Afinal, o que é ideologia?

Por Ricardo J. Camera. 

Costumamos acreditar que a ideologia apenas existe na política, porém ela vai muito além e está presente onde menos poderíamos imaginar, inclusive ditando o nosso modo de vida.

Ideologia é historicamente um termo famoso, tanto no vocabulário acadêmico como na cultura popular, a exemplo da música de Cazuza, e tantas outras obras que fizeram referência ao termo. Tal vocábulo é, desse modo, uma daquelas palavrinhas mágicas, como energia, ética, espiritualidade, dieta, as quais assumem conteúdos elásticos, em diferentes contextos, ressignificados nos mais amplos, ou mesmo particulares sentidos. Este termo, inclusive, parece guardar proporção com momentos políticos e sociais tensos, como se a palavra se tornasse um estandarte de guerra de grupos políticos mais ao espectro das esquerdas, e, do outro lado da moeda, um símbolo satanizado por círculos conservadores.

Com efeito, se por um lado, para a filosofa Marilena Chauí, o termo ideologia sugere o ideário falso que a classe dominante propaga, e cujo efeito prático é a distorção da realidade (a velha fórmula do Karl Marx)[1]; por outro, a organização “Escola sem Partido” – surgida no início dos anos 2000 – representa o lado que abomina a Ideologia em si, visto que, para eles, Ideologia é um fenômeno intruso, que corrompe os jovens com ideias partidárias, revolucionárias, envenena os valores morais da família judaico-cristã e afins. Não por acaso este grupo advoga a noção de que a escola deve ser supostamente neutra, livre de ideologias. Por que esta concepção de Ideologia é o oposto daquilo que se entende como natural e objetivo.

Ainda neste escopo, a partir dos anos 1990 e a suposta difusão do novo liberalismo econômico/político pelo mundo, fez alguns proclamar, como o cientista político Francis Fukuyama, o fim da história, isto é, o início de uma era pós-ideológica, movida pelos interesses individuais e sistemas administrativos. Por seu turno, como dito anteriormente, a cultura de massa também ressignificou a palavra, a encaixando em diversos contextos eleitorais/partidários – a exemplo de analistas políticos da mídia convencional que afirmam não haver ideologia nos partidos brasileiros[2] – ou, ideologia enquanto algo personalizado, isto é, um lampejo ou opinião qualquer que o indivíduo escolhe para si, como uma criança que entra numa loja de doces e se deslumbra com a possibilidade de escolher livremente todos os tipos de balas e pirulitos[3].

Até o momento, portanto, Ideologia seria, ou uma ideia falsa da realidade, com o objetivo consciente de alienar. Ou, uma ideia vinda de fora da realidade, cuja função é destruí-la. Ou ainda, uma realidade pós-ideológica (sem ideologia). E, por fim, ideologia enquanto uma decisão pessoal de abraçar qualquer ideia sobre a realidade; como disse Cazuza em sua música: “ideologia, eu quero uma pra viver”.

Dito isso, o objetivo deste artigo é, resumidamente, demonstrar o que é Ideologia, utilizando-se, em específico, das concepções de três filósofos Slavoj ŽižekLouis Althusser e Hannah Arendt. Não significando, no entanto, que as noções sistematizadas anteriormente não satisfaçam minha pergunta; ao contrário, as noções anteriores é que são, em si mesmas, sintomas práticos do fenômeno Ideologia.

Ideologia – Não a temos. Ela nos tem

1. Ideologia – Não a temos. Ela nos tem

Logo de início, é fundamental apontar que iniciaremos nossa abordagem pela tentativa de explanar a Ideologia em termos de seu funcionamento universal, e exemplos pertinentes ao caso. Por conseguinte, a análise das ideologias, enquanto práticas concretas particulares, encerrará a primeira parte deste artigo. Dito isso, passemos logo ao que interessa: o fenômeno Ideológico é capaz de se justapor à várias atividades humanas, desde pensamentos que se supõe desvinculados da realidade social – naturalização de pensamentos – até usos e costumes, historicamente arraigados no cotidiano das pessoas. Quando alguém alega que determinada opinião é Ideológica, é preciso que fique claro que o inverso também será (ŽIŽEK,1996). Eis que o movimento Escola sem Partido é marcadamente Ideológico, pois seu primeiro “pecado” é se pressupor neutro – haja vista que os líderes do movimento, em primeiro lugar, assimilam a forma pela qual a sala de aula e a pedagogia funcionam como sendo algo natural, tal qual a laranjeira que nasce no quintal, e não fruto de decisões políticas, sobrepostas por núcleos acadêmicos decisórios.

Neste caso, os Estado Nacionais e a conjuntura de sua sociedade, ao decidirem para qual caminho seguirão, seja sob forma autoritária, seja democrática, criam uma estrutura política que definirá o que será ensinado nas salas de aula, como será ensinado, qual o objetivo final e por quem será transmitido determinado conhecimento, em detrimento de outros formatos. Em outras palavras, a Ideologia se apresenta quando se entende essa cadência de fatores como uma ordem apolítica (natural); mas, antes disso, a Ideologia já está justaposta nos formatos da teoria(a ciência educativa que se pressupõe objetiva), retórica (discurso do mestre e efeito de convencimento) e prática, isto é, sua funcionalidade sistêmica – por quem, para quem e por que é realizado – dado que o conhecimento do mestre é apresentado de modo fragmentário, ofertado como se fosse a única fórmula de educação escolar e formulada para reproduzir o status quo. Em outras palavras, um sistema que já é Ideológico em si mesmo (ALTHUSSER, 1996).

