Democratização dos partidos: a agenda (quase) ausente na reforma política

Por David Carneiro.

Partidos políticos são fundamentais para a democracia. Ainda que não sejam o único vetor de organização democrática, os partidos têm sido, pelo menos até agora, uma peça fundamental na agregação de interesses e ideias, organização dos parlamentos e produção e sustentação de governos. Mesmo quando não detêm o monopólio da representação, como detêm no Brasil, os partidos são atores proeminentes nas democracias contemporâneas.

Dado esse papel, fica a pergunta: não deveriam os partidos, como atores proeminentes nas democracias, serem democráticos também da porta para dentro? Trata-se de uma pergunta nada trivial, que vem, inclusive, capturando a imaginação sociológica desde o clássico ensaio de Michels, sobre a “lei de ferro (ou bronze) da oligarquia” e as tendências não-democráticas de todas as organizações que, com a divisão do trabalho, produzem também interesses especiais.

Mas se “quem diz organização, diz oligarquia”, várias têm sido as estratégias, em diversas partes do mundo, para contrapor essas tendências. Na Alemanha, por exemplo, o “Ato dos partidos políticos”, de 1967, foi considerado fundamental para a consolidação democrática do país e exige, por exemplo, igualdade de direitos entre filiados, renovação periódica dos comitês executivos e eleição de pelo menos dois terços dos órgãos deliberativos.

A Lei Orgânica 6/2002, da Espanha, é outro exemplo de estatuto legal que avançou sobre a necessidade de democracia interna dos partidos políticos. Dentre outras coisas, dispõe que os partidos devem ajustar suas organizações e atividades aos princípios democráticos e que os órgãos diretivos devem ser preenchidos mediante voto livre e secreto. Já a Lei Orgânica no.2/2003, de Portugal, prevê que as organizações partidárias devem ser regidas pelos princípios da “organização, gestão democrática e participação dos filiados”, exigindo também equilíbrio entre os gêneros nas direções partidárias.

Na América Latina, o Chile é um exemplo de país que também avançou nesse sentido. Com as reformas trazidas pela Lei no.20.925/16, os partidos políticos devem conter especificação detalhada dos direitos dos filiados, dentre os quais participar das instâncias partidárias e possuírem direito a voto nas eleições internas. Preveem ainda a necessidade de contratação de auditoria externa para a prestação de contas e suas submissões à Lei de Acesso à informação.

No Brasil, sempre houve uma resistência histórica ao avanço da legislação sobre a vida interna dos partidos. Segundo o cientista político Bolívar Lamounier, um dos argumentos públicos levantados é o de que, no contexto da redemocratização, os partidos buscaram fugir da designação de “pessoas de direito público interno”, o que lhes dava a conotação de “braços do estado”. Os debates no curso da redemocratização sempre atuaram no sentido da “desregulamentação”.

Recentemente, com o crescente debate acerca da eficácia horizontal dos direitos fundamentais, experiências frustradas de muitos militantes e políticos com mandato e, principalmente, pressões da sociedade, o debate volta à tona. Não bastasse isso, a própria Constituição afirma em seu art. 17 que os partidos devem resguardar o regime democrático e os direitos fundamentais da pessoa humana. Não há por que interpretar que possam, já que não devem, atuar como pequenas ditaduras ou feudos dentro de suas próprias instâncias.

No curso dos debates acerca da reforma política de 2017, o relatório do deputado Vicente Cândido (PT-SP) chegou a propor algumas medidas de promoção da democracia partidária. Dentre elas, o estabelecimento de princípios na Lei 9096/95 (a Lei dos Partidos Políticos), como a renovação periódica das direções, gestão democrática dos filiados e transparência na utilização de recursos públicos e privados. Além disso, chegou a estabelecer a necessidade de realização de prévias ou primárias para a escolha dos candidatos de cada partido. Infelizmente, essas medidas não obtiveram maioria e foram retiradas na fase de Plenário.

A bandeira da democratização dos partidos sofreu ainda um segundo golpe com a constitucionalização das comissões provisórias na votação da PEC 282 (aprovada como Emenda Constitucional 97/17), que tratava do fim das coligações proporcionais e estabelecimento da cláusula de desempenho.

As comissões provisórias, ainda que nem sempre o sejam, têm sido um instrumento muito utilizado pelos partidos para manter indivíduos ou grupos diretamente indicados pelas cúpulas partidárias nos estados e municípios, sem que os partidos se institucionalizem e possam ganhar uma vida orgânica e democrática.

Estima-se, atualmente, que 80% dos órgãos partidários municipais sejam comandados por comissões provisórias. Nos Estados, esse percentual é de cerca de 56%. Apenas PT e PSOL indicaram voto contra a constitucionalização. Rede liberou a bancada, mas o Deputado Miro Teixeira também declarou pessoalmente o voto contrário.

De todo o modo, o debate segue. O argumento da autonomia total como condição de liberdade não mais prospera, tanto pela experiência internacional, quanto pelos preceitos constitucionais e as próprias exigências que a Lei dos Partidos já faz no Brasil, como a igualdade de direitos entre os filiados (art. 4º) ou mesmo o amplo direito de defesa na apuração de infrações e aplicação de penalidades (art. 15º).

É preciso, de certo, ter cuidados com algumas disfuncionalidades que exigências de democratização podem gerar, como problemas à coesão partidária e mesmo a reprodução interna de fenômenos como a patronagem e captação ilícita de sufrágio. No país em que muitos ainda são conhecidos como os “donos do partido”, no entanto, a não-democracia continua sendo o pior dos mundos.

Fonte: CartaCapital

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