Agradeça ao socialismo pela vacina. Culpe o capitalismo por sua distribuição.

Uma trabalhadora médica vacinando um homem contra a Covid-19 em um centro de saúde em Hefei, na província de Anhui, no leste da China. Foto: STR / AFP

Por Leigh Phillips.

Tradução: Deborah Almeida e Tatiana Roveran.

Quando a enfermeira May Parsons fez a primeira injeção mundial da vacina Pfizer-BioNTech COVID-19 à avó britânica Margaret Keenan, de 90 anos, ela foi aplaudida por dezenas de médicos lagrimejando no Hospital Universitário de Coventry. Foi um momento glorioso e comovente, nunca antes visto pela humanidade.

Uma maravilha da ciência de cair o queixo. Graças ao planejamento econômico e a cooperação humanista e altruísta de milhares de pesquisadores em todo o mundo, o desenvolvimento desta e de outras vacinas na cola da Pfizer demorou apenas nove meses desde a descoberta da doença, em vez dos anos ou mesmo décadas que a pesquisa e o desenvolvimento de médicos (P&D) normalmente levam. Elas oferecem um vislumbre de quanto mais um mundo igualitário e racionalista poderia produzir e realizar, se fosse livre das amarras do lucro.

Embora a gigante farmacêutica privada estadunidense e sua startup parceira de biotecnologia alemã possam carregar o nome da primeira vacina, isso não é um triunfo para o capitalismo. A Pfizer-BioNTech, junto com a segunda colocada, Moderna, entre outros laboratórios, dependeram de anos de financiamento do setor público para seu sucesso e, em muitos casos, de pesquisas realizadas por laboratórios do governo ou de universidades públicas muito antes de 2020. E, novamente, durante este ano de pandemia, essas empresas privadas contaram com o acompanhamento e financiamento do processo de desenvolvimento de vacinas ou, no caso da Pfizer, com a compra garantida antecipada pelo Estado de milhões de doses.

Em muitos casos, os governos nacionais firmaram acordos de compra e suporte de fabricação antes dos resultados dos testes clínicos para que a implementação pudesse começar assim que a aprovação regulatória fosse concedida, em vez de ter que esperar pela aprovação antes que a fabricação pudesse começar. Washington, por exemplo, prometeu comprar cerca de US$ 2 bilhões da vacina Pfizer e garantiu cerca de US$ 2,5 bilhões da Moderna para o desenvolvimento e fabricação de sua opção.

A incrível velocidade de desenvolvimento de vacinas quase compensa a notícia previsível de que o chefe da Pfizer vendeu 62% de suas ações no mesmo dia em que a empresa divulgou os resultados do estudando comprovando que as vacinas mostravam 90% de eficácia, e que os executivos da Moderna fizeram movimentos semelhantes após seu próprio anúncio. Em ambos os casos, a venda de ações ocorreu por meio do que as empresas insistem dizer que era uma aplicação inteiramente de acordo com a norma da Regra 10b5-1: a lei de informações privilegiadas. Mas, como reportou a NPR, especialistas em ética de negociação com dizem que esta é a mais manjada das defesas e um comportamento “muito suspeito” ou mesmo “totalmente impróprio”. Mesmo que sejamos crédulos em nossa avaliação da ética diante desses movimentos, estrategicamente, eles permanecem profundamente estúpidos, dada a escala da hesitação da vacina.

A mera violação das regras comerciais em relação ao desenvolvimento de vacinas é um presente para campanhas anti-vacinas e teóricos de conspiração sobre Covid.

Deixando de lado os fiascos éticos da troca de informações privilegiadas, o rápido desenvolvimento da vacina surpreendeu os especialistas. Eles sabiam mais do que ninguém quanto tempo normalmente leva para o desenvolvimento de uma vacina. Durante anos, esses mesmos pesquisadores de doenças infecciosas, médicos e funcionários da saúde pública condenaram os gigantes farmacêuticos por evitarem o desenvolvimento de vacinas há várias décadas. Ao contrário da lenda anti-vacina, as empresas farmacêuticas, na realidade, relutam em se envolver na produção de vacinas por causa do risco financeiro envolvido e de sua simples falta de lucratividade. Agora, de repente, diante de uma ameaça existencial que se aproxima, quando o Estado toma o lugar dos CEOs e assume todos os riscos financeiros, vacinas de eficácia impressionante aparecem após alguns meses.

