Autonomismo, a doença infantil do populismo

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Por João Gabriel Almeida, de Bogotá, Colômbia. para Desacato.info.

O socialismo do século XXI está em crise. As derrotas do kischinerismo, do bolivarianismo e agora a possível perda do referendo na Bolívia apontam a necessidade de replantear estas experiências. Porém, como dizia Lênin, é nos momentos de recuo que necesitamos ser mais firmes e é necessário ser categórico: Por mais que, muitas vezes, os governos progresistas utilizem do discurso do medo para invalidar críticas legítimas, há uma intelectualidade que, querendo ser esquerda, se transformou em um braço do reacionarismo. Através dos discursos de falta de autonomia ou democracia destes processos, mascaram os problemas concretos da realidade em que vivemos. Primeiro, é necessário situar em que lugar estamos.

O socialismo do século XXI foi a tentativa de efetivar a utopia de Allende. Acreditávamos que, sem a interrupção militar, conseguiríamos um socialismo latino-americano democrático. A primeira dura lição que recebemos foi a que Giba Vasconcellos já havia previsto: os regimes militares cairam porque o grande capital não necessitava mais deles. Os regimes formais que nos deparamos ofereciam uma margem de manobra muito limitada e os grandes meios garantiam o controle ideológico necessário. Apesar disso, o desgate das políticas neoliberais garantiu uma janela histórica que alguns setores populares souberam aproveitar e impulsionaram os governos “progressitas”. Se apresentou os seguintes problemas:

  • A dinâmica própria do regime eleitoral bloqueiou a construção de projetos a longo prazo. Demandas de atendimento em serviço (construções de hospitais, escolas, vias, projetos sociais, etc.) foram priorizados, pois, além de ser uma questão emergencial para os povos, é o que permite uma resposta em tempo hábil nas urnas.
  • Graças a isso, as propostas de mudança na matriz produtiva se tornaram cada vez mais tímidas, pois o mercado de commodities favorável garantiu o preço necessário para atender as demandas mais imediatas.
  • O Bem-viver demonstrou suas limitações para além dos governos enquanto proposta política. Em países que já ultrapassaram os 50% de populações urbanas, ao se tentar viver o Bem-viver, como em Salinerito, Equador, se demonstrou somente um modelo dependentista “gourmet”, pois as poucas experiências bem-sucedidas de economias auto-sustentáveis de gestão comunitária só o foram por vínculos de exportação aos Europeus, sustentando o paradigma do capitalismo cultural de redenção pelo consumismo através do “comércio justo” com comunidades. Não se conseguiu propor nenhuma alternativa efetiva para as grandes cidades, ou, inclusive, ao próprio contigente de pessoas que teve uma melhora de vida no campo e quer ter acesso a bens industrializados.
  • Os anos de atraso na educação cobrou o seu preço nos países do norte da América do Sul, havendo uma grande carência de quadros preparados para gerir o projeto em larga escala.
  • O conflito de quem apropriaria a maior parcela dos setores extrativos (governo ou setor privado) gerou uma direita ainda mais violenta, autorizada pelos meios de comunicação e pelo próprio regime democrático.
  • Não houve uma interpretação acertada, ou ao menos uma solução, para o problema da produção industrial. Sem ter revisto a proposta cepalina (mudanças no termos de troca), os poucos avanços na industrialização não incidiram sobre a problemática das patentes e na produção do conhecimento técnico-científico, eixo central do capitalismo contemporâneo.

Estes foram os problemas concretos do que desenvolvemos. Já, ao contrário,  os autonomistas insistem em uma “traição” dos compromissos iniciais destes governos, traindo sua base social. Não percebem que o atual estado das coisas é o resultado mesmo destes projetos. O povo mesmo vem demonstrando isto nas urnas.  Alberto Acosta, o maior puratinismo possível das ideias do Bem-viver, alcançou 3,25% dos votos nas eleições passadas no Equador. Luciana Genro, o puritanismo do PT, alcançou míseros 1,55% e Zé Maria, a versão pseudo-aguerrida do petismo, não chegou a 0,10%. A mensagem do povo é clara: a resposta não é retornar às ilusões do passado.  Esta é a primeira questão. A segunda questão é que o discurso da falta de democratização é falso. Os movimentos sociais representam uma parcela muito pequena da população. O que os governos progressistas fizeram foi exatamente sucumbir aos ditames da democracia e fazer o possível para atender a demanda das grandes massas não mobilizadas: acesso ao consumo. Os ideólogos autonomistas são tão torpes e baixos em suas argumentações que instrumentalizaram os indígenas amazônicos, no caso da Bolívia, para mascarar que grandes contigentes de trabalhadores rurais aymaras é quem tinham interesses claros de ruralizar regiões “protegidas” e que, no caso de Tipnis, a discussão nunca foi a construção de rodovias, mas sim como iam garantir que estas construções trouxessem também infra-estrutura para os povos amazônicos. Eu já estive em diversas comunidades indígenas e acredito que, por mais que queiram preservar sua cultura, é uma ilusão acreditar que o sonho da maioria delas é o isolacionismo. Isto é invenção de ONG que transformam a cultura indígena em mercadoria e que, em reação, os indígenas de maneira muito inteligente se apropriam do discurso para garantir os seus territórios. Além de estes dois truques ideológicos (um projeto “verdadeiro”, “original” que se perdeu e precisa ser resgatado e questionar a democracia) há mais um componente que beira o rídiculo dos autonomistas: a presunção egocêntrica e academicista da democracia direta e da não existência de líderes.  Claro, sistemas de decisão coletivas são importantes e a democracia tem que ser aprofundada, a isto não resta dúvidas. Agora, na minha humilde experiência como um dos fundadores do MPL a nível nacional em 2006, que tentou praticar esta noção de democracia participativa radicalmente horizontal entre 2005 e 2008, depois novamente em 2010 e que esteve envolvido em diversas experiências similares no decorrer dos últimos 6 anos, é que este é um modelo funcional em pequenos contigentes, 15 a 20 pessoas no máximo, e que estejam relativamente bem preparados para as tarefas. Ao ultrapassar estes números, é demagogia e uma mescla a um sistema representativo se impõe como necessária. E quando digo isto é porque você até consegue fazer plenárias lindas, livres e com arco-íris, mas não se executa nada. Chamo este modelo de ególatra, pois vejo que no fundo quem mais defende isto é quem nunca conseguiu gerar confiança na população para ser o representante legítimo de nenhum processo social e quer se manter na sua zona de conforto. Todos aqueles que foram chamados de populistas nas últimas décadas, não importa se social-democratas sinceros, marxistas, nacionalistas ou o que seja, temos sim que avançar em uma proposta que supere as nossas experiências, inclusive repensando as estratégias de tomada de poder. Há perguntas centrais: Como reverter o subdesenvolvimento e a dependência? Basta somente construir indústrias? Como se garante a produção de alimentos sãos fora da lógica de exportação e pensando a soberania alimentária? Como se sai do modelo extrativista, sabendo que necessitamos do dinheiro gerado por ele para impulsionar qualquer desenvolvimento econômico? Como politizar as grandes massas, inclusive vencendo o corporativismo dos movimentos sociais e sindicatos? Como vamos redefinir o papel das universidades nos processos? E, o mais grave: Como fazer tudo isto dentro do regime democrático burguês? Há alternativa? É em isso que devemos nos centrar. O autonomismo com suas várias feições, primitivismo, culturalismo e até o bom e velho esquerdismo têm que ser colocado no seu devido lugar de maquiagens tóxicas para que estejamos novamente à altura dos desafios que nos esperam.

Imagem tomada de: dondeempezar.com.ar

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