Crítica da justificativa do projeto de reforma da previdência dos servidores estaduais de Santa Catarina

Foto: Mónica Silvestre/Pexels

Por Luciano Fazio ( [email protected] )1

Em junho de 2021, o governo do estado de Santa Catarina enviou à Assembleia Legislativa projeto de reforma do Regime Próprio de Previdência Social do Estado (RPPS/SC) que prevê a redução média de cerca de 20% a 30% dos benefícios a conceder; estende a contribuição dos inativos, que passa a ser cobrada praticamente de todos os aposentados e pensionistas e a diminuir o provento líquido médio em mais de 10%; aumenta o período laboral em 15% para os homens e 23% para as mulheres, entre outras medidas. As grandes perguntas são: Qual é o problema? Quais as causas? Quais as soluções? Em tese, as respostas estão na justificativa do projeto, que é analisada neste artigo.

I – A justificativa apresentada

Conforme declarações oficiais, o projeto é a resposta ao aumento do déficit do RPPS/SC, que decorre da previdência dos servidores tanto civis quanto militares. A proposta, contudo, não altera as regras dos militares, que a justificativa do governo não menciona em lugar algum. Como sempre, na análise de discursos, importa não apenas o que é dito, mas também o que é silenciado. Nesse caso, o silêncio esconde o objetivo de privilegiar uma categoria de servidores em detrimento das demais.

O aumento do déficit do RPPS-SC é o sintoma do problema. As causas devem ser identificadas por um diagnóstico, que o governo realiza de forma superficial, quando aponta o aumento da longevidade dos segurados e, mesmo admitindo não ser a única, não identifica outras causas, limitando-se a mencionar genéricas “transformações sociais e econômicas”:

Além do critério do aumento da longevidade, as adequações se justificam pelo momento histórico e conjuntural, em que as transformações sociais, e não somente do ambiente econômico, resultaram ao longo das últimas décadas na ampliação de dezenas de benefícios custeados pelos recursos decorrentes das contribuições previdenciárias e do déficit corrente suportado pelo Tesouro Estadual.

Não cabe falar em “dezenas de benefícios”, pois os atuais benefícios do RPPS/SC são apenas cinco: as três aposentadorias (voluntária, por invalidez e compulsória), a pensão por morte e o auxílio-reclusão.

A respeito da única causa apontada, seguem as observações críticas A, B e C.

A – Para medir a longevidade dos servidores, o governo utiliza a expectativa de vida do brasileiro ao nascer, enquanto na previdência o que importa é o período de recebimento dos benefícios, compreendido entre a data da aposentadoria e o falecimento do segurado, ou seja, a expectativa de sobrevida ao se aposentar.

B – As justificativas ignoram totalmente o impacto da pandemia Covid-19 no Brasil que reduziu o tempo de vida estimado em cerca de dois anos apenas em 2020 2:

O brasileiro perdeu quase dois anos de expectativa de vida em 2020 por causa da pandemia de covid-19. Em média, bebês nascidos no Brasil em 2020 viverão 1,94 anos a menos do que se esperaria sem o quadro sanitário atual no país. Ou seja, 74,8 anos em vez dos 76,7 anos de vida anteriormente projetados. Com isso, a esperança de longevidade dos brasileiros retornou ao patamar de 2013. A queda interrompe um ciclo de crescimento da expectativa de vida no país, que partiu da média de 45,5 anos, em 1945, até atingir os estimados 76,7 anos, em 2020, um ganho médio de cinco meses por ano-calendário.

Os dados do governo, resumidos na Tabela 1, apontam o constante crescimento do indicador. Ignoram a redução de 1,94 anos (23 meses) da expectativa de vida no único ano de 2020, exaustivamente divulgada na imprensa no 1º semestre deste ano. Cinco vezes mais, em valores absolutos, do que a média histórica (5 meses por ano).

Tabela 1 – Expectativa de vida ao nascer em nº de anos (1940 – 2017).

1940

1950

1960

1970

1980

1991

2000

2010

2017

45,5

48

52,5

57,6

62,5

66,9

69,8

73,9

76

Fonte de dados: IBGE

Para os especialistas o ano de 2021 deve agravar a redução de 2020. Essa previsão já foi confirmada pelas taxas de mortalidade do 1º semestre deste ano no país. Em relação ao ano de 2019, o crescimento foi de 38% e de 53% em 2020 e 2021, respectivamente 3.

C – O descompasso entre as variações da longevidade e do déficit do RPPS/SC.

Também na previdência, é útil o Princípio de Pareto, que classifica as várias causas verdadeiras de problemas complexos em dois grupos: o primeiro composto pelas poucas causas que geram um grande efeito (as poucas vitais) e o segundo formado por muitas causas de efeitos pouco relevantes (as muitas triviais). A utilização desse princípio orienta a busca de soluções eficazes, mesmo sem atacar todas as causas, e indica que o aumento da longevidade não é uma causa vital do déficit do RPPS/SC.

