Essa pessoa não existe, não coloca como vítima da covid-19…

Por Giselle Zambiazzi.

NA ERA DA PÓS VERDADE, “se os fatos estão contra mim, pior para os fatos”. É nessas horas que a saudade das lições “em carne viva com calda de chocolate” que meu amigo Renan Antunes de Oliveira me entregava ao pé do ouvido me fazem uma falta danada.

Ruim ter que conviver com o diabinho na minha orelha dizendo que Nietzsche venceu. Mal imaginava ele que nem mesmo as interpretações encontram mais lugar nas massas cinzentas que perambulam pelas calçadas algoritmizadas da vida-fantasia.

Olhos? Ouvidos? Tá tudo virado em dedo que toca uma tela brilhosa só pela dopamina. Tudo é só resposta pra pergunta nenhuma. Nada. Tô eu aqui com a minha raquete elétrica mandando diabo de Nietzsche pro quinto. Eita mosca ligeira.

Não. Eu me recuso a me entregar ao desânimo e me desvencilho desse ceticismo que tenta me enredar pelas canelas todo dia. Tropeço na dissimulação alheia, mas convencida da diferença de que quando sou eu que minto, eu minto com consciência e uma finalidade no ato.

Sigo à risca a premissa ensinada pelo concurso de miss: beleza com propósito.

O deboche é por minha conta mesmo.

Trabalho na assessoria de imprensa de uma prefeitura. Emitimos boletins diários com os números da covid-19. Eis que de repente, parte da imprensa estadual divulgou que houve uma morte nessa cidade onde eu trabalho.

Mas nem a pessoa e nem a morte jamais existiram.

– Oi, jornalistas, vocês poderiam por gentileza corrigir essa informação? Essa pessoa não existe, logo, ela não morreu.
– Oi, Giselle, mas nós recebemos a informação do governo do estado.
– Sim, eu sei e vocês sabem que os boletins do governo do estado estão errados, todos errados. Vocês mesmos já fizeram matéria sobre isso.
– É, mas a informação da morte veio do governo do estado.
– Você já me falou isso e eu, como profissional do setor da prefeitura que divulga diariamente os dados exatos da covid na cidade, tô te dizendo que o FATO é: essa morte não existe. Eu tô falando de um FATO. Você tá falando de um gráfico.
– Mas a informação é do governo do estado.

Só me resta a interpretação de que o jornalismo morreu, as pessoas morreram, tudo é nada. Sai Nietzsche.

O que importa são palavras-chave que o aplicativo vai subir no algoritmo que o Google vai mostrar na timeline daquilo que hoje a gente ainda chama de pessoa.

Clique.

Uma onomatopeia é o que move o mundo.

Clique. Vamos subir a hashtag de apoio à causa e repúdio ao presidente. Vamos construir um novo mundo! Mesmo que esse mundo seja habitado por pessoas mortas.

Prefiro o velho. Aquele com muro e tudo e que ainda não acabou.Vai ver por isso quando ergo os olhos, ainda vejo um horizonte vermelho de sol nascente.

Os gráficos e as estatísticas mentem.

A opinião do/a autor/a não necessariamente representa a opinião de Desacato. info.

 

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