Caças às “bruxas”, a gente vê no Brasil de 2018

Foto: Mídia Ninja

Por Simony dos Anjos.

Queridas pessoas leitoras, infelizmente, a lógica da “caça às bruxas” é uma realidade no nosso país; mulheres que se colocam na arena pública para combater discursos machistas e patriarcais, propondo políticas públicas e acesso ao aborto seguro e legalizado, são perseguidas, ameaçadas e intimidadas, na grande maioria das vezes, por religiosos. Sendo assim, urge que nós, religiosos progressistas, nos coloquemos contra essa corja de “pastores” e “cristãos” que insistem em legislar a partir de uma leitura torpe, antipopular e anticristã, da Bíblia.

Nós, mulheres cristãs feministas, somos duramente criticadas, ameaçadas e perseguidas por propor uma leitura libertadora e progressista da Bíblia. Sim, para nós, a Bíblia é do povo, o povo é que tem que fazer uso desse conhecimento, não meia dúzia de homens mal intencionados que visam manter privilégios de uma parcela mínima da população, em detrimento do bem comum. Assim, a coluna (fé)ministas denuncia três casos de mulheres que têm sido perseguidas por religiosos e reacionários e, também, faz o convite para que outros religiosos progressistas se juntem a nós nessa tarefa!

No Rio de Janeiro, a Frente Evangélica pela Legalização do Aborto (FEPLA), tem sofrido sérias perseguições por se posicionar contra a argumentação de religiosos que não admitem que a legalização do aborto é uma questão de saúde pública. Desde ameaças pelas redes sociais à pichação de casas, ofensas por vídeo, desmerecimento da hermenêutica bíblica feminista e, recentemente, um grande movimento para evitar que o debate Cristianismo e a descriminalização do aborto acontecesse  movimento mal sucedido, pois o evento ocorreu. É uma demonstração da perseguição que mulheres que levantam a bandeira dos direitos reprodutivos das mulheres sofrem. A realidade é que essas posturas inviabilizam um debate sério, baseado em pesquisas médicas, sociais e de saúde pública. O que há é uma moralidade torpe cristã que quer legislar sobre corpos femininos e não, como dizem, defender a vida.

Em Londrina, Paraná, a médica Débora Anhaia de Campos tem sofrido ameaças de perder seu Registro no Conselho Regional de Medicina, haja vista a sua preocupação e luta pelos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres e pelos direitos civis da população LGBTI. Setores da Direita e religiosos fundamentalistas têm colocado sua ira, ódio e moralismos como argumentos para perseguir a militante. A médica produziu o manual de redução de danos para mulheres em situação de abortamento inseguro, denunciando a falta de ética com que profissionais tratam mulheres que chegam aos hospitais após abortos inseguros que geraram complicações.

O que é uma triste realidade, muitos profissionais de saúde, ao invés de acolherem essas mulheres, tornam esse atendimento uma cena policialesca, fazem denúncias em delegacias e não respeitam a dor física e emocional pela qual passam essas mulheres – conforme levantamento realizado em 2017 pela Diretoria de Pesquisa e Acesso à Justiça da Defensoria Pública do Rio de Janeiro, 30% dos casos o que ocasionou a investigação policial e início do processo judicial foram denúncias que partiram dos próprios hospitais que atenderam essas mulheres.

Em junho deste ano, a Professora Doutora Débora Diniz, antropóloga e docente da Universidade de Brasília, ligada ao Programa de Pós-Graduação em Bioética, Ética Aplicada e Saúde Coletiva (PPGBIOS), sofreu sérias perseguições por conta de sua produção científica a respeito da ética da Medicina Fetal. O PPGBIOS publicou uma nota de apoio e denúncia à perseguição e ameaças sofridas pela docente. Diniz é uma das mulheres mais perseguidas no Brasil, justamente por levantar a pauta da legalização do aborto como uma questão de saúde pública, e não moral.

Em entrevista cedida para Eliane Brum, intitulada “Em nome da mãe” (Revista Época 12/07/2004), a antropóloga diz que sofreu uma perseguição religiosa que levou à sua demissão da Universidade Católica de Brasília, em ocasião da mobilização que protagonizou em prol da legalização do aborto em casos de fetos anencéfalos. Para a revista Istoé, em maio de 2007, a professora declarou: “Fui ameaçada de morte e precisei de escolta para lançar meu livro“. Débora Diniz é uma cientista que é perseguida por pessoas que se baseiam em argumentos morais e não científicos, essa é a triste realidade do debate da legalização do aborto, em nosso país.

