Alerta: primeiro óbito de profissional da saúde na região sul

Trabalhadores/as que fazem enfrentamento à pandemia do novo Coronavírus estão inseridos em contexto de precarização da saúde pública. "O adoecimento dos profissionais da saúde coloca em risco a população, tanto pelo risco de propagar a doença quanto pelo aumento da sobrecarga dos serviços”.

Grupo Hospitalar Conceição, em Porto Alegre (Foto: Divulgação)

Por Julia Saggioratto, para Desacato.info.

No dia 7 de abril o Grupo Hospitalar Conceição (GHC), de Porto Alegre, confirmou a morte da técnica em enfermagem Mara Rúbia Cáceres, de 44 anos, pelo novo Coronavírus Covid-19. A servidora morava em Alvorada, RS. Este foi o primeiro óbito de um/a profissional da saúde no estado e na região sul e o 17º no país entre os suspeitos de óbitos pelo Coronavírus segundo dados levantados pelo observatório do Conselho Federal de Enfermagem (Cofen) publicados em nota no dia 7.

A grande maioria dos casos se concentra na cidade de São Paulo com seis mortes. O número de casos, com idades entre 29 e 72 anos, compilados na fase inicial da pandemia no Brasil, levantam um alerta em relação à situação dos/as trabalhadores na área da saúde que se mantêm expostos ao Covid-19. Segundo a nota do Cofen “é urgente a adoção de medidas para capacitação e oferta adequada de equipamentos de proteção individual para reduzir os riscos de contaminação dos profissionais de Enfermagem que estão na linha de frente do combate à pandemia”. Confira a nota abaixo.

Óbito de Mara Rúbia Cáceres, do GHC de Porto Alegre, ainda não havia sido contabilizada pelo Cofen.

Atualmente o Sistema Único de Saúde (SUS), “um dos maiores e mais complexos sistemas de saúde pública do mundo”, segundo o Ministério da Saúde, trabalha com cerca de 11,7% do que seria necessário segundo dados do Conselho Nacional de Saúde (CNS). O Ministro da Saúde, Henrique Mandetta, solicitou R$ 5 bilhões ao Congresso Nacional para a saúde. Os dados revelam que seriam necessários R$ 42,5 bilhões. Grande parte do desinvestimento é referente à Emenda Constitucional 95, aprovada em 2017, que congelou os gatos por 20 anos. Segundo o CNS, o valor que deixou de ser repassado à saúde com a implementação da EC, junto a restos a pagar de projetos e compras que não foram finalizadas, somam cerca de R$ 20 bilhões.

No dia 1º de abril o CNS enviou um ofício ao Ministério da Saúde afirmando que os R$ 4,8 bilhões investidos pelo Ministério foi apenas um remanejamento insuficiente de outras áreas. “O estudo foi feito pela Comissão Intersetorial de Orçamento e Financiamento (Cofin) do CNS na última semana, que constatou que o dinheiro veio da Atenção Básica e da Atenção Hospitalar e Ambulatorial, “programada antes dessa pandemia”. Ou seja, a necessidade real de R$ 42,5 bilhões, de acordo proposta da Cofin, não está sendo atendida nem mesmo com o valor destinado pelo MS na última semana”, conforme matéria do site no CNS. Acesse o ofício completo.

Uma das pautas defendidas pelo CNS para solucionar a falta de investimentos no SUS é relativa à taxação de grandes fortunas. Existe, atualmente, quatro propostas no Senado Federal, como descrito em matéria no site do CNS: “Entre elas o Projeto de Projeto de Lei Complementar (PLP) 183/2019, do senador Plínio Valério, que cria o Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF) para incidir sobre patrimônios líquidos superiores a R$ 22,8 milhões, com alíquotas que vão de 0,5% a 1%.

Se aprovado, a arrecadação anual prevista será de R$ 70 a 80 bilhões, sendo que 50% dos recursos serão destinados ao Fundo Nacional de Saúde (FNS), 25% para o Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) e 25% ao Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza”. Confira as outras propostas aqui. 