É quase idêntico ao que aconteceu durante a Segunda Guerra Mundial, quando o governo dos Estados Unidos, frustrado com a intransigência das novas empresas químicas e farmacêuticas, temendo novamente a falta de lucratividade, simplesmente ordenou a cooperação entre as empresas e tomou decisões de investimento no lugar do setor privado, cobrindo os custos de pesquisa, desenvolvimento e fabricação. O resultado foi o desenvolvimento ou aprimoramento de 10 vacinas de importância militar. Os mesmos esforços de planejamento durante a guerra produziram o lançamento em massa do primeiro antibiótico, a penicilina.

Essas lições mostram que as ineficiências do mercado devem agora ser eliminadas permanentemente para o desenvolvimento de vacinas relacionadas a todas as outras doenças infecciosas que sofrem com a escassez de P&D privado. Para a tuberculose, por exemplo, temos apenas uma vacina centenária fraca que ameniza o problema, mas é insuficiente para prevenir mortes por tuberculose a cada ano que equivalem às mortas por Covid-19. Em 2020, a Covid matou 1,7 milhão em todo o mundo; em 2019, a tuberculose matou 1,4 milhão.

Mas antes de pegarmos o champanhe e brindarmos nossos heróicos cientistas e médicos, temos que reconhecer que, embora essas vacinas sejam realmente uma luz no fim de um túnel muito longo, esse mesmo túnel será ainda mais longo do que o necessário, graças mais uma vez à irracionalidade, ineficiência e injustiça do capitalismo.

Será especialmente injusto para aqueles que habitam em países subdesenvolvidos – e mesmo em muitas partes mais pobres e menos populosas do Ocidente desenvolvido, haverá crueldades para aqueles que vivem fora do centro metropolitano, como já aconteceu ao longo de 2020. Na primavera, abundaram as histórias de máquinas de teste, EPI e ventilação sendo distribuídas com base em quem poderia pagar mais, e não em quem mais precisava. Nos EUA, até mesmo governadores republicanos conservadores de pequenos estados estavam furiosos com a forma como os pedidos, pagos integralmente, de equipamentos essenciais eram cancelados – às vezes no meio do embarque – para ganhar mais dinheiro atendendo jurisdições mais ricas. Um crime quase idêntico já está em andamento mais uma vez, mas dessa vez no que diz respeito à logística de fabricação e distribuição das vacinas.

Revolução do MRNA

Para explicar a profunda injustiça e ineficiências de arrancar os cabelos do que está prestes a acontecer com respeito à distribuição nacional e mundial das vacinas para combater a Covid-19, precisamos fazer um breve resgate histórico para explicar como essas vacinas funcionam – em particular, como as primeiras a serem lançadas são muito diferentes, até mesmo revolucionárias, em comparação com outras vacinas.

As vacinas convencionais funcionam essencialmente da mesma forma que funcionavam quando foram descobertas nos dias de Louis Pasteur. A inoculação envolve a exposição a um vírus enfraquecido ou morto, que apresenta ao sistema imunológico um antígeno – uma estrutura molecular que faz parte de um patógeno que estimula uma resposta do sistema imunológico. O antígeno em que nos concentramos, em relação ao vírus SARS-CoV-2, que causa o Covid-19, é a infame proteína de “Spike” que cobre sua superfície. O sistema imunológico, então, é capaz de lembrar e reconhecer qualquer versão “viva” do patógeno se, no futuro, ele tentar invadir o corpo. Agora, o sistema imunológico tem uma capacidade já preparada de combatê-lo e derrotá-lo. Dependendo do vírus, essa proteção pode durar por toda a vida, alguns anos ou mesmo alguns meses – daí a necessidade de vacinas de reforço para algumas vacinas.

As vacinas tradicionais já existem há mais de um século e, portanto, a tecnologia está madura e o processo de fabricação está bem estabelecido – mesmo que a cadeia de abastecimento esteja um pouco enfraquecida devido ao recuo de décadas da indústria farmacêutica não apenas no estudo P&D de vacinas, mas também na produção de vacinas. O principal desafio com relação à implementação rápida de vacinas tradicionais é que elas precisam ser “cultivadas” em ovos de galinha ou células de inseto. Cada lote leva várias semanas.