E, como de costume, a coluna (fé)ministas vem repudiar esses setores religiosos, conhecidamente representados pela bancada da Bíblia (majoritariamente formada por Católicos, Evangélicos e Espíritas Kardecistas), que usam de argumentos machistas, patriarcais e nada científicos para promover esse debate de forma desonesta. Repetimos, e repetiremos quantas vezes forem necessárias, ABORTO É QUESTÃO DE SAÚDE PÚBLICA! Não é a legalização do aborto que vai gerar abortos, na verdade, eles ocorrem o tempo todo sem nenhuma política pública de saúde que, de fato, garanta a saúde reprodutiva da mulher de forma efetiva. Por outro lado, num país onde o aborto é legalizado, é possível levantar dados sobre os motivos, o perfil da mulher que aborta e como, de fato, criar estratégias e ações afirmativas que impeçam o crescente número de abortos inseguros e, na prática, o número de abortos tenderá a cair.

Segundo Débora Diniz, também coordenadora da Pesquisa Nacional de Aborto 2016 (PNA): “A prevenção do aborto é pela descriminalização. Quando a mulher opta pelo aborto, ela vai para um sistema seguro, ela conversa, ela conta sua história e o Estado começa a conhecer aquela mulher, saber porque ela engravidou, se ela sofre violência, etc., e consegue criar métodos para prevenir que isso se repita. Por isso que todos os países que legalizaram diminuíram as taxas de aborto”.

Especificamente na realidade brasileira, o perfil da mulher que aborta é muito diferente do que os fundamentalistas religiosos dizem ser. No imaginário social, a mulher que aborta é irresponsável, promíscua, não acredita em Deus e não quer ser mãe. ERRADO! Segundo a PNA, 1 em cada 5 mulheres até 40 anos já fez aborto no Brasil; 67% são mães; 88% declararam ter religião, sendo católicas (56%) e evangélicas(25%) a maioria delas – o que significa que 2,6 milhões de católicas já fizeram aborto no Brasil. A PNA ainda demonstra que as mulheres negras, indígenas e pobres são as que mais abortam e morrem, Diniz afirma que “Vivemos em uma década em que houve uma maior criminalização do aborto, somadas à redução dos números de aborto legal, casos de mulheres mortas em decorrência de um aborto inseguro, mulheres denunciadas à polícia por procurar o sistema de saúde”

Precisamos parar de acusar individualmente mulheres por uma situação que, estatisticamente, é comprovadamente um acontecimento social que demanda políticas públicas de saúde e ampliação do acesso à saúde reprodutiva, para as mulheres. Existem muitas mulheres que produzem conhecimento, estatísticas e lutam pela solução da questão do aborto no Brasil, e essa solução é a legalização.

Por outro lado, além da legalização, precisamos formar profissionais  médicos, enfermeiros, atendentes de hospitais, etc. capacitados para acolher mulheres em condição de abortamento inseguro; aptos a informar as mulheres sobre seus direitos sexuais e reprodutivos. Precisamos também formar professoras e professores preparados para falar abertamente de sexualidade em nossas escolas! A educação de gênero é extremamente necessária para educar meninas e meninos sobre direitos reprodutivos, respeito ao corpo e às variadas possibilidades de existência. Nesse sentido, setores religiosos fazem um desserviço social ao moralizarem uma discussão que versa sobre direitos humanos, sobre educação e acesso à saúde. 

Por fim, se tantas mulheres cristãs abortam no Brasil, será que a Bancada da Bíblia, de fato, representa essas mulheres? Se ser contra a legalização do aborto é ser pela vida, eu me pergunto, é ser pela vida de quem? Enquanto religiosos vociferam contra a legalização do aborto, mulheres têm morrido, e pela vida delas, quem zela?

Simony dos Anjos é graduada em Ciências Sociais (Unifesp), mestranda em Educação (USP) e tem estudado a relação entre antropologia, educação e a diversidade.

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