Desnaturais flâneurs. Racionais não extremistas.

Por Victor José Caglioni.

Recentemente recebi de um amigo judeu, A.N (que pediu que fosse identificado apenas com um pseudônimo), uma carta de repúdio da comunidade judaica européia, sobre uma onda de anti-semitismo nas cátedras universitárias e em discursos políticos em nome de uma posição crítica ao fascismo cometido pelo estado de Israel, na complicada fronteira com os povos da Palestina.

Ao que tudo indica, movimentos acadêmicos e políticos ligados a correntes filosóficas, religiosas e científicas marxistas (Karl Marx era judeu!) e conservadores, que em nome da argumentação anti guerra entre essas duas nações, caem facilmente no conto do anti semitismo, por vezes inconscientemente.Com a influencia econômica de alguns países árabes nas universidades e campanhas políticas europeias essa tendência lamentavelmente parece haver se acentuado.

Durante duas semanas, A.N e eu, buscamos analisar algumas postagens em redes sociais, blogs, sites e discursos políticos do Brasil, Argentina e Europa, ficou evidente que é comum a argumentação do anti de forma extremista, do global ao local.

Como assim anti?

Bom, a exemplo: é óbvio que ninguém em sã consciência e de respeito ao próximo declara apoiar dito conflito, de proporções históricas e sociais complexas que seguramente não daríamos conta de transcrever aqui (mortes, injustiças, indústria de armas etc…), no entanto o que nos chama atenção é para o fato da contínua e progressiva assimilação do anti guerra ao anti sionismo, anti-semitismo, ao anti islã, anti EUA… como algo natural.

O sionismo é um movimento religioso dentro do judaísmo que prega a existência de uma nação formada pelos judeus na Terra Santa, historicamente contextualizada no Antigo Testamento e responsável pela ideia que deu origem ao Estado de Israel.

O anti sionismo, é a aversão dessa ideia que hoje tem como principal “alvo” o “partido da Liberdade” de extrema direita e que governa Israel e que é conhecido por sua prática de neo fascismo.

Ninguém em sã consciência e de respeito ao próximo deveria apoiar o fascismo, que prega que a “identidade enquanto nação” seja determinada pela unidade de raça, língua, cultura e território (diversidade mínima). Devemos lembrar do terrível período histórico em que esses ideais tiveram êxito na Itália, França, Espanha entre outros, tendo na Alemanha sua projeção mais acentuada com o nazismo.

No entanto, ser em contra essa política de guerra não implica (ou deveria implicar) ser em contra aos judeus (anti semitismo) assim como também não justifica ser em contra a ideia da criação do Estado de Israel (anti sionismo) por mais polêmica que possa resultar tal reflexão. A criação do Estado da Palestina também está na sua condição de direito. Se buscarmos na história, grandes intelectuais, artistas e políticos judeus proclamaram-se em contra a política fascista do Estado de Israel (entre tantos, destaque a Albert Einstein) assim como hoje o fazem muitos israelenses e palestinos natos dentro desses Estados.

Acontece algo semelhante em outras pontas: islâmicas, muçulmanas e neo-pentecostais com orientação política, onde também é possível encontrar políticas extremistas que resultam igualmente no privilégio de recursos em nome de “guerras” sem fim, que resultam em uma lógica financeira e industrial de apropriação de recursos questionável! Guerras que são sustentadas (independente dos seus reais interesses) em parte pela projeção de idéias de diferenciação humana, através de valores em que se julgam “superiores” e “inferiores”, “civilizados” e “não civilizados” em razão de crenças, cor de pele, orientação sexual, porte físico etc…

Dentre todas as crenças mencionadas e igualmente nas não mencionadas, encontramos os flâneurs, como diriam os franceses sobre os andarilhos, que observam aos demais e as cidades, produtos de sua sociedade e acabam sendo “vítimas” do resultado de suas próprias observações, se “entendem”, frente ao desentendimento geral da qual fazem parte.

Durante nossas conversas A.N e eu chegamos a argumentações semelhantes ao que ouvi no Brasil, há mais de uma década, de uma freira muito querida que anda país afora, algo como: “É preciso deixar Deus (agregaria deuses para aqueles que assim o entendem) em paz, e resolvermos nós mesmos nossos problemas, e dessa forma o faremos mais presente”.

Muito além de identificar verdadeiras “injustiças”, a política do anti, pode resultar num perigo aos não anti, que apenas querem viver suas vidas com direitos e respeito. Estes que embora não atacam, são socialmente atacados, sofrem a contra partida, na qual dentre outros males o menor, uma pressão ao posicionamento extremista e pouco racional.

Observações interessantes e básicas:

1)A fé se propõe a contribuir para o crescimento humano interior e pessoal, para assim resultar em melhor sociabilidade entre os mesmos (lógica presente na maioria das ideologias de divindades).

2) A ciência comprometida se propõe a explicar, identificar, analisar, organizar e outros verbos mais, a fim de proporcionar melhores técnicas e/ou soluções para nossas vidas.

3) A política, quando se propõem a algo, o faz em nome da resolução de problemas, através da administração dos recursos materiais e humanos disponíveis, a fim de brindar maior desenvolvimento. (lógica presente na maioria das ideologias políticas).

Utópico, verdade? Afinal todas elas podem ser usadas para resultar naquilo a que se propõe, em parte daquilo a que se propõe ou em contra a que se propõe, as relações de poder podem determinar seus caminhos.

 Isso tudo parece nos remeter a psique que produz o mito simbólico de Caim e Abel, em que o primeiro ao não saber lidar com a “diferença” de seu semelhante, atribuída internamente pelo ciúme, desenvolve argumentos e táticas que resultam na escolha da “não aceitação”, “dominação” e “destruição” daquele que é o Outro, entendendo a “diferença” como “ameaça” e não como possibilidade de “reconhecer-se”, pensar em si mesmo e no Outro. Uma odisseia humana.

Tema complexo! Difícil e sem solução! Poucos assim interpretarão por que isso causará instabilidade aos preconceitos, aos egos e certezas. Como resultados dessa lógica os chamariam de loucos, de flâneurs e também os excluiriam. No quadro atual, a regra soa como um “perigo pessoal eminente” da qual as pessoas devem evitar ao máximo.

Evidente ou não, se conceberia que é justo e necessário maior cuidado para não crucificarmos, com ou sem a argumentação do anti, más gente inocente, afinal não era judeu aquele perseguido a pouco mais de dois mil anos? Não eram cristãos os perseguidos no Império Romano? Não eram muçulmanos pós 11 de Setembro de 2001? Não eram as mulheres, não eram negros, não eram homossexuais, não eram índios… Eram ou ainda são? O mito da diferença de Caim e Abel parece ainda mais vivo que o da Torre de Babel em tempos de globalização! Enquanto isso…

Victor José Caglioni, sociólogo. Buenos Aires. Argentina.

Foto: Etowerszone.

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