“A gente está com medo”

Neste contexto de precarização da saúde pública é que estão inseridos/as os/as trabalhadores/as que fazem o enfrentamento à pandemia do novo Coronavírus. Para Cláudia Franco, enfermeira e presidente do Sindicato dos Enfermeiros do Rio Grande do Sul (Sergs), existe uma dificuldade de os gestores dos hospitais compreenderem a necessidade de todos/as os/as profissionais utilizarem equipamento de proteção. Segundo ela, a lógica que está sendo utilizada é de que apenas aqueles/as profissionais que trabalham na porta de entrada, como a emergência, e a UTI dos hospitais utilizem os EPIs. Porém ela ressalta que muitos/as pacientes com Covid-19 podem ser assintomáticos/as contaminando profissionais/as de outras áreas dentro dos hospitais. 

Cláudia comenta, ainda, que também existe uma relutância em seguir um padrão de atendimento. “Gostaríamos que fosse usado o padrão da Anvisa e do Ministério da Saúde e, na realidade, cada um está querendo seguir o seu protocolo de segurança institucional”. 

Cláudia Franco, enfermeira e presidenta do Sindicato dos Enfermeiros do Rio Grande do Sul (Foto: Arquivo Pessoal)

O afastamento dos/as profissionais do grupo de risco é outro fator que preocupa a categoria. “Podemos não ter colegas acima de 60 anos, às vezes nos postos de saúde tem, nos hospitais é difícil ter, mas tem hipertensos, gestantes, lactantes, com doença autoimune. Estamos tendo uma dificuldade muito grande de que os gestores façam esse afastamento com o argumento de que eles não tem profissional para repor”, destaca Franco.

Em resposta à essa situação o Sindicato ajuizou diversas ações contra grandes hospitais e serviços de saúde do Estado, como o Grupo Hospitalar Conceição, o Hospital de Clínicas de Porto Alegre, a Santa Casa, o Hospital de Pronto Socorro de Porto Alegre e a Fundação de Saúde Pública de Novo Hamburgo, exigindo fornecimento de equipamentos de proteção individual e afastamento dos/as profissionais de grupos de risco. De acordo com Cláudia Franco, os sindicatos da categoria conseguiram  uma mediação no dia 6 de abril junto ao Tribunal do Trabalho de Porto Alegre com a definição de afastamento dos/as profissionais na faixa de risco até o dia 14 de abril. No entanto, no dia 7, Mara faleceu. “Ela era asmática e estava na emergência de um grande hospital. (…) Decidiu que até o dia 14 ia afastar e mandar para andares que ele [juiz] considerava que não são de risco, e no dia 7 ela faleceu. O que o Ministério está preconizando é que quem é do grupo de risco não saia de casa, faça o isolamento, se essa pessoa sair pra se deslocar até o trabalho ela já está correndo risco”, salienta a profissional. Hoje, terça-feira (14), uma semana após o falecimento de Mara, está prevista uma mediação no GHC para o afastamento dos/as profissionais na faixa de risco. A categoria defende que todos/as sejam totalmente afastados dos hospitais, não apenas trocar de andar, permanecendo em isolamento em casa.

Centro de triagem foi criado para minimizar contaminações no local (Foto: GHC / Divulgação CP)

Segundo nota publicada no site do Coren de Santa Catarina, “o número de enfermeiros e técnicos possivelmente infectados e afastados deu um salto esta semana. O aumento foi de 660% – passou de 158 para 1.203 casos. A maioria dos profissionais de enfermagem afastados têm entre 31 e 40 anos, e 83 % são mulheres”.

Os/as profissionais da saúde trabalham com medo, é o que ressalta Cláudia. “A gente está com medo, estamos trabalhando ansiosos, temos colegas que não estão indo pra casa com medo de levar para os filhos e para a família”. 

O Cofen criou um formulário para notificação de casos de COVID-19 aos profissionais de Enfermagem atingidos pela doença para acompanhar a situação. Segundo matéria no site do Conselho Federal “o adoecimento dos profissionais de Saúde coloca em risco a população, tanto pelo risco de propagar a doença quanto pelo aumento da sobrecarga dos serviços, com a quarentena”. Em Santa Catarina o Coren já recebeu denúncias de 70 instituições até agora, a grande maioria relativas à falta de EPIs.

