EUA: as respostas imperialistas à pandemia. Por Eduardo Perondi

Por Eduardo Perondi, no México, para Desacato.info.

#FiqueEmCasa

Utilizar sacolas plásticas como luvas, acessórios de natação para proteção ocular, gazes e fraldas como máscaras, contêineres frigoríficos como necrotérios estacionados em frente aos hospitais, fossas comuns para enterrar os corpos. Estas são algumas das respostas das autoridades nos Estados Unidos ante o surto de coronavírus. Linha de frente no combate à pandemia, trabalhadores da saúde relatam, num misto de medo e indignação, cortes de salários, suspensão e modificação de contratos, jornadas de até 16 horas, falta de materiais de proteção à contaminação, esgotamento emocional e muita, muita raiva. “Nos sentimos como ovelhas indo para o matadouro”, relata uma médica de Nova York[1].

Maior potência econômica do mundo, os Estados Unidos estão enfrentando momentos muito difíceis com o surto de coronavírus. Atual epicentro da pandemia, os EUA se aproximam dos 500 mil contágios e 18 mil mortes por covid-19[2]. Talvez nenhum país estivesse suficientemente preparado para um desafio dessa magnitude, nem a China, apesar da resposta rápida e eficiente do país asiático. Mas, aparentemente, poucos estavam tão despreparados. A lógica do mercado que vigora no sistema de saúde norte-americano piora muito a situação. A atenção à saúde depende de seguros privados, pagos de forma individual ou associados a um emprego formal. Somente nas últimas três semanas 17 milhões de pessoas perderam o trabalho[3], sem contar o setor informal.

Dezenas de milhões de cidadãos estadunidenses não possuem, portanto, nenhuma cobertura médica. Alguns receiam ir a um hospital e sair de lá endividados. Medo de morrer pela doença e também de sobreviver a ela? Outros tantos milhões de migrantes indocumentados que vivem e trabalham nos EUA também não possuem nenhum sistema que os proteja. Neste caso, é preciso acrescentar o medo de buscar um médico e encontrar um agente da polícia migratória. Estão absolutamente a sós na luta contra a pandemia.

Tudo isso faz com que as mortes por coronavírus sejam muito seletivas nos EUA. A proporção de negros e latinos que falecem é muito mais alta que os demais. Na cidade de Chicago, por exemplo, 70% dos mortos por Covid-19 são negros, que representam menos 30% da população total[4]. Moradores de bairros pobres e periferias possuem o dobro de probabilidade de morrer pela infecção que em outras partes das grandes metrópoles. Devido às piores condições de habitação e de alimentação, falta de sistemas de saúde, necessidade de se expor ao risco de contágio para ganhar a vida, etc. O vírus não é democrático, nem no contágio e menos na letalidade. Ele reproduz todas as desigualdades visíveis e ocultas na “normalidade” da sociedade.

Pirataria, saqueio e guerra

Há bem mais que improviso na resposta imperialista. Depois de semanas negando a gravidade da doença, culpando os chineses pelo vírus e apontando a “cloroquina” como remédio, o governo Trump teve que reagir ao desastre. E o fez no melhor estilo do Tio Sam: promovendo um enorme saqueio mundial de recursos médicos. Depois do despreparo e da soberba, o poder imperial. A pirataria moderna consegue o que, nessa hora, o dinheiro pode não comprar. Os Estados Unidos confiscaram para si ventiladores de respiração, testes Covid-19 e máscaras de proteção comprados por Paraguai, Brasil, Alemanha, e outros países[5]. O lema é “America first”, repete o magnata da Casa Branca. Na fila do caos também há posições bem definidas. E o direito internacional se mostra como uma convenção ingênua ante o poder imperial, confirmado também pelas pilhagens médicas realizadas por França e Itália, sócios menores deste sistema imperialista decadente.

