Hidrelétricas estatais poderão ser novamente prejudicadas com redução das tarifas elétricas

Por Valéria Nader e Gabriel Brito.

Dias antes das eleições municipais, Dilma Rousseff anunciou uma rara benesse econômica ao conjunto da população. Trata-se da redução das tarifas de energia elétrica (16% para consumidores residenciais e 19,7% a 28% para setores industriais), através da MP 579. Uma pequena compensação aos brasileiros que tanto pagaram valores abusivos pela energia após as privatizações dos anos 90.

Para comentar o assunto, o Correio da Cidadania entrevistou Luiz Pinguelli Rosa, ex-presidente da Eletrobrás no início do governo Lula, posto do qual foi retirado em 2004, momento a partir do qual o setor elétrico petista passou ao comando de técnicos ligados a José Sarney. Pingueli considera a notícia em si como positiva, mas concorda com a aventada hipótese de que tal queda nas tarifas pode refletir também em cortes de funcionários capacitados e de investimentos em manutenção, além de impactar fortemente no orçamento e desempenho das hidrelétricas estatais.

Quanto ao andamento do setor elétrico após quase 10 anos de gestão petista, o engenheiro ressalta que, apesar de algumas mudanças positivas (maior planejamento estatal e revitalização da EPE, a Empresa de Planejamento Energético), a gestão do setor mantém grande parte da filosofia dos anos de FHC, sendo que os gargalos entre geração, transmissão e distribuição persistem. Persistem, ademais, generosidade exagerada com os grandes consumidores e contratos lesivos às estatais.

Histórico defensor do uso da hidroeletricidade em nosso país, Pinguelli concorda com a afirmação de Dilma sobre seu caráter estratégico ao país e defende a construção da usina de Belo Monte. Por fim, acredita que a renovação das concessões de 123 usinas é a melhor alternativa, “porque as condições de competição do setor privado (em caso de novas licitações) são mais desonestas. E no capitalismo, vence a desonestidade sempre”.

Correio da Cidadania: Como o senhor analisa o anúncio do governo de reduzir as tarifas de energia para o consumidor, através da MP 579, afirmando que se trata de uma compensação diante dos rendimentos auferidos pelas concessionárias durante a vigência de seus contratos?

Luiz Pinguelli Rosa: Vejo um princípio correto, que é o de reduzir a tarifa, particularmente a tarifa residencial, muito alta no Brasil. A tarifa oficial industrial também é alta, mas ninguém paga; as grandes indústrias são consumidoras livres, de modo que não sei quanto pagam e sobre quem incidirá essa redução. No lado industrial não muda tanto, no residencial, sim.

Porém, a maneira de fazer isso é que me preocupa, porque, no fundo, acaba pegando as grandes estatais que ainda têm essas hidrelétricas mais antigas, que, pelo princípio da amortização, poderiam ter uma remuneração menor. Mas elas já perderam muito dinheiro, e continuam perdendo, em parcerias com o setor privado que o governo manteve, originadas da filosofia das privatizações do tempo do FHC, que não foi totalmente abolida. E elas já perderam a chamada venda de energia velha, tiveram contratos desfeitos em favor das empresas privadas etc. Tenho medo de mais um corte de despesas em Furnas, Chesf, mesmo na Cemig e Copel, que acabem levando a uma redução da engenharia e da tecnologia, o que já acontece no país.

O Brasil está virando um país primário-exportador, mesmo com alguma tecnologia. O setor elétrico tem uma competência histórica que tenho medo de ver sacrificada com cortes de pessoas especializadas, a serem trocadas por burocratas, como nas privatizações.

Correio da Cidadania: O que pensa, a esse respeito, das ressalvas que movimentos sociais e sindicais fizeram a este respeito, afirmando, em linhas gerais, que se trata de um “barato que pode sair caro”, uma vez que tal redução poderia resultar em menores investimentos em manutenção ou melhoria do sistema elétrico?

Luiz Pinguelli Rosa: Os movimentos estão muito fracos neste período, não têm defendido posições substanciais. Ainda bem que se pronunciaram agora. Concordo com essa possível conseqüência que eles apontam.