Para além das homenagens “queremos ter condições adequadas e segurança para trabalhar”

No dia de ontem (13) o presidente do Conselho Federal de Enfermagem (Cofen), Manoel Neri, protocolou um “ofício ao Presidente da Câmara, Rodrigo Maia, pedindo urgência na aprovação do Projeto de Lei 1491/2020, do deputado Luciano Ducci (PSB-PR), que dispõe sobre o pagamento de adicional de insalubridade de 100% sobre os valores já praticados para os profissionais da saúde, do Projeto de Lei 1678/2020, do deputado Eduardo Bismark (PDT-CE), que dispõe sobre medidas de proteção e segurança dos profissionais da saúde essenciais ao combate ao coronavírus e do Projeto de Lei 984/2020, da deputada Pérpetua Almeida (PCdoB-AC), que isenta profissionais de Saúde de tarifas de transporte coletivos, aplicáveis durante a emergência de saúde coletiva”, segundo informações no site do Cofen.

Várias são as pautas reivindicadas pela categoria há anos. Além destas citadas acima, pautas importantes são relativas à jornada de trabalho e ao piso salarial, que não são regulamentados, como afirma Daniel Menezes de Souza enfermeiro e presidente do Coren do RS. “Com a Reforma da Previdência [a profissão] perdeu a oportunidade de aposentadoria especial, uma profissão que trabalha em áreas altamente insalubres, a gente está aproveitando esse momento pra voltar a discutir esses temas. Não dá para, simplesmente, a sociedade ficar nos homenageando, até ficamos muito orgulhosos, mas queremos ter condições adequadas e segurança para trabalhar e sermos reconhecidos por esse papel”, comenta Daniel. Ele ainda destaca que a Organização Internacional do Trabalho (OIT) determina que a jornada de trabalho para profissionais da saúde deve ser de 30 horas. “Por toda essa relação do adoecimento físico, mental, dessa questão de lidar no dia a dia com a vida, com a morte, com atividades insalubres, que estão agora em evidência por conta dessa pandemia”, salienta.

Daniel Menezes de Souza, enfermeiro e presidente do Conselho Regional de Enfermagem do Rio Grande do Sul (Foto: Arquivo Pessoal)

Segundo Daniel, a enfermagem é predominantemente feminina. O profissional ainda comenta que no RS as mulheres são 85% do contingente, em algumas regiões do país o número chega a 90%. “Além de tudo ainda é uma profissão feminina que tem toda a situação do machismo histórico no país, na desigualdade nas políticas gerais e muitas, inclusive, além de trabalhar em dois empregos, até três, ainda tem que dar conta de ser chefe de família”, comenta. 

A nível nacional o Cofen tinha um projeto que defendia o mínimo dimensionamento do quadro de profissionais de enfermagem nos hospitais. No dia 8 de abril a Federação Nacional dos Estabelecimentos de Serviços de Saúde entrou com uma liminar anulando o projeto. “[O projeto] pedia que tivesse [pelo menos] o mínimo de profissionais de enfermagem pra trabalhar para o serviço poder se manter. Eles entraram na contramão de tudo isso, não vão contratar gente e vão dividir o trabalho com um monte de setores. Pra que tu vai contratar se tu não precisa ter um mínimo de contingente de pessoal determinado pelo conselho?”, destaca Cláudia Franco. Um relatório da Organização Mundial da Saúde aponta um déficit de 6 milhões de profissionais de enfermagem em todo o mundo. 

Segundo Daniel Menezes de Souza, a falta de profissionais ou subdimensionamento já é a realidade da última década. “A emenda constitucional 95 fez com que diminuíssem os postos de trabalho, estávamos enfrentando muito desemprego na categoria, além de desestímulo de trabalhar em plantão, de dia, à noite, local insalubre, estavam migrando para outras áreas, até mesmo no mercado informal”, destaca.

O presidente do Coren-RS ainda ressalta que o adoecimento não é apenas físico. “Na última década, por conta desse subdimensionamento, da precarização das relações de trabalho, como efeito da reforma trabalhista, e das situações em relação à presidência, tem ocorrido um desestímulo para a categoria permanecer. O adoecimento na última década não é mais só por conta das doenças osteomusculares”. Para Daniel os principais motivos de afastamento dos/as profissionais da enfermagem do local de trabalho são por doenças relacionadas à saúde mental. “A depressão e suas variações, em momento de crises como esse essas situações se agravam. O adoecimento psíquico é uma realidade na nossa categoria, nós vínhamos enfrentando um debate em relação ao suicídio, relatos de aumento de suicídio em profissionais da enfermagem no Brasil”, finaliza.