Por sua vez, além da ideia de neutralidade, a Ideologia apresenta a característica de se projetar em forma de fantasia, porque, quando não somos capazes de compreender um acontecimento, nossa reação instintiva é projetar as ideologias que nos são introjetadas pelos Aparelhos Ideológicos do Estado (ALTHUSSER, 1996), cuja função é prover uma resposta fácil e rápida aos nossos questionamentos (ŽIŽEK, 1996). Desta, deriva a interpretação das contingências históricas como se elas fossem necessidades, algo predeterminado por alguma força etérea superior. Tal como as noções de que a estrutura patriarcal e viril da sociedade é sua pura natureza, ou, a ideia de que a AIDS é um castigo divino à vida herege moderna, ou ainda, quando atribuímos nosso relacionamento amoroso ao destino, como se todos os eventos contingentes e anteriores da nossa vida necessariamente nos levariam a encontrar aquele amor.

Observemos o caso do deputado e pastor Marcos Feliciano (PSC), que prega em seu púlpito que a miséria e doenças presentes no continente Africano advêm da maldição que Noé (por meio do deus dos Hebreus) jogou sobre um de seus descendentes[4]; se este é um juízo proferido entre uma isolada e carente comunidade – por exemplo, no interior do Amazonas – em que o único meio de convivência coletiva é a igrejinha cristã da vila, e cujo trabalho é grupal e de subsistência, e portanto, os laços sociais e familiares são restritos àquela dimensão material, esta afirmação, em que pese ser ideológica, soa, antes de tudo, como mera falta de educação/informação, cidadania e afins. Agora, a partir do momento em que é proferida num meio de comunicação de massa, por um sujeito que detém poder político, econômico e teológico – como é o caso de Marcos Feliciano – no intuito de aglutinar ainda mais fiéis para manter-se no poder, eis que se está no âmbito funcional de dominação da Ideologia. Por outro lado, é importante salientar que os processos entendidos somente como acasos, despojados de qualquer sentido concreto, como por exemplo, atribuir a crise econômica a meros ciclos que aparecem e desaparecem esporadicamente, sem compreender sua inerência ao modo de reprodução do sistema, também é Ideológico (ŽIŽEK, 1996). Ou alguém está disposto a dizer que a crise econômica de 2008 foi condição do acaso?

Outro caminho exemplar pelo qual a Ideologia abrocha são nas noções de responsabilidade individual. Neste sentido, para o senso comum difusamente conservador, os atos morais e criminais são atribuídos unicamente ao indivíduo, ignorando todo o contexto social e histórico dos envolvidos, a ponto de emergir a compreensível, porém lastimável revolta do “bandido bom é bandido morto”. Todavia, a esquerda liberal/progressista, em geral, tende a ser do mesmo modo ideológica e determinista, pois insiste que as circunstâncias do meio definem em absoluto o indivíduo, como se nós fossemos seres passíveis e movidos inteiramente por instintos, sem autonomia autorreferente, o que, de certo modo, aproxima a pessoa humana de um feroz cão rottweiler. Em última instância, como observado, a paradoxal condição da Ideologia é que, quando imaginamos estar fora dela – numa espécie de neutralidade proposta pela Escola sem Partido – é justamente nesse momento que estamos imersos na Ideologia (ŽIŽEK, 1996).

A ideologia nada tem a ver com a “ilusão”, com uma representação equivocada e distorcida de seu conteúdo social. Dito em termos sucintos, um ponto de vista político pode ser perfeitamente correto (“verdadeiro”) quanto a seu conteúdo objetivo, mas completamente ideológico; e, inversamente, a ideia que uma visão política fornece de seu conteúdo social pode revelar-se totalmente equivocada, mas não ter absolutamente nada de ideológica […]. (ŽIŽEK, 1996, p. 12)

Só li verdades

Para além das características já discutidas, estamos dentro do fenômeno Ideologia no momento em que o conteúdo do discurso, seja ele verdadeiro ou falso – e se verdadeiro, mais eficaz será o efeito – vem a ser funcional para as relações de dominação, poder e exploração. Para se criticar efetivamente este fenômeno, é necessário admitir desde já que ele, muitas vezes, se configura em estrutura de verdade (ŽIŽEK, 1996), isto é, tem coerência interna, o que alguns vêm denominando de pós-verdade.

O que parece ainda mais perturbante é que as verdades de fato incômodas são toleradas nos países livres, mas ao preço de serem muitas vezes, consciente ou inconscientemente, transformadas em opiniões – como se fatos como o apoio de Hitler pela Alemanha ou o desmoronamento da França diante dos exércitos alemães em 1940, ou a política do Vaticano durante a segunda guerra mundial, não fossem da ordem da história, mas da ordem da opinião […]. (ARENDT, 1967, p. 10)

Quando a filosofa Hannah Arendt (1967) aborda essas questões, como toda filosofa experiente, ela primeiramente marca a posição discursiva da verdade factual – fenômenos públicos, imediatos e concretos – e a verdade racional/filosófica, objeto de especulação e análise dos teóricos, portanto, repleta de contradições e debates, estando ambos os campos articulados com as opiniões. Ela observa, por que não cai na falácia positivista, que a apreensão dos fatos concretos também é imbuída de interesses subjetivos. Contudo, Arendt ressalta que essas questões não se sobrepõem aos fatos concretos, “verdades de facto”, advindos dos espaços e