento A, base de Faveiro, implantou-se na região da Transamazônica, ao norte, e passou a ser dirigida por André Grabois. A base B, na localidade de Gameleiro, centro, ficaria sob o comando de Osvaldão, e a C, base de Caiano, ao sul, seria comandada por Paulo. Dentro de cada destacamento, havia ainda mais três subgrupos, que contavam com cerca de 22 guerrilheiros, que por sua vez, dividiam-se em mais três grupos de sete pessoas. Por questões de segurança, os comandantes das bases desconheciam a formação e identificação dos demais pelotões.

Por ordem do dirigente, Criméia foi mandada para o destacamento A, onde conheceu o comandante da base André Grabois, com que passou a estabelecer uma relação muito mais forte do que apenas uma ligação de guerrilha – fato plausível para dois jovens de apenas vinte e poucos anos.

Cerca de um mês depois do início da primeira operação, a militante engravidou, infringido assim uma das principais normas da luta: guerrilheiras não deveriam engravidar, e caso acontecesse, eram obrigadas a abortar.

Outro ponto rígido na operação era quanto à saída da área de combate. Os militantes não poderiam deixar o local, pois poderiam ser capturados e ter de dar informações que pudessem colocar a guerrilha em risco.

No entanto, grávida de três meses, Criméia foi retirada da região do Araguaia em agosto de 1972 e voltou para São Paulo para reatar a comunicação com o comitê do partido, que havia sido cortada pelos agentes da ditadura. A jovem conseguira, enfim, sobreviver à guerrilha, mas nunca mais veria o pai de seu filho.

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Criméia teve seus primeiros envolvimentos com política ainda no movimento secundarista, com- batendo a política de ensino adotada pela ditadura militar. Naquela época, a escola onde estudava, em Belo Horizonte, era um projeto do que mais tarde seria conhecido como o acordo MEC-Usaid, feito entre o Ministério da Educação e da Cultura (MEC) e o United States Agency for International Deve- lopment (USAID) na década de 60 que reorientou o sistema educacional brasileiro tornando-o útil às necessidades do desenvolvimento capitalista internacional.

Em 1964, ano do golpe militar, o envolvimento da menina, que tinha então 17 anos, com a política se tornou ainda maior, devido à intensificação dos movimentos contra a ditadura em várias partes do país. Seu pai, que não chegara a ser militante mas apenas contrário à instalação do regime no Brasil, foi preso e desapareceu por dois meses, motivo decisivo para que tanto Criméia quanto a irmã, Maria Amélia de Almeida, passassem a combater a política da repressão.

“Foi a ditadura quem começou lutando contra mim, e não eu que comecei a lutar contra ela”, confessou-me Criméia. Hoje, aos 64 anos, a mulher de cabelos curtos e grisalhos e um olhar tão profundo quanto as lembranças que carrega consigo não hesita em relembrar os momentos pelos quais passou. “Embora o Estado queira omitir essa parte da história, acho que nós, que vivemos tudo isso, temos a obrigação de estar sempre anunciando, informando as novas gerações para que situações como essa não se repitam mais”, adverte.

Militando inicialmente no PCB e depois no PCdoB, onde ficou até 1987, Criméia também se envolveu com o movimento estudantil ao entrar para faculdade de Enfermagem da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em 1967. No ano seguinte, em outubro, veio a primeira prisão. Como delegada do diretório acadêmico da faculdade que representava no XXX Congresso da União Nacional dos Estudantes em Ibiúna, interior de São Paulo, Criméia foi presa e mandada para o presídio Tiradentes, na capital do estado, juntamente com outros quase mil estudantes de todo o Brasil que participavam da reunião. Com a instauração do AI-1, decretado logo após o golpe, a UNE havia se tornado ilegal e, por isso, o ato foi considerado subversivo.

No presídio Tiradentes, foram apenas alguns dias de clausura – o número exato, Criméia não recorda. Dividindo pequenos espaços nas celas abarrotadas de estudantes presos, os congressistas não foram torturados, apenas fichados. “Nós não sofremos nenhum tipo de tortura em Tiradentes porque a prisão no presídio foi a própria tortura. Não me lembro de muita coisa, pois passávamos todo os dias nas celas, que estavam lotadas. Mas uma coisa eu não esqueci: o café. Ele vinha numa lata de óleo diesel, então ficavam aquelas manchinhas furta cor sob a bebida. Era muito repugnante você olhar para aquela manchinha e saber que se tratava de óleo diesel”, revela Criméia sob a pior lembrança que tem da sua prisão em Tiradentes.