Correio da Cidadania: Ademais, volta à cena a velha questão da descapitalização das estatais, especialmente as geradoras, que entram no sistema interligado de geração com baixos custos de geração, uma vez que já estão com seus investimentos amortizados. Poderão ser mais uma vez afetadas com estas novas medidas relativas às tarifas.

Luiz da Rosa Pinguelli: É isso mesmo. As geradoras inclusive fazem essas mencionadas parcerias com o setor privado para projetos específicos, nos quais as empresas privadas ganham muito dinheiro e as estatais tomam prejuízo. É mais ou menos a filosofia praticada. As empresas estatais entram por baixo, não controlam o empreendimento, mas o financiam e acabam sendo remuneradas muito abaixo de seus sócios privados. E se não houver o devido cuidado, o caminho continuará assim, mesmo com a redução das tarifas.

Correio da Cidadania: Quanto à renovação das concessões de 123 usinas, cujos contratos estão próximos de vencer, o que teria a dizer?

Luiz Pinguelli Rosa: Eu penso que elas devem ser renovadas. Acho que a pressão da FIESP é totalmente espúria e responde a interesses de grupos que querem se apropriar do que é hoje um patrimônio público, para fins privados, como em tempos recentes de privatizações.

Acredito que a reabertura de licitações seria pior ainda, porque as condições de competição do setor privado são mais desonestas. E no capitalismo vence a desonestidade sempre.

Correio da Cidadania: O senhor foi presidente da Eletrobrás no início do governo Lula, além de ter participado da concepção do programa energético delineado pelo PT em seu programa de governo pré-2002. Logo depois, os rumos do setor energético foram alterados em relação ao que se projetava. Passados 10 anos de governo petista, agora sob o comando da ex-ministra da pasta energética, que balanço o senhor faria da gestão governamental sobre esse estratégico e cobiçado setor?

Luiz Pinguelli Rosa: Primeiramente, o programa realmente nunca foi cumprido e foi progressivamente alterado. Alguma coisa foi mantida, como a volta do planejamento, da participação da Empresa de Pesquisa Energética (EPE), da hidroeletricidade (como protagonista) – à qual sou favorável. Mas, como modelo de setor elétrico, não aprovo.

Os pontos positivos são esses, a retomada do planejamento, a EPE, além de uma boa gestão sobre o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS). Vejo como fatos positivos a expansão da hidroeletricidade e agora a entrada das eólicas no circuito.

Mas há vulnerabilidades, privilégios enormes aos grandes consumidores livres, que compram energia confidencialmente, sem controle nenhum de custos, além das citadas parcerias em que as estatais perdem em benefício de grandes grupos privados.

Correio da Cidadania: Neste sentido, como tem enxergado, especificamente, a atuação do setor em suas três pontas, quais sejam, geração, transmissão e distribuição? Como tem sido a relação entre elas em face do nosso atual modelo energético, inclusive no que diz respeito aos interesses públicos e privados envolvidos?

Luiz Pinguelli Rosa: A geração tem sido satisfatória, não temos falta de geração no momento. Há desequilíbrio porque as novas hidrelétricas são a fio d’água, exigem complementação, que acaba sendo feita com termelétricas caras e poluentes, inclusive contribuindo com o aquecimento global da Terra.

A transmissão expandiu bastante, mas tem gargalos, como mostrou o colapso de ontem (3/10), com queda de energia em várias áreas. O mérito é que foi por pouco tempo, nada longo, mas ocorreu em vários estados, por conta da queda de um transformador de saída da usina de Itaipu.

Já na distribuição, das grandes privatizações, os grupos estrangeiros que vieram para o Brasil ganharam muito dinheiro e continuam ganhando, em minha opinião. Os contratos são muito generosos com eles.

Correio da Cidadania: O senhor mencionou há pouco ser favorável à hidroeletricidade. A presidente declarou num evento recente que, “no caso específico da energia elétrica, nós temos de usar o fato de que a hidroeletricidade é uma vantagem competitiva do país” e que “só quem tem hidroeletricidade tem uma usina que vive mais do que seu pagamento”. O que pensa, neste aspecto, da postura da presidente Dilma em relação à importância das hidrelétricas dentro de um projeto nacional de desenvolvimento, simbolizada no crescente número de projetos de barramento em rios amazônicos?

