Crise cultural brasileira é profunda

Por Maurício Caleiro.

artigo de Mino Carta com o autoexplicativo título de “A imbecilização do Brasil” continua provocando muita polêmica. Nele, o veterano jornalista diagnostica que “Os derradeiros, notáveis intérpretes da cultura brasileira já passaram dos 60 anos, quando não dos 70” e que o país não mais produz espécimes culturais do quilate de Guimarães Rosa, Faoro, Portinari – e, poderíamos acrescentar, de Chico Buarque, Tom Jobim, Paulo Emílio Salles Gomes.

O editor de Carta Capital atribui à mídia grande parte do problema, citando nominalmente o Big Brother Brasil, as lutas do MMA e do UFC, os programas de auditório e as novelas que falseariam a sociedade que supostamente estariam a representar.

Falsas premissas

As reações ao texto incluem a acusação de elitista, de pouco inteirado em relação ao novo universo cultural brasileiro, de rabugento ou infeliz. Não as endosso. Pelo contrário: tenho a forte impressão de que a maioria dessas reações decorre do desgosto de se ver posto em frente ao espelho. Há também a hipótese de que a pobreza cultural seja tamanha que muitos não disponham de elementos para sequer se dar conta dela. Por último, penso não ser possível descartar um certo orgulho ferido geracional, que leva os mais jovens a negar a imbecilização cultural evidente.

A acusação de que a crise cultural se circunscreveria à elite, decadente – enquanto a periferia mostra-se culturalmente exuberante -, me parece particularmente perniciosa, pois baseada numa premissa falsa. Clarice Lispector e Graciliano Ramos, como tantos escritores brasileiros, moraram em pensões, à beira da fome; Tom Jobim contava o dinheiro do aluguel nas teclas de piano dos piores inferninhos; Florestan Fernandes chegou a ser engraxate; os amigos de Villa-Lobos tiveram de fazer uma vaquinha para que, consagrado e no final da vida, ele pudesse tratar do câncer que o acometera; Portinari, já rapazinho, andava descalço por Brodósqui e passava frio no inverno (meu pai conta, com os olhos a lamentar a fortuna perdida, que minha bisavô teria tricotado para o jovem pintor três pares de meia, aos quais a mãe dele quis retribuir com uma gravura pintada pelo filho, que minha bisavó polidamente recusou…). Enfim, os exemplos são múltiplos.

Sair do gueto

Por outro lado, parece-me necessário examinar com mais apuro a alegação de que haveria, hoje, uma renascença cultural na periferia – e que ela estaria mantendo o tradicional alto nível da cultura brasileira e problematizando-a. Parece evidente que setores historicamente oprimidos vêm, cada vez mais e de forma mais capilar, produzindo cultura, muitas vezes de bom, às vezes de ótimo nível, notadamente através da música, do grafite, da dança, das artes circenses e, de forma ainda seminal, do audiovisual.

Isso, naturalmente, é uma alvissareira novidade, com um enorme potencial, mas não creio que disponhamos objetivamente, neste momento, sem que essa cultura efetivamente se difunda e se faça socialmente reconhecida por um público mais amplo, de elementos para determinar suas qualidades e seu papel revigorante na cultura brasileira, que permanecem, até agora, uma potencialidade – além de wishful thinking de quem coloca a agenda política à frente de critérios condizentes de apreciação da arte.

O bom-mocismo e a solidariedade classista infelizmente não coadunam bem com a avaliação criteriosa de manifestações artísticas, como exemplifica a afirmação, repetida em termos similares por Caetano Veloso e por José Miguel Wisnik, de que Sobrevivendo no Inferno, dos Racionais MCs, é o melhor disco brasileiro do último quarto de século. Ela é ótima como frase de efeito, mas seria preciso, no mínimo – para não entrar em questões especificamente musicais e de “influência” estrangeira -, negligenciar a misoginia machista das letras para, valendo-se de um critério em que a origem social do grupo se sobrepõe à qualidade estética da obra, levar tal julgamento a sério.

Escola do ressentimento

A tentativa de contrapor, a priori e sem análises detidas, uma “decadente” cultura elitista do passado a uma “vibrante” cultura periférica do presente, operação que sobrepõe ideologia a critérios artísticos e cujo esquematismo evidencia-se já ao anunciar-se, não é uma invenção do Brasil lulista. Como tantos outros itens da agenda de um certo conservadorismo ianque travestidos de conquistas da esquerda brasileira, ela reedita, em outro contexto, com pequenas adaptações e vinte e tantos anos depois, o que Harold Bloom, crítico literário e professor de Yale, qualifica de “Escola do Ressentimento”.