***

Assim que chegou do Araguaia, Criméia foi morar com a irmã, Maria Amélia, e o cunhado, César Augusto, que coordenavam a gráfica do PCdoB, em uma casa na cidade de São Paulo. Ambos ainda tinham seus nomes legais e trabalhavam normalmente. Ele era taxista e usava a profissão como pretexto para transportar pessoas ligadas ao partido sem levantar suspeitas.

César sofria de tuberculose, mas naquele mês de dezembro havia sido liberado pelos médicos do hospital onde estava internado para passar as festas de fim de ano com a família. Três dias após o Na- tal, ao anoitecer, ele saiu com a esposa para levar Carlos Nicolau Danielli, dirigente do partido, para fazer um ponto [encontro] com outro companheiro na Vila Madalena. Alguns quarteirões à frente do local onde deixaram o dirigente, o casal foi surpreendido por agentes policiais do Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI), órgão repressor criado pelo regime para prender e torturar aqueles que fossem contrários à ditadura. Ao serem jogados para dentro do carro, surpreenderam-se com a presença de Danielli. Os três haviam sido entregues pelo companheiro com quem o dirigente iria se encontrar minutos antes. Do local onde estavam, partiram direto para a Rua Tutóia, no bairro Paraíso, onde funcionava o DOI-CODI paulista.

Em casa com os sobrinhos Janaína e Edson, que na época tinham 5 e 4 anos respectivamente, Cri- méia, que já estava grávida de sete meses, notou que algo de errado acontecera. A demora da irmã e do cunhado era significativa e não havia dinheiro nem autorização para fugir com as crianças. Diante do inevitável, ela começou a colher os materiais que poderiam incriminar Amélia e César e avisou as crianças para que não respondessem nada sobre os pais, caso alguém perguntasse.

Na tela da TV, Beto e Ênio, personagens do programa infantil Vila Sésamo, divertiam os irmãos quando a campainha tocou. Rapidamente, a menina se levantou e correu em direção à porta, onde um casal se identificou como sendo companheiros de partido dos donos da casa.

– O companheiro César sofreu um acidente e está internado, disse um deles.

Criméia, já sentindo o peso da situação apareceu na sala e fingiu não entender a visita do casal.

– Desculpa, mas eu não sei do que vocês estão falando.

– Você é a babá?, perguntaram. Ela confirmou.

– Então, nos acompanhe.

Tentando disfarçar o desespero, Criméia encarou-os e disse com voz firme:

– Sem as crianças eu não vou. Tomo conta delas e não posso deixar elas aqui, sozinhas.

Eles concordaram. Sem levar nada de pertences, Criméia pegou os sobrinhos e saiu convicta de que haviam sido presos. Lá fora, o fato se confirmou. A casa estava cercada e eles foram conduzidos direto para um Aero Willys de cor azul , tão tenebroso quanto os próprios agentes, que estava estacionado na frente do portão. Ao abrirem a porta do veículo, a quantidade de metralhadoras dispostas pelos bancos e pelo chão do carro não deixava dúvidas do que havia acontecido.

Criméia e os sobrinhos também foram levados para o DOI-CODI paulista. Quando chegaram ao local, a irmã e o cunhado estavam saindo de uma sala, com o corpo completamente marcado pelas torturas que haviam sofrido. Ao olhar os pais daquele jeito, Edson perguntou assustado:

– Por quê vocês estão verdes dessa forma?

Depois daquela cena, Criméia não viu mais os sobrinhos, que passaram dez dias no DOI-CODI e em seguida foram levados para Belo Horizonte. No primeiro interrogatório pelo qual passou, não foi torturada, mas os policiais a encurralaram para que fornecesse pistas sobre o paradeiro da irmã de Amélia, ela mesma, que cinco anos antes participara do XXX Congresso da UNE e por isso havia sido presa. Criméia negou conhecer a mulher e foi mandada para uma cela, onde ficou uma semana sem que ninguém a reconhecesse. “O problema de você ficar na prisão sem uma identidade verdadeira, é que qualquer hora a mais que você passa naquelas salas você tem a chance de que alguém chegue ali e te reconheça. Foi o que aconteceu comigo”.