Mas como decadente não significa inofensivo, Trump resolveu aproveitar a oportunidade do momento para debilitar seus inimigos. Os EUA endureceram sanções econômicas contra o Irã – um dos países mais afetados pelo Covid-19 – fazendo burla do papel da ONU. As autoridades iranianas denunciam o “terrorismo médico” estadunidense que impede o acesso a medicamentos[6]. Trump também pressiona para que seus aliados não aceitem ajuda médica de Cuba, apesar de que estes já estão presentes em 38 países desde o início da pandemia. Cuba enviou médicos para a Itália, assim como a China, que também mandou toneladas de suprimentos médicos a este país. Os Estados Unidos enviaram soldados e armas[7], numa clara ameaça à Rússia.

Trump também enviou um arsenal de guerra rumo ao Mar do Caribe, o maior poderio bélico visto desde os anos 80 na América Latina[8], região que os EUA consideram como seu pátio traseiro. O pretexto é o combate ao narcotráfico, afirmam os representantes da nação que mais consome drogas no mundo. Mas o alvo não é a Colômbia, onde se produz 93% da cocaína que entra nos EUA. Essa guerra não convencional é contra a Venezuela[9], país que tenta administrar soberanamente suas próprias crises e as maiores reservas de petróleo do mundo, em meio a sanções, chantagens, ameaças de golpe e agora, de intervenção militar estrangeira. A ameaça é real, os porta aviões navegam pelas costas do pacífico ao atlântico, promovendo um bloqueio naval e estrangulando a economia venezuelana, enquanto esperam que funcione seu “plano para a transição democrática na Venezuela”.

Recessão econômica e a janela de oportunidades

Para piorar, a pandemia é apenas a cara visível e imediata de uma profunda crise económica mundial, talvez sem precedentes e que pode durar muito tempo. O Estado governado por Trump e a plutocracia capitalista que controla o sistema sabem disso. Por essa razão anunciaram um pacote de 2,3 trilhões de dólares de resgate, uma enorme soma de recursos destinados a salvar a economia. O auxílio à população prevê a distribuição de todas as migalhas que caírem da mesa do banquete corporativo ou, como dizem os neoliberais, jogarão algum dinheiro desde o helicóptero[10].

O resgate estadunidense prevê que dois terços do dinheiro público lançado ao mercado será para as empresas[11]. Esta “intervenção do Estado na economia”, como festejam os incautos, está dirigida mais uma vez a salvar grandes corporações, estatizar suas dívidas, dar-lhes novos empréstimos baratos, destravar regulações ambientais, favorecer especuladores, proporcionar aquisições de empresas menores que irão à falência. Ou seja, todas as facilidades para que voltem à produção irracional capitalista, para explorar uma força de trabalho que estará mais barata, abundante, flexível e mais controlada pós-covid. Um óleo lubrificante nas engrenagens da reprodução capitalista.

No fundo, aplicam a mesma lógica que, de tempos em tempos, leva o mundo a crises profundas, como esta, que já se anunciava bem antes da aparição do vírus. De fato, estão administrando esta pandemia com a mesma lógica, aproveitando a janela de oportunidades da crise. Aparentemente, muitos capitalistas já estavam preparados para ela, como demonstra o relato do Evento 201[12] – uma simulação de uma hipotética pandemia de coronavírus – patrocinado pelo Fórum Econômico Mundial, Fundação Bill & Melinda Gates, CIA, Bloomberg, ONU, etc, que aconteceu em outubro de 2019 em Nova York, um mês antes dos primeiros registros do coronavírus na China. Qual será o valor de mercado de quem patentear a prometida vacina para o Covid-19? O cassino das finanças mundializadas já admite apostas?

Não surpreende, portanto, que grandes corporações e cadeias produtivas farmacêuticas estejam faturando muito nestes dias de pandemia, assim como as “aplicações” de entrega de comida, plataformas digitais de trabalho, estudo e entretenimento. As ações da Disney despencam e sobem as de Netflix. Quebram os pequenos comércios da esquina e surgem novas lojas digitais. Aumenta a demanda de Amazon, que precisa contratar mais trabalhadores e os demite se reclamam das medidas de higiene da empresa[13]. Controle ferrenho o trabalho, dos recursos estratégicos e sobre a cadeia de produção e abastecimento de alimentos. Nada de novo sob o céu contaminado do capital.