Ele se refere, especificamente, ao esforço multiculturalista para rever o cânone literário ocidental, com a supervalorização dos parâmetros ditados por questões de raça e de gênero sexual em detrimento das qualidades estético-formais das obras. O paroxismo desse processo foi a exclusão de artistas como Picasso do currículo de cursos de artes, por representar o macho branco ocidental opressor. A julgar pelas respostas ao texto de Mino, logo chegaremos lá.

Economia da cultura

Mas, para além dessa sobrevalorização precoce do periférico, sinto falta, sobretudo, de uma visão que leve em conta as relações sociais de produção da cultura em nosso país. Quais são suas determinantes econômicas? Quem produz e quem consome cultura, sob que condições, que preços, que cardápios?

Pois, para cada produto de qualidade que a Globo se digna a lançar, ela desova uma edição inteira do Big Brother Brasil – esse festival de ignorância e exibicionismo vazio que assola o país três ou quatro meses por ano -, mais 52 edições anuais de Luciano Huck, Faustão, Xuxa, milhares de capítulos de novela, além de transmissões esportivas comandadas por tipos como Galvão Bueno. Mas não se limita à própria esfera televisiva a ação da Rede Globo.

Cinemão e teatrão

Durante um longo período de tempo, o cinema brasileiro foi uma espécie de reserva cultural da nação, um oásis de reflexão e de experimentalismo em um universo cultural marcadamente mercadológico. E hoje? Mino Carta cita, em seu artigo, como amostra de boa produção cultural do presente, o filme O Som ao Redor, de Kléber Mendonça Filho. Tomemo-lo como exemplo. Qual o publico desse filme? Quanto tempo ficou em cartaz e em quantas salas de cinema? A parcela de cidadãos os quais ele critica viu ou virá o filme? A resposta a todas essas perguntas tem de levar em conta que desde 2003 as produções da Globo Filmes, sem alterar o espaço sagrado dos filmes de Hollywood – essa invasão permanente de mercado, que todos aceitam calados -, ocupou mais de 90% do espaço destinado ao cinema nacional com suas comédias sofríveis e seus dramas sonolentos, de linguagem televisiva. O espaço para filmes reflexivos e inovadores, como O Som ao Redor, está neste momento dramaticamente reduzido, o que faz com que muitos cineastas trabalhem 3, 4, 5 anos em um filme que, quando lançado, fica uma ou duas semanas em cartaz e some.

O teatro brasileiro, que desde a montagem inovadora de Vestido de Noiva de 1942, dirigida por Ziembinski, apresentou ciclos de inovação e experimentalismo, com forte entonação política a partir da virada dos anos 50 em diante – e durante toda a ditadura, graças a nomes como Vianinha, Gianfrancesco Guarnieri e Dias Gomes. Hoje, com raríssimas e veteranas exceções – Saravá, Amir Haddad e José Celso Martinez Correa -, se transformou numa sucursal da Rede Globo, praticamente monopolizado por peças em que o destaque é a fama – às vezes devida ao talento, às vezes à, digamos, boa forma física – dos atores e atrizes, mas não à qualidade do texto, da encenação ou das escolhas estéticas. O experimentalismo encontra-se, hoje, num gueto, sem público, sem visibilidade.

O modo pervasivo como a mídia corporativa ajuda a plasmar um mercado cultural pasteurizado, pouco inovador e ideologicamente conformado parece-me, pelas razões acima elencadas, um dado a corroborar a opinião de Mino Carta sobre o papel imbecilizante da mídia. Que a percepção sobre tal fato seja explicitada após uma década de governos ditos de centro-esquerda é algo paradoxal, a evidenciar a persistência de mais um aspecto retrógrado no que deveria ser um governo progressista. Por outro lado, não se pode isentar os governos Lula e Dilma de sua parcela de responsabilidade pela situação, dada a resistência de ambos em regularem a mídia e fazer as TVs – que são concessões públicas – cumprimem funções educacionais, como a Constituição determina.

IIusões persistentes

Muito haveria a se falar e a examinar em relação ao tema deste post, incluindo temas como a relação entre mídia, novas religiões pentecostais e cultura, a questão da inserção social da universidade, a contextualização do tema em termos internacionais, o papel da internet, entre outros tópicos. Mas, por questões de espaço e, sobretudo, de tempo, paro por aqui.

Ante um panorama como o acima descrito – de monopólio cruzado de uma megacorporaççao de mídia, em um país que o orçamento destinado a cultura é ínfimo e o ministério é utilizado como moeda de troca em meras eleições municipais -, constatar que pessoas que se dizem de esquerda mostram-se entusiasmadas com o atual cenário cultural brasileiro, além de soar extremamente contraditório, remete-me aos primeiros indígenas sul-americanos, contentes e deslumbrados com os espelhinhos e bugigangas com as quais o invasor espanhol os presenteou, antes de exterminá-los.

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