Após a denúncia de que havia uma mulher grávida presa nas celas do DOI-CODI de São Paulo, a verdadeira identidade da “babá” veio à tona, e não demorou muito para que ela passasse a freqüentar as salas de tortura.

Por determinação do médico que acompanhava os interrogatórios de Criméia, a barriga, a vagina e o ânus não poderiam ser afetados. Nua – era sempre assim que os interrogados permaneciam nas salas durante as entrevistas –, podia levar tapas no rosto, murros na cabeça, palmatórias e choques nas mãos e nos pés. Todos foram usados constantemente.

A sessão mais marcante pela qual Criméia passou foi de aproximadamente 36 horas. Ao entrar na sala, reparou que estava escuro. Na outra noite ainda estava lá, e só foi deixar o local no amanhecer do dia seguinte. Sem relógio e qualquer orientação temporal, os presos só tinham noção do horário pela intensidade da luz que chegava até às celas.

Ainda que os castigos físicos sejam os métodos de tortura mais conhecidos, Criméia relembra que esse era apenas um tipo. “A prisão em si era uma tortura. Tudo começava pelo barulho da chave nas mãos dos carcereiros que se aproximavam. Eles faziam questão de sacudir bastante porque sabiam que aquilo deixava um clima de tensão muito grande. Aí, você ficava na expectativa de que fosse você a ser chamado. Se não era, dava um certo alívio, mas só até começar a ouvir os gritos de quem tinha ido para a sala”.

Certa noite, ela foi levada pelo carcereiro até a sala do agente que estava de plantão que, impassível, encarou-a e disse:

– Hoje você vai morrer num acidente na Serra das Araras, está bem?

Atemorizada pela notícia e pela frieza do homem a sua frente, ela permaneceu quieta foi levada pelos carcereiros até o carro do cunhado, que também havia sido apreendido. Quando já estava acomodada no banco do veículo, um dos carcereiros ligou o motor, saiu do automóvel, fechou a porta e se afastou. Já era manhã quando ele reapareceu.

– Desculpa aí. Tivemos um probleminha e não deu para você morrer. Mas pode esperar que essa noite vai dar certo, disse o homem ironicamente. Pressões psicológicas como esta aconteceram até ela ser transferida para Brasília em 22 de janeiro de 1973.

Com o Comando Militar do Planalto, na Capital Federal dirigindo as investigações da guerrilha do Araguaia, Criméia teve de ser mandada para Brasília. Presa em um quartel militar, as sessões de interrogatório aconteciam cada vez em menor quantidade, pois ela já havia passado um mês no DOI-CODI paulista. Certa manhã, ela foi retirada da cela e antes de sair do edifício cobriram seu rosto com um capuz preto e a levaram para o banco de trás de um carro.

No caminho, os solavancos do veículo tornavam ainda mais insuportável o calor e o sufoco causado pelo capuz que, momentos depois, Criméia arrancou. Nos poucos segundos que pode olhar para fora, viu que estavam passando em frente ao Ministério da Justiça, na Esplanada dos Ministérios. Surpreendido pelo gesto, o homem sentado ao seu lado enfiou-lhe novamente a touca, jogou-a no chão do carro e manteve os pés apoiados em cima dela até o carro parar. Embora estivesse com os olhos cobertos, Criméia imagina que tenha sido levada para o Ministério do Exército, pois conseguia ver as botas e as calças verde-oliva características das forças terrestres brasileiras enquanto seguia pelos corredores até ser alojada numa sala individual.

O compartimento era totalmente branco, sem janelas, e media cerca de quarenta metros quadrados. Em volta da parede, pontos pretos que pareciam microfones intercalavam o espaço com várias lâmpadas de iluminação forte e incômoda. Não havia cama, cadeira, bancos ou qualquer outra coisa em que Criméia pudesse se apoiar. O espaço estava completamente vazio. Com fome, sede e quase imobilizada pelo torpor do último mês da gestação, ela deitou no piso e tapou o rosto com as duas mãos numa tentativa de diminuir a intensidade da luz que chegava até seus olhos. E assim ela ficou até o começo da noite, quando um oficial abriu a porta e, desculpando-se pela demora, falou:

– Infelizmente a gente não vai poder interrogá-la hoje. Como já é tarde e a cantina daqui já fechou e não tem comida pra você, já vamos te levar para o quartel de novo.

