Dívida pública, soberania e correlação de forças. Por José Álvaro Cardoso.

Por José Álvaro Cardoso, para Desacato.info.

     As propostas de ajuste fiscal há décadas cortam gastos primários, feitos com os pobres, sem considerar as despesas com a dívida pública que são as mais elevadas. É completamente inócuo fazer ajuste fiscal sem enfrentar o problema dos juros da dívida pública. Em 2015, o economista Adriano Benayon, (falecido em 2016) profundo conhecedor do tema da dívida e pilar da luta anti-imperialista, publAicou um cálculo que mostrava que desde a Constituição de 1988 os gastos com a dívida pública, atualizados monetariamente, superavam os R$ 20 trilhões. O cálculo do professor Benayon tomou o período até 2015, de lá para cá, pode colocar, no mínimo, mais R$ 1 trilhão em cima do somatório. Em função dessa evolução exponencial dos gastos, fica quase impossível definir o que é fruto de desvios, malversação e gestão errada da dívida.

     Segundo a ex auditora fiscal da Receita Federal, Maria Lúcia Fattorelli, a auditoria da dívida externa do Equador, da qual participou, concluiu pela total ilegalidade dos títulos existentes. O governo não sabia nem ao menos com quem negociar a dívida, que aumentava automaticamente, como se fosse determinação divina (no Brasil também é assim). Segundo Fattorelli, quando o governo resolveu enfrentar o problema e suas consequências, a verdade dos fatos começou a aparecer: o executivo equatoriano propôs pagar 30% do valor de face dos títulos e (pasmem) 95% dos detentores dos títulos aceitaram a negociação. Ao final do processo o Equador havia conseguido liquidar 70% de sua dívida externa em títulos.

     A Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da dívida pública do Brasil, da Câmara Federal, concluída em maio de 2010, apontou vários indícios de irregularidades. A começar pela prática de manter as taxas de juros entre as maiores do planeta (em muito períodos, a maior), que levou ao crescimento exponencial da dívida, inclusive nos estados e municípios. A CPI constatou generalizada falta de controle e registro do processo de endividamento, o que inviabiliza a transparência e fiscalização. Além disso, o relatório da CPI, apontou inúmeras ilegalidades na formação e gestão da dívida. Uma das mais importantes é a prática do anatocismo, transformação de juros em capital, sobre o qual passaram a incidir novos juros. Esta é uma prática ilegal, reconhecida pela Súmula 121 do Supremo Tribunal Federal. Há também, segundo o relatório da Comissão, a inexistência de contratos e documentos acerca das dívidas, tanto interna quanto a externa.

     Apesar da importância de apontar as irregularidades legais no tratamento da dívida pública, o problema não é eminentemente jurídico ou legal. Portanto jamais se resolverá por um detalhe jurídico, como por exemplo, uma eventual atuação do STF em função das irregularidades que cercam as questões da dívida pública. A questão não é de saber, e sim de poder. O STF sabe que o mecanismo da dívida é um método de sucção de riqueza do país. O problema é que esse sistema favorece os 0,5% mais ricos, que o STF defende.

     O relatório final da CPI não recomendou a auditoria da dívida (que seria o encaminhamento principal) ou mesmo o acionamento do Ministério Público para investigações sobre as ilegalidades verificadas ao longo dos trabalhos da Comissão. Como estamos tratando de um “sistema da dívida”, com aspectos econômicos e financeiros, mas também políticos, ideológicos e culturais, a sociedade praticamente nem ficou sabendo da CPI.

     Uma auditoria da dívida pública teria a condição de realizar um diagnóstico profundo da formação e composição da dívida, estabelecendo o que é e o que não é legítimo. Se a dívida é legítima como afirmam alguns, qual seria o problema de auditá-la? Sempre que esse debate ressurge, a ideia de realizar uma auditoria é imediatamente desqualificada como tentativa de “calote”, visando gerar na sociedade uma aversão à essa alternativa. Os credores da dívida são uma minoria muito poderosa, que dispõe de muito dinheiro e, portanto, tem muita influência na sociedade, nos meios de comunicação e nas instituições.

     Até outubro, a despesa do governo com juros da dívida somou R$ 349,2 bilhões em 12 meses, equivalente a 4,96% do PIB. Como o sistema da dívida é também político e cultural, ninguém questiona os 5% do PIB gasto com 20.000 famílias. Mas o orçamento do bolsa família para este ano é de R$ 29,485, equivalente a 8,4% dos gastos com a dívida e ninguém se indigna. Só que o dinheiro transferido para os banqueiros enriquece ainda mais 20.000 famílias, enquanto o recurso do Bolsa Família tira 53 milhões de pessoas do flagelo da fome (13,2 milhões de famílias).