Luiz Pinguelli Rosa: Sou a favor dos barramentos, desde que haja o devido cuidado ambiental, discutindo e aprovando o que for possível. Acho completamente fora de propósito o Brasil não usar a hidroeletricidade, é uma questão até de ignorância. Nesse ponto, não sei bem o que ela pensa, mas sou a favor.

Alguns projetos não precisam ser feitos, outros podem. O debate e a participação dos movimentos são bem vindos. Mas não podemos abandonar a hidroeletricidade por princípio religioso, pra depois fazer essas porcarias de reatores nucleares e termelétricas, que os movimentos fingem não estar vendo – porque há uma inspiração internacional muito forte sobre isso.

Correio da Cidadania: Belo Monte é a obra que, dentre as hidrelétricas, tem monopolizado o debate energético e ambiental, causando fortes embates, decorrentes do encaminhamento pouco democrático das discussões, do desrespeito a normas legais e ambientais e do atropelo das populações ribeirinhas e originárias. O que pensa do atual estado de coisas em torno deste projeto?

Luiz Pinguelli Rosa: Belo Monte não é sequer o pior dos casos. Acho que deve ser feita. Não inunda quase nada, gera energia, e depois se gasta e se remunera de acordo com os cálculos. Os índios podem ser compensados. Vai deixar aquela miséria em Altamira, deixar a situação daquele jeito em nome de uma condição intocada? Por que não se melhora a condição de vida daquela população miserável? Por que os índios brasileiros têm uma expectativa de vida que é metade da sua e da minha? Vou dizer que, sendo contra Belo Monte, eu os defendo? Tem que melhorar, como o Canadá fez, o estado dos lugares onde os índios vivem.

Claro que os processos democráticos de aprovação da obra devem ser respeitados, que se negocie, se respeite e se chegue a compensações. Porém, trata-se de um jogo político, é preciso fazer a batalha pra ganhar as melhores condições de vida. Porque, se tiver um pedacinho só daquela dinheirada toda, a periferia de Altamira pode melhorar e as condições de vida das populações indígenas dariam um salto de qualidade. Eles estão numa merda de fazer gosto; querer manter essa merda, pra mim, representa um atraso, e até um atraso da esquerda.

Correio da Cidadania: Como avalia o tratamento que o país reserva às formas alternativas de geração de energia, talvez mais notadamente a eólica? Existe, a seu ver, mais entusiasmo do governo em relação à energia nuclear?

Luiz Pinguelli Rosa: Está melhorando, ainda falta muito. A eólica está entrando no circuito, falta explorar a solar, do lixo, do bagaço de cana. Infelizmente, não existe nenhuma indústria brasileira no ramo da energia eólica, mas há 11 estrangeiras. É o estilo brasileiro de não fazer nada (com autonomia).

Não vejo tanto entusiasmo do governo em relação à energia nuclear, só essa história de Angra 3 que dá uma atravessada, porque volta e meia vem um discurso de apoio de alguém do governo. Mas não há uma política clara. E também há uma posição fraquíssima sobre o assunto por parte dos movimentos sociais. Dos tempos de Angra 1 e 2 pra cá, os movimentos ambientalistas se voltaram às hidrelétricas, não para as usinas nucleares, com raras e honrosas exceções.

Correio da Cidadania: Finalmente, o que pensa da condução do setor pelo atual Ministério das Minas e Energia, encabeçado por Edison Lobão? Concorda com estudiosos como Célio Bermann, para os quais o Ministério é hoje um quintal de Sarney e suas jogadas político-econômicas?

Luiz Pinguelli Rosa: Eu não personalizo nada, pois assim já me machuquei muito. Já acreditei em muitos santos que depois viraram demônios. De modo que não vejo a questão de tirar fulano por beltrano, lobão por lobinho. Já o setor, é tudo isso que falamos, somado. Seja lá quem for o ministro. A influência do Sarney é no Brasil todo e não o personalizo como o demônio. O que existe é o capitalismo perverso, que entra por todos os nossos poros. Não é só sair o Sarney que o problema de gestão do setor elétrico se resolve. Se fosse assim, bastava um tiro.

Valéria Nader, economista e jornalista, é editora do Correio da Cidadania; Gabriel Brito é jornalista.

Fonte: http://www.correiocidadania.com.br

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