Com a boca seca e o corpo dolorido pela posição em que ficara, ela se levantou devagar e implorou por um copo de água.

– Ah, não. Essa água aqui é muito suja. Eu acho que eu não posso dar ela pra você, disse o oficial.

De volta ao quartel, a grávida não pode comer, pois as cozinhas já estavam fechadas por causa do horário. A única coisa que ganhou foi um copo de água da torneira trazido pelo vigilante.

Vinte dias depois que chegou em Brasília, Criméia começou a sentir as primeiras dores do parto. Na madrugada do dia 12 de fevereiro, ela foi levada para o Hospital de Base da cidade. O médico de plantão recusou recebê-la.

– Não, ela é presa. Vai dar muito trabalho para a nossa equipe e não vou isolar uma enfermaria por causa dela.

De volta ao quartel, a gestante foi levada novamente para sua cela, individual, onde teve de perma- necer a manhã inteira suportando as dores das contrações. Ajudada pelos detentos das celas ao lado, que gritavam o tempo todo para alertar o pessoal da casa, ela conseguiu ser transferida para o Hospital da Guarnição.

No local, no entanto, não havia obstetra, apenas um psiquiatra, que a examinou e em seguida chamou um colega.

– Seu bebê está pronto para nascer, mas eu não vou poder fazer o parto porque meu plantão já acabou, disse o médico que acabara de entrar na sala.

Já sem forças para sentir qualquer outra coisa que não fossem as dores do parto, Criméia respondeu: – Mas doutor, meu bebê não vai aguentar. A bolsa estourou há muito tempo, está doendo muito. – Menos mal. Um comunista a menos, retrucou-lhe friamente o médico, que, mesmo contra a vontade, acabou assumindo a operação. Vinte e sete horas depois do rompimento da bolsa amniótica, Criméia, enfim, conheceu João.

Criméia ficou 52 dias no Hospital da Guarnição, isolada em um quarto vigiado dia e noite por dois seguranças armados. Durante esse tempo, passou por dias tenebrosos em que não via o bebê nem tinha notícias dele.

Um determinado dia, um tenente que andava pelo hospital chegou em seu quarto e perguntou:

– Você teve um menino, não é?

Ela balançou a cabeça num sinal positivo.

– Pois, é, mas agora você tem uma menina. Minha mulher estava grávida e pariu uma menina, mas nós já temos uma, e eu estava louco por um filho homem. E depois, ele é branco, clarinho, ninguém vai desconfiar de que não é meu.

Quando o comandante saiu da sala, Criméia não teve reação. Permaneceu algum tempo angustiada, sem saber do paradeiro do filho, até que um dia o trouxeram, magro e com sintomas de problemas gastrointestinais por causa do leite em pó. Com menos de um mês, o bebê já adoecera.

Após os 52 dias no hospital, entregaram João para uma tia de Criméia que morava em Belo Horizonte. De forma alguma ela permitira que ele fosse para o juizado. Depois de ver o bebê nas mãos da família, a mãe voltou para a prisão, onde teve que permanecer por mais meio mês.

Era dia 20 de abril quando três militares do DOI-CODI acompanharam Criméia até um fusquinha parado no estacionamento do quartel. No caminho até lá, eles a avisaram de que ela estava sendo levada para Belo Horizonte. Era a liberdade! Ela, no entanto, não acreditara, pois aquela viagem poderia acabar em um “acidente” que a faria deixar para trás a melhor coisa que já lhe acontecera na vida: seu filho. Porém, a cada quilômetro que o carro andava, ela sentia um certo alívio, e a esperança de que tudo acabaria bem começava lentamente a aparecer.

A militante, no entanto, chegou até Belo Horizonte, onde se reencontrou com o filho e com os sobrinhos, que estavam na casa de um tio delegado. Alguns dias depois, acompanhada da tia que cuidara de João e que recebera ordens dos tiras para não deixar a sobrinha andar desacompanhada, seguiu com as crianças para o Rio de Janeiro, visitar o pai – ainda na clandestinidade – e a mãe.

Uma carta escrita a Dom Paulo Evaristo Arns – que se opôs à ditadura militar e aos métodos de opressão do regime – foi a primeira coisa que Criméia fez quando retornou à São Paulo no começo de 1974. Explicando que não pretendia se matar, a intenção da mensagem era deixar claro que não estar nas celas de cadeia não significava para ela segurança. Antes de deixar o quartel em Brasília, o general Antônio Bandeira, um dos mais notórios durante todo o regime, avisou que ela poderia cometer suicí- dio, cair na linha do metrô ou sofrer um assalto e que, portanto, tomasse cuidado.