Existem oito técnicas de vacina principais, incluindo um punhado de versões tradicionais de vírus enfraquecidos, entre as cerca de duzentas vacinas de Covid candidatas atualmente em vários estágios de desenvolvimento (há 57 atualmente em testes clínicos). No momento, as vacinas Pfizer-BioNTech e Moderna são de interesse imediato e são as mais interessantes em termos da possibilidade de revolucionar a produção de vacinas. São vacinas de RNA mensageiro, ou mRNA, cujo conceito está em desenvolvimento há muitos anos – financiado principalmente, você não ficará surpreso em ouvir, o setor público. (A vacina Oxford-AstraZeneca usa um método diferente, ou “plataforma molecular” – mais sobre isso em breve.)

O primeiro dia de imunizações de COVID-19 em toda a província de British Columbia. (Flickr)
O RNA mensageiro, como você deve se lembrar da biologia do ensino médio, é a molécula que transcreve as instruções em seu DNA. Essa transcrição é então lida pelos ribossomos, as pequenas máquinas em suas células que usam essas instruções transcritas para fabricar as proteínas que constituem quase tudo em seu corpo. Com as vacinas de mRNA, em vez de apresentar ao sistema imunológico um vírus inteiro, que levou semanas para crescer em ovos de galinha, apenas este pedaço de mRNA, embutido em uma nanopartícula de lipídeo (uma molécula de gordura que o ajuda a entrar na célula) com instruções sobre como fabricar um antígeno viral, é injetado no corpo. O mRNA então direciona as fábricas de proteína ribossômica da célula para produzir cópias do antígeno (a proteína Spike, neste caso), sem vírus. O sistema imunológico reconhece como estranhos e os ataca e depois se lembra de como atacar quando confrontado com a coisa real.

É muito inteligente em vários níveis. Doses muito menores são necessárias para provocar uma resposta imunológica, o que significa que quantidades maiores podem ser produzidas muito mais rapidamente do que as vacinas tradicionais. Além disso, uma vez que a sequência genética de uma proteína do antígeno é conhecida, você pode rapidamente redirecionar o mesmo equipamento de fabricação – biorreatores – para esse novo antígeno. A fabricação de vacinas convencionais, por sua vez, requer equipamentos personalizados ligeiramente diferentes a cada vez. A plataforma molecular do mRNA já havia sido desenvolvida bem antes da pandemia da Covid-19, o que significava que assim que a sequência do gene da proteína Spike seja identificada, o que aconteceu poucos dias após a descoberta da doença, a vacina poderia começar a ser produzida imediatamente. O que demorou foram os ensaios clínicos e, para os acelerar, diferentes fases dos ensaios foram realizadas em paralelo em vez de sequencialmente, como é prática normal.

Esta é a razão pela qual o desenvolvimento da vacina tem sido tão rápido.

No futuro, quando formos confrontados com outros surtos de novos vírus, contanto que tenhamos configurado o equipamento de produção de mRNA com antecedência, pronto para funcionar, podemos simplesmente acioná-los com a nova sequência genética do antígeno. Como pode haver um longo período entre os surtos, sem qualquer oportunidade de lucro, essas instalações precisarão do Estado para serem mantidas ou pelo menos financiadas dentro do serviço público, como sistemas de esgoto ou, mais analogamente, como bombeiros, pagos principalmente para estar lá, pronto para quando a emergência vier.

Freezers de dez mil dólares e duas mil garrafas térmicas

Adesvantagem é que enquanto alguns outros tipos de vacina podem ser mantidos estáveis ??em refrigeradores regulares, os veículos de nanopartículas de lipídios para o mRNA precisam ser mantidos em temperatura muito fria para não quebrar. A molécula de mRNA da mesma forma começa a se desfazer em temperatura ambiente. A vacina Pfizer-BioNTech requer refrigeradores que possam manter uma temperatura aconchegante de -70ºC (-94ºF).

E isso, o que é chamado de “cadeia de frio” – uma cadeia de abastecimento sensível a baixa temperatura – é onde enfrentamos apenas o primeiro de uma série de obstáculos para a implementação eficiente e justa das vacinas que são causadas ou exacerbadas pela irracionalidade do mercado.