Custeado em regime financeiro de repartição simples, o RPPS/SC tem suas despesas correntes custeadas por receitas correntes, sem a acumulação prévia de recursos que caracteriza o regime de capitalização. Eis que o equilíbrio do RPPS/SC depende dos fluxos de contribuições e de pagamento de benefícios em manutenção e é avaliado pelo resultado financeiro, dado pela diferença entre as receitas contributivas e as despesas no exercício. Quando tal resultado for negativo, há déficit ou insuficiência financeira.

O governo escreve: “Em 10 anos a insuficiência cresceu 612,39%, saindo em 2009 de R$ 784 milhões, para mais de R$ 4,8 bilhões, anuais” 4.

O déficit reflete diretamente o aumento das despesas, que via-de-regra crescem em 1% em consequência de cada 1% de aumento da expectativa da sobrevida dos segurados (fator de proporcionalidade igual a 1). Nos últimos 40 anos, a sobrevida do idoso de 65 anos de idade passou de 12 para 18,4 anos, conforme dados do IBGE, com uma ampliação de 53%, equivalente a 1,1% ao ano. Eis que, entre 2009 e 2020, a longevidade do inativo cresceu 12,5%. Até se o período de pagamento de benefícios aumentasse 2 anos para cada ano a mais de sobrevida do brasileiro (um ano para o aposentado e outro para o pensionista), as despesas teriam subido em 25%, no máximo, apenas a vigésima parte dos 512% do déficit. Em suma, a maior duração da vida dos inativos não explica a majoração do déficit do RPPS/SC.

II – A causa vital do déficit.

A justificativa do governo omite as grandes causas do déficit do RPPS/SC. Aponta apenas as relacionadas a variáveis biométricas. Apesar de silenciada, a baixa proporção de servidores ativos em relação aos aposentados e pensionistas representa a causa vital do déficit do RPPS/SC. De fato, na previdência operada em regime de repartição, onde o cálculo do resultado considera apenas as receitas de contribuição, o equilíbrio financeiro depende da equação:

Total de Benefícios Líquidos = Alíquota contributiva x Total de remunerações dos servidores ativos

A contribuição dos inativos, na prática, é um redutor de benefícios. Ou seja, o RPPS financia apenas o montante de benefícios, já líquidos da contribuição devida pelo aposentado ou pensionista. A atual alíquota contributiva total sobre as remunerações dos ativos do RPPS/SC é de 42%, pois as alíquotas contributivas dos servidores civis e as patronais são de 14%, e 28%, respectivamente. A remuneração média dos segurados ativos é de R$ 7.421 e o provento médio dos inativos de R$ 7.163. Assim, se a proporção entre servidores ativos e inativos fosse de 3 x 1, não haveria déficit. No fim de 2020, entretanto, o quadro civil tinha 353,4 mil servidores ativos e 354,7 mil inativos. A atual proporção de 1 x 1, por si só, provoca a insuficiência financeira, apenas mitigada pela contribuição dos inativos que reduz o montante de benefícios a ser efetivamente pago.

A deteriorada relação entre ativos e inativos advém de processos ainda em curso: a informatização e a terceirização das atividades, as contratações sem concurso e/ou de “colaboradores” como pessoas jurídicas, a falta de concursos públicos, o rebaixamento das remunerações dos servidores recém-ingressados, entre outros. E poderá ser agravada, se for aprovada a PEC nº 32, que permite excluir do RPPS/SC a maioria dos futuros servidores, em consequência de um novo enquadramento funcional.

Conclusão

De um lado, a preocupação governamental com os custos crescentes da previdência dos servidores é legitima. De outro lado, a justificativa apresentada para a reforma proposta é insuficiente, inclusive contendo vários erros e omissões, não sempre de todo inocentes.

1 Matemático pela Università degli Studi de Milão/Itália e especialista em previdência pela Fundação Getúlio Vargas. Autor do livro “O que é previdência do servidor público”. Edições Loyola, 2020.

2 Ver a matéria “Brasileiro perdeu quase 2 anos de expectativa de vida na pandemia, e 2021 deve ser pior, diz demógrafa de Harvard”. Disponível em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-56743837, acesso em 30/06/2021.

3 Ver a matéria “Com Covid, Brasil tem 1º semestre com mortalidade 53% maior do que em 2019”. Disponível em https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2021/07/13/com-covid-brasil-pais-1-semestre-com-mortalidade-53-maior-do-que-em-2019.htm. Acesso em 13/07/2021.

4 A rigor, o período entre 2009 e 2020 é de 11 anos (os anos não são 10) e o crescimento do déficit financeiro do RPPS-SC é de 512% (a percentagem informada, de 612%, está errada).

A opinião do/a autor/a não necessariamente representa a opinião de Desacato.info.

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