Além disso, duas medidas provisórias foram aprovadas agravando a situação dos/as profissionais da saúde. A medida nº 927, de 22 março de 2020 busca aumentar a carga horária sem intervalo de almoço e desconsidera o novo Coronavírus como doença ocupacional. Conforme a assessoria jurídica do Sergs em matéria no site, “a superexposição dos profissionais e a falta de EPIs pode ser considerada Doença Ocupacional”. A medida nº 936, de 1º de abril de 2020  preconiza a suspensão temporária do contrato de trabalho. “Será que vão realmente chamar essas colegas depois? Será que realmente concordaram ou foram levadas a concordar porque não tinham outra saída? ”, comenta a enfermeira Cláudia sobre a medida.

Qual é a tarefa da população?

A contradição entre a precarização da saúde pública e a necessidade da população de um sistema público de atendimento fica ainda mais evidente neste momento. Para Daniel o SUS é o melhor sistema para atender as necessidades da população, é o sistema público que está dando conta de fazer o enfrentamento à pandemia. Segundo ele a falta de repasse financeiro afeta sua efetividade. “Desde o congelamento de gastos o sistema não estava capacitado o suficiente, não tinha o aporte financeiro necessário para dar conta dessa demanda. Boa parte do desabastecimento que falamos hoje de EPIs e insumos entendemos que também é pela falta de repasse”. Além disso ele destaca que o Sistema Único de Saúde é o maior empregador da enfermagem brasileira. “O crescimento da profissão no Brasil, a partir da sua última regulamentação em 1986, [foi] junto com a implantação do SUS”. 

Segundo Daniel, o sistema de saúde do RS ainda não está em colapso devido ao isolamento social adotado desde março. 114 entidades do estado assinaram, no dia 30 de março, um nota conjunta pedindo ao governador Eduardo Leite e aos prefeitos municipais que mantivessem o isolamento social. Sindicatos, associações, conselhos, institutos e federações do estado, além de presidentes, diretores e reitores de universidades e institutos federais do RS assinaram a nota. Leia a nota completa aqui.

“O que queremos é que possamos atender cada vez menos pessoas com suspeita de contaminação, e a contribuição do cidadão é respeitando os decretos de isolamento. Aqueles que não precisam sair, que não saiam, quem puder trabalhar da sua casa que faça nesse período, porque esses hábitos simples podem contribuir de fato para que a gente não tenha um colapso no Sistema de Saúde”, comenta o presidente do Coren-RS.

Cláudia Franco defende a não abertura do isolamento social. “O governador já disse que não vai manter até o final, mas recém começou o frio. Agora vai começar o pico dessa patologia, já estamos subindo a curva, a grande vantagem dos países que conseguiram baixar a curva foram os que fizeram isolamento total”. A enfermeira observa que o poder econômico fala mais alto. “Tu vê carreata de dono de empresa, o dono de empresa vai manter o isolamento, quem vai para o trabalho vai ser o trabalhador, chega a ser desumano e coloca em risco a vida de outras pessoas”, salienta. 

A profissional ainda comenta que ideias de abertura de comércio com verificação de temperatura são “estapafúrdias” pois muitas pessoas são assintomáticas, e crianças e idosos, muitas vezes, não apresentam febre. 

Ela orienta que a população não utilize os equipamentos que são exclusivos hospitalares e que o álcool gel é importante mas não substitui água e sabão. “O Ministro da Saúde já preconizou que a gente pode fazer máscaras de tecido para ir no supermercado, para ir na farmácia, porque tu não vai ficar na frente do paciente, vai usar rapidamente”, completa. Ela ainda comenta que os/as profissionais da saúde não devem ser considerados super-heróis. “Não, a gente é humano, porque aí dá uma impressão de que a gente é robô, de que não corremos os mesmos riscos que todo mundo”, destaca. 

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