A distribuição de alimentos em todo o mundo já depende de uma cadeia de frio altamente desenvolvida, mas uma cadeia ultra fria, com o tipo de temperatura que a vacina Pfizer exige, é um passo além disso.

A Pfizer está enviando a vacina em caixas de gelo seco. Depois de recebido, o gelo seco precisa ser reabastecido durante um dia. Uma vez retirada das caixas de gelo seco, a vacina pode ser mantida em temperatura normal de geladeira por 24 horas, ou no máximo 2 horas, uma vez descongelada em temperatura ambiente. Os freezers Ultracold podem estender a vida útil em seis meses e, em princípio, estão disponíveis comercialmente.

Os principais hospitais das áreas metropolitanas estão tentando colocar as mãos nesses freezers muito frios, mas também muito caros (que custam US$ 10-15.000 a unidade). E assim como a busca por equipamentos de proteção individual (EPI) e máquinas de ventilação na começo da pandemia, uma abordagem desorganizada de cada um por si voltou no final dela. Áreas rurais e cidades com populações menores estão sendo pisoteadas pela debandada. A pandemia atingiu as finanças de hospitais menos abastados, e essas são despesas com as quais muitas vezes eles não podem arcar. Mesmo os hospitais que podiam pagar um ou dois freezers estão sendo informados pelos fabricantes que a entrega levará meses; hospitais maiores e mais ricos que podem comprar em grandes quantidades têm prioridade.

Isso não é apenas injusto: é irracional. As regiões e hospitais que podem oferecer os maiores lances não são necessariamente os mais necessitados. As áreas rurais e as pequenas cidades tendem a ter um maior percentual de idosos, bem como um maior número de residentes mais pobres, que, por sua vez, apresentam maior incidência de doenças de base. Esse descompasso entre necessidade e suprimento estende a duração da pandemia além do que poderia ser, o que coloca em risco algumas regiões mais do que o necessário, porque nenhum de nós está seguro até que todos estejam seguros.

Em um artigo essencial no serviço de notícias biomédicas da STAT sobre o escândalo da desigualdade da cadeia de conservação ultra fria, Olivia Goldhill citou um diretor da Vizient, um comprador em grupo para hospitais, dizendo: “É outro bom exemplo de como todas as nossas áreas rurais de hospitais estão no fim de uma cadeia de suprimentos com menos poder para fazer compras importantes. É uma selvageria da cadeia de abastecimento; não é assim que você luta contra uma pandemia.”

E os EUA são o país mais rico do mundo. Se a administração de cadeias freezers está fora do alcance das pequenas cidades norte-americanas, a situação é ainda mais terrível no mundo subdesenvolvido. Nos países menos desenvolvidos, a barreira não é apenas o acesso ao tipo certo de freezers, mas a eletricidade confiável para abastecer qualquer tipo de geladeira.

As vacinas contra o ebola puderam ser distribuídas em diferentes locais na República Democrática do Congo durante o auge da epidemia regional, usando garrafas térmicas Arktek especiais de alta tecnologia que podem manter seu conteúdo nas temperaturas exigidas. Mas as garrafas térmicas custam US$ 2.000 cada. Bill Gates está no caso aqui, prometendo pagar a conta por garrafas térmicas Arktek para vacinas da Covid em regiões como esta. Mas a humanidade não deveria depender da boa vontade dos bilionários para lidar com uma pandemia.

Outras vacinas que estão sendo lançadas são menos exigentes. A da Moderna, com eficácia semelhante à da Pfizer, pode ser armazenado com apenas -20ºC (-4ºF) – dentro da faixa de temperatura de um freezer comum.

A esperança é que outras vacinas candidatas usando abordagens diferentes sejam menos sensíveis à temperatura. A vacina desenvolvida por pesquisadores da Universidade de Oxford que posteriormente fizeram parceria com a empresa farmacêutica sueco-britânica AstraZeneca também emprega uma nova plataforma molecular, desta vez um “vetor viral” – um adenovírus que causa resfriados em chimpanzés, mas não em humanos, cujos genes são modificados para produzir a proteína Spike da COVID em sua casca – e ela pode ser armazenada em temperaturas normais de geladeira. A vacina Novavax, cujos ensaios clínicos de terceira fase devem ser concluídos no final de janeiro, é igualmente estável na geladeira, assim como a vacina desenvolvida pela parceria Sanofi-GlaxoSmithKline (embora seus resultados até agora tenham sido decepcionantes, e uma reformulação da vacina significa que a aprovação provavelmente não será dada antes do quarto trimestre de 2021).