As máscaras que ocultam a negligência  

A lógica da acumulação tenta administrar a crise. Ela está por trás do negacionismo, dos blefes, da cloroquina, da loucura planejada e de tantas bobagens ditas para distrair a atenção e mascarar negligências. No universo da desinformação, é mais fácil aceitar que nos governam loucos do que a verdade cruel por trás das suas prioridades. Complexas conspirações são mais críveis que a realidade absurdamente simples de que um vírus pode matar muita gente. E que estas vidas pouco importam para a lógica que controla esse mundo.

Sofisticadas tecnologias são eficientes para anestesiar os que ficam, evitar empatia com os que se vão, extrair o pior das vísceras de alguns. Os que morrem são “os outros”. Os sentidos de sobrevivência, de classe, de pertencimento, de possibilidades, fazem o resto. É preciso ficar em casa. Mas quem pode e quem não pode/não tem casa para ficar hoje? E daqui a um mês ou dois? Quem volta primeiro? A quarentena de uns depende de que outros enfrentem o vírus na rua? O que vai ficar do controle social, vigilância e militarização da sociedade aplicados durante esta tempestade?

São tempos difíceis. Mas os momentos de dificuldade também passam, nos ensinam a história, a memória, a verdade, as ciências e outros sábios ensinamentos que as tomam em sério, baseados na razão. Para toda doença há algum remédio, talvez também uma fake-news. O antídoto está aí, escancarado na frente de todos. Mas não basta vê-lo. É preciso lutar por ele, conquista-lo, para que todos o tenham.

Ante à infecção, o organismo reage, cria anticorpos e se defende, para sair fortalecido. Que as metáforas nos ensinem algo. Que não seja lavar as mãos.

[1] Democracy Now, 03/04/2020. <https://www.democracynow.org/2020/4/3/headlines/nearly_1_200_us_residents_die_of_covid_19_in_ju>st_one_day>

[2] University Johns Hopkins, 10/04/2020. <https://coronavirus.jhu.edu/map.html>

[3] Los Angeles Times, 09/04/2020. <https://www.latimes.com/business/story/2020-04-09/coronavirus-weekly-jobs-report>

[4] El País, 07/04/2020. < https://elpais.com/sociedad/2020-04-07/el-coronavirus-se-ensana-con-los-afroamericanos-en-estados-unidos.html>

[5] Luis Hernández Navarro, LaJornada 07/04/2020. < <https://www.jornada.com.mx/2020/04/07/opinion/021a1pol>

[6] HispanTV, 04/04/2020. < http://www.hispantv.com/noticias/politica/463016/iran-eeuu-sanciones-coronavirus-catastrofe>

[7] RT, 17/03/2020. <https://actualidad.rt.com/opinion/luis-gonzalo-segura/346331-estados-unidos-pone-riesgo-contagio>

[8] BBC News, 03/04/2020. < https://www.bbc.com/mundo/noticias-america-latina-52146237>

[9] Carlos Fazio, LaJornada 04/04/2020. < https://www.jornada.com.mx/ultimas/mundo/2020/04/04/lawfare-y-guerra-asimetrica-vs-venezuela-8860.html>

[10] BBC News, 09/04/2020. <https://www.bbc.com/mundo/noticias-52158525>

[11] Michael Roberts, 01/04/2020. < https://www.sinpermiso.info/textos/economia-de-guerra-contra-el-coronavirus>

[12] Pepe Escobar, 18/03/2020. < https://www.alainet.org/es/node/205314>

[13] BBC News, 31/03/2020. < https://www.bbc.com/mundo/noticias-52114445>

Imagem de capa: https://www.southcom.mil/MEDIA/IMAGERY/igphoto/2002274808/

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