A carta não pode ser publicada e Criméia teve bastante dificuldade para recomeçar a vida. Devido ao seu histórico político mantido pelo DOPS, os empregos que achava não duravam mais que dois me- ses. “Foram muitos os empregos que eu tive nessa época, mas também muitas as demissões, que depois eu vim saber que aconteciam por causa do DOPS. A sorte também é que em São Paulo tinha bastante emprego, aí eu pude ir me virando”.

Em 1977, por causa da instabilidade nos empregos, Criméia voltou a estudar. Um trabalho na diooese da Paraíba a fez mudar-se para João Pessoa, onde se formou em 1979, ano em que foi promulgada a Lei da Anistia. Um ano depois ela voltou para São Paulo, onde vive até hoje.

***

Em setembro de 1972, teve início a segunda campanha da Guerrilha do Araguaia. Apesar do número de baixas entre os guerrilheiros ter aumentado nessa fase, o exército ainda não havia consigo êxito em sua campanha.

No entanto, a terceira incursão, em outubro de 1973, foi decisiva para o fim da resistência. Com táticas mais avançadas – como o uso de serviços de informação e de soldados treinados para combates em selvas – as Forças Armadas conseguiram aniquilar o movimento, que deixou de existir em fins de 1974.

O Dossiê de Mortos e Desaparecidos Políticos no Brasil estima que durante toda a batalha, o governo militar mobilizou cerca de sete mil militares para reprimir a luta, e que desapareceram 59 guerrilheiros e pelo menos 17 moradores da região. Dos desaparecidos da guerrilha, somente dois corpos foram identificados: o de Maria Lúcia Petit, em 1996, e o de Bergson Gurjão Farias, em 2009. André Grabois foi visto pela última vez no dia 14 de outubro de 1973, aos 27 anos.

Como a batalha transcorreu por muito tempo de forma secreta, sem que a população tivesse notícia do que se passava na região do Bico do Papagaio, o Estado demorou a reconhecer a existência da guerrilha, que só foi aceita cerca de vinte anos depois, em 1992, com a divulgação de trechos de um relatório militar divulgado pelo Centro de Informações do Exército.

Em 1995, o Centro Pela Justiça e Direito Internacional, o Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro e a Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos de São Paulo encaminharam à Corte Interamericana de Direitos Humanos, da Organização dos Estados Americanos (OEA), uma petição em que pedem a responsabilização do Estado brasileiro pelas violações aos direitos humanos das víti- mas da guerrilha.

As audiências públicas do julgamento acabaram em maio de 2010 e até dezembro espera-se a conclusão do processo. Se condenado, o Brasil poderá ser declarado como infrator de tratados internacionais, ser obrigado a compensar financeiramente os parentes das vítimas e também ter de rever mudanças na sua legislação, como a revisão da Lei da Anistia, que livra e de punição os agentes culpados de mortes e torturas durante a ditadura militar de serem punidos.

Criméia, que hoje é diretora da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos de São Paulo, continua lutando pela justiça quanto às atrocidades cometidas nos “anos de chumbo” no Brasil, e não concorda com as atuais medidas do governo para resolver a situação, principalmente com a criação, em abril de 2009, pelo Ministério da Defesa do Grupo de Trabalho Tocantins (GTT), que tem como objetivo coordenar e executar o recolhimento e a identificação dos corpos dos guerrilheiros e militares mortos durante a guerrilha, esquecidos na selva.

“Esse grupo é composto por 50% de oficiais do Exército e o resto por técnicos, e por isso nós vamos encontrar muitas limitações. Esse papel não tinha que estar nas mãos do Ministério, e sim nas nossas. Não cabe a nós apenas legitimar o serviço, que é o que [Nelson] Jobim nos propõe. Nosso papel vai muito além disso. Nós estamos aqui para buscar esclarecimento e justiça por todas as atrocidades que o Estado cometeu. E o Brasil vai ser condenado. Disso eu não tenho a menor dúvida”, aposta.

* Esse é o segundo capítulo do livro INSURGENTES – A história de três mulheres que desafiaram a ditadura no Brasil, da jornalista Angieli Fabrizia Maros.

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