Mas sob essas circunstâncias, mais uma vez, no mundo em desenvolvimento, ou mesmo em um território dos EUA como Porto Rico, que sofreu blecautes prolongados na esteira do furacão Maria, uma geladeira velha não adianta nada se a eletricidade for cortada por horas ou dias a fio.

E se a eficácia para essas opções de vacinas tiver uma distribuição mais fácil do que as vacinas de mRNA? Os resultados da vacina Oxford-AstraZeneca sugerem inicialmente que ela é entre 70-90% eficaz (em comparação com 95% para as opções da Pfizer e da Moderna). Isso ainda é excelente e muito superior às taxas de eficácia de 40–60% da vacina atual contra a gripe. Mas aqueles que vivem em áreas rurais e no mundo em desenvolvimento ainda tendem a sentir que são de alguma forma de segunda classe, o que, é claro, do ponto de vista do mercado, eles são. E, novamente, isso é irracional, mesmo para os ricos: o descompasso entre a necessidade e o suprimento, fornecendo vacinas potencialmente menos eficazes não para aqueles que precisam, mas para aqueles com menos riqueza, estende desnecessariamente a duração da pandemia que ameaça a todos nós.

Prioridade para Hollywood

Mesmo se todas as opções de vacina não tivessem problemas com a sensibilidade à temperatura, há outros desafios relacionadas à produção e distribuição. Dada a taxa de proliferação da Covid observada em países antes da quarentena, e tendo uma vacina com 100% de eficácia, cerca de 60-70% da população global precisaria ser vacinada para atingir imunidade de rebanho e bloquear a transmissão do SARS-CoV-2. As vacinas para Covid não são 100% eficazes, então o número real será maior, mas isso nos dá uma boa noção de meta que precisa ser alcançado.

As vacinas Pfizer e Moderna são 50% eficazes após uma dose e só alcançam suas taxas de eficácia mais altas com duas doses. Isso significaria que, no mínimo, um total de mais de 8 bilhões de doses precisa ser fabricado para cobrir 60% dos 7 bilhões de pessoas no mundo. Para efeito de comparação, na última década, 1 bilhão de crianças em todo o mundo foram vacinadas contra doenças como a caxumba, sarampo, rubéola, poliomielite, tétano e febre amarela. É por isso que há grande esperança na vacina de dose única da Johnson & Johnson.

Enquanto isso, a Pfizer prevê que será capaz de produzir 1,3 bilhão de doses até o final de 2021. A Moderna afirma que pode produzir outro bilhão no mesmo período. Mas isso resulta em cerca de 2 bilhões? Não necessariamente. Uma empresa fará essas estimativas com base no que seus próprios fornecedores – de biorreatores, dispositivos de filtração, frascos, nucleotídeos, enzimas e outros insumos e equipamentos – estimam que podem fornecer.

Mesmo que tudo ocorresse sem problemas, desde a fabricação até a distribuição local, no ponto de atendimento – o local de injetar a vacina nos braços das pessoas – não haverá trabalhadores suficientes nos EUA para realizar a inoculação, bem como manusear a divulgação para explicar onde e como obter uma injeção (e para combater a hesitação da vacina), programação de software e tarefas associadas. A Associação de Funcionários de Saúde Territoriais e Estaduais e a Associação de Gerentes de Imunização solicitaram que o Congresso entregue pouco mais de US$ 8 bilhões para cobrir o custo estadual de recrutamento e treinamento de pessoal extra. Cerca de US$ 200 milhões é tudo o que receberam até agora.

Enquanto isso, já estamos vendo exemplos de tentativas descaradas de trapaças. O médico que é subornado por um paciente rico para classificá-lo como asmático, não é tanto o problema, por mais grotesco que seja. Numericamente, essas fraudes não devem significar muito. E quanto mais rígidos os controles sobre essas fraudes, maior a probabilidade de aumentar as barreiras burocráticas à implementação. Até certo ponto, é preciso simplesmente aceitar um certo nível de vilania egoísta, mais mesquinha. O que realmente mina a possibilidade de vacinar quem mais precisa é a corrupção corporativa, lubrificada pelas estruturas existentes dos diferentes grupos de interesses profissionais.