     A dívida é um sistema de drenagem de recursos que impacta diretamente a vida de milhões de brasileiros. Os gastos com juros são a verdadeira razão do déficit nas contas públicas, portanto, não adianta tirar dos que têm menos, como fazem as políticas de “reforma fiscal” no Brasil e em todo o subcontinente latino-americano. A política de ajuste fiscal que vem sendo encaminhada desde sempre, a serviço dos rentistas, se concentra em políticas que achatam os direitos dos mais pobres e respondem por valores fiscais modestos.

     Do ponto de vista técnico sabe-se que o Brasil deveria apostar no desenvolvimento e: a) reduzir taxa de juros; b) Investir em geração do emprego e da renda e reforçar ainda mais o mercado interno; c) investir na indústria nacional e na agricultura;  d) aumentar recursos para desenvolvimento da pesquisa, ciência e tecnologia; e) fazer reforma tributária na direção de tornar o sistema mais progressivo, aprovando, por exemplo, o imposto sobre as grandes fortunas); f) combater a sonegação fiscal que desvia mais de R$ 500 bilhões por ano; g) investir pesado em infra estrutura. Mas houve um golpe de Estado em 2016, justamente para que tais políticas, que estavam se desenvolvendo (com limitações), não fossem implementadas. Os governos de esquerda não fizeram quase nada para enfrentar o Sistema da Dívida, mas o denunciavam. Os energúmenos que estão no poder são sócios deste esquema.

     A dívida pública, além de causar enormes prejuízos às finanças públicas e à sociedade, aumenta constantemente e de forma exponencial, como vimos. Quando o governo não consegue pagar os títulos nos prazos previstos, emite mais títulos, aumentando o estoque do principal da dívida. Dessa forma, os juros não pagos viram capital que, no futuro, vai gerar juros e assim por diante. Todo o esforço de fazer superávit primário arrochando o funcionalismo público, cortando gastos sociais e investimentos públicos, paga uma pequena parcela dos juros. Mas os gastos com juros da dívida pública são a verdadeira razão do déficit nas contas públicas.

     A dominação dos rentistas sobre a sociedade é tão grande que vigora a ideia de que o país tem que ter superávit primário, senão enfrentará problemas nas contas públicas. Mas isso nada tem base técnica, é apenas uma construção político-ideológica cultivada ao longo dos anos. Quando o governo reduz o superávit primário há uma indignação geral da grande mídia, dos analistas da TV, etc. Mas, muitos brasileiros morrem todo ano de doenças decorrentes da fome ainda e não se fala nada sobre o assunto.

     Desde que o auxílio emergencial caiu pela metade, R$ 300 a partir de setembro, o número de pessoas vivendo em situação de pobreza no País (conforme critério das Nações Unidas renda diária de US$ 5,50) aumentou em mais de 8,6 milhões. No mesmo período a população em situação de miséria (renda diária de US$ 1,9 dia) avançou em mais de 4 milhões de brasileiros (mais do que a população do Uruguai, miseráveis de setembro para cá). Mas isso não é importante, para a grande mídia e a chamada “opinião pública” de uma forma geral, e sim o governo fazer superávit primário para encher ainda mais os cofres dos banqueiros.

     Somando os resultados de Banco do Brasil, Itaú Unibanco, Bradesco e Santander no primeiro semestre de 2020, os cinco maiores bancos do país, o lucro líquido somado atingiu R$ 24,3 bilhões. Isso num ano em que a economia brasileira “desceu aos infernos”. O fato de o setor financeiro apresentar lucros tão elevados, num momento em que a economia brasileira está estagnada, revela que há um descolamento do setor financeiro em relação ao ciclo produtivo do país. Ao invés dos bancos estarem disponibilizando crédito para financiar a indústria, serviços e comércio (o que deveria ser uma vocação natural do setor), estão completamente absorvidos em faturar com juros aviltantes, inclusive no financiamento da dívida pública federal (mais de 90% da fortuna gasta com a dívida pública são endereçados ao sistema financeiro).

     Em função do grande poder econômico e político que os bancos detêm e da consequente enorme influência sobre a opinião pública, praticamente não se fala nos lucros do setor, ligado fundamentalmente aos ganhos dos rentistas, do que propriamente à disponibilização e intermediação do crédito, que deveria ser o papel e a vocação dos bancos. É certo que a conquista do desenvolvimento e da soberania no Brasil passa pelo enfrentamento corajoso da questão da dívida pública. Mas, em função do “sistema da dívida”, esta não será uma iniciativa dos governos; quando vier – e vai vir – será através da mobilização da sociedade organizada.

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José Álvaro Cardoso é economista e supervisor técnico do DIEESE em Santa Catarina.

A opinião do/a autor/a não necessariamente representa a opinião de Desacato.info.

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