Na primavera, os estúdios de Hollywood gastaram centenas de milhares de dólares em lobby e tiveram sucesso para classificar seus trabalhadores como essenciais na Califórnia, e a World Wrestling Entertainment fez o mesmo na Flórida. Hoje, conforme as primeiras vacinas são lançadas, a American Bankers Association está fazendo lobby que os bancários sejam priorizados na vacinação como “trabalhadores essenciais”, como está fazendo a National Hockey League para seus jogadores e Uber e DoorDash para seus motoristas.

Um verdadeiro faroeste selvagem. O que é necessário é que o governo intervenha em um grau maior do que o experimentado sob Donald Trump para planejar, ou pelo menos conduzir com pulso firme, partes da produção de vacinas e da cadeia de abastecimento de distribuição, como ocorreu no começo da pandemia em muitos países na compra de EPI, ventiladores e fabricação de leitos hospitalares. Quanto maior o fluxo de fabricação e distribuição de vacinas, menos os desvios e a corrupção corporativa importam.

Especialistas em cadeias de suprimentos argumentam que, no caso da Covid-19, o planejamento da demanda é de uma magnitude tão diferente em comparação com a distribuição histórica de vacinas que exigirá que os governos normalizem e otimizem as cadeias de suprimentos de vacinas, assim como foi necessário com os EPIs. Apesar do ex-presidente Trump invocar a Lei de Produção de Defesa (DPA) para forçar as empresas a produzir EPIs e usar uma autorizações emergencial para permitir que novos fornecedores de EPIs entrassem no mercado, a crise do EPI só aumentou porque ficou na mão do mercado privado por falta de supervisão governamental. Surgiu um mercado suspeito de “corretores” de EPI, no qual figuras duvidosas disseram que ajudariam a localizar e adquirir esse equipamento para hospitais, clínicas e outras organizações de linha de frente. Embora algumas delas fossem legítimas e explorassem uma situação de crise, muitas eram fraudes ou sem experiência em cadeias de suprimentos médicos. De qualquer maneira, legítima ou criminosa, os corretores regularmente deixavam de garantir o que haviam prometido.

Para evitar que isso ocorra novamente, Joe Biden poderia usar uma aplicação mais agressiva do DPA, que permite ao governo incentivar as empresas a expandir a produção dentro da capacidade de fabricação doméstica existente de insumos essenciais para a cadeia de abastecimento de vacinas, incentivando a expansão de nova capacidade de fabricação e empregando pessoas com a experiência necessária para supervisionar e planejar essa produção. Segundo a lei, o governo poderia comandar os recursos necessários, incluindo a requisição de especialistas em cadeia de suprimentos e logística e fornecedores para construir um processo centralizado de aquisição e entrega. Se houver gargalos ou escassez de transporte, o DPA também permite a ativação da Frota Aérea da Reserva Civil – recrutando companhias aéreas privadas como a Delta ou a United.

É ineficiente que cada um dos Estados elaborem e implementem seus próprios planos distintos de distribuição de vacinas. Em vez disso, o governo está mais bem posicionado para organizar a coleta de informações em todo o sistema, em assistência aos governos locais e estaduais e provedores de saúde, e então alimentar esses dados de volta na cadeia a fim de alterar os planos de produção e distribuição conforme o consumo de vacinas se modifica. É exatamente por ser uma logística tão complicada que o Estado precisa se livrar do caos do mercado.

Vacinacionalismo

Uma reviravolta agressiva do novo governo Biden apenas amenizaria as restrições da cadeia de suprimentos doméstica e as irracionalidades do mercado. Não faria nada para deter a injustiça global e a falta de lógica das vacinas.

Em junho, escrevi na Jacobin como empresas farmacêuticas como Gilead Sciences, AstraZeneca e Sanofi estavam buscando extensões de suas patentes de medicamentos com possíveis aplicações à Covid-19, como remdesivir – cujo preço Gilead aumentou para US$ 3.000 por paciente, embora o custo custa fosse de apenas US$ 9 – e, ao mesmo tempo, faz lobby para que um acordo seja removido de uma resolução da Organização Mundial da Saúde (OMS) que dá o direito aos países de anular patentes durante emergências de saúde a fim de fabricar versões genéricas dos mesmos medicamentos de maneira econômica e rápida. O esforço de lobby foi, por sua vez, apoiado por diplomatas norte-americanos, britânicos, japoneses e suíços.

A maioria desses mesmos vilões está de volta, mas dessa vez com relação às vacinas. Os países ricos estão tentando bloquear uma proposta da África do Sul e da Índia na OMC para livrar os países membros de cumprir as exigências de patentes às vacinas relacionadas a Covid.

Hilariante, o argumento apresentado pelo representante comercial dos EUA para barrar a proposta é que a perda dessas proteções de propriedade intelectual, mesmo temporariamente, ameaçaria os incentivos para a inovação de vacinas – como se quase cada centavo do custo da pesquisa, desenvolvimento e fabricação das vacinas não tivessem vindo do setor público. A inovação da vacina para Covid-19 é totalmente um produto do Estado.

Mas, independentemente da ousadia desses bandidos sem vergonhas, a retenção do monopólio dos medicamentos e vacinas da Covid restringe necessariamente o fornecimento. Novamente, o interesse dessas firmas inibe a produção e alocação racionais. A função objetiva da sociedade é derrotar o vírus o mais rápido possível e isso está em desacordo com a função objetivo dos atores do mercado: maximização do lucro. Mesmo os mais ricos, que têm lucrado com a aplicação de patentes, estão aumentando seu próprio risco de serem infectados e podem morrer pelo coronavírus.

Não é surpreendente, então, neste ambiente ético de cada um por si, que nos últimos dias, pesquisadores do Centro de Inovação em Saúde Global da Duke University tenham calculado que um punhado de países ricos já abocanhou, por meio de acordos de compra antecipada, cerca de 600 milhões de doses da vacina Pfizer – quase metade da quantidade que a empresa estima que poderá produzir até o final do próximo ano. O estudo concluiu que doses suficientes para cobrir apenas 250 milhões de pessoas foram compradas pela COVAX, uma plataforma global para garantir acesso igual às vacinas da Covid, independentemente da capacidade de pagamento de uma nação. O pacto COVAX visa entregar cerca de 2 bilhões de doses de vacina até o final do próximo ano, cobrindo 20% das pessoas em 91 países na África, Ásia e América Latina.

Muitos desses países ricos que assinaram acordos paralelos para garantir seu acesso doméstico a grandes remessas de vacinas também assinaram a COVAX. O próprio pacto foi uma iniciativa da França e da União Europeia. No entanto, esses mesmos países estão, na verdade, minando o próprio pacto que assinaram, ao tentarem furar a fila. Os pesquisadores estimam que, como resultado desse “vacinacionalismo”, a maioria das pessoas em países de baixa renda terá que esperar até 2024 para ser vacinada. O vacinacionalismo estenderá a pandemia por anos. Para piorar as coisas, documentos internos da secretaria da COVAX vazados para o The Guardian revelaram que seus gerentes acreditam que o plano está sob risco “muito alto” de fracasso, já que só conseguiu levantar US$ 2,1 bilhões dos US$ 4,9 bilhões que estima ser necessário para cumprir sua meta de 20% até 2021.

O que tudo isso nos indica é que o planejamento econômico a serviço da erradicação mais rápida da doença é insuficiente se esse planejamento permanece em nível nacional. Nesse caso, cada país está agindo no mesmo interesse que qualquer CEO da Pfizer ou Moderna, mas num mercado de competição nacional. Obviamente, a COVAX deveria ser o órgão supranacional desse planejamento global. Mas a COVAX não é um Estado global. Tal como a OMS, não possui recursos suficientes nem capacidade legal para fazer cumprir o seu plano da mesma forma que um Estado.

O melhor que a humanidade pode esperar no prazo imediato para derrotar esse vacinacionalismo e a selvageria do mercado na implantação de vacinas é a vergonha popular e internacionalista de sua injustiça e irracionalidade. Mas olhando para além do horizonte da Covid-19, a ameaça de futuras pandemias – e entre elas aquelas que não são nem de longe tão indulgentes quanto este coronavírus – requer em algum ponto uma discussão séria de como a democracia global pode ser construída de baixo para cima, como, em tal democracia, o planejamento econômico mundial pode domar as ineficiências, irracionalidades e injustiças dos mercados.

Porque ninguém está seguro até que estejamos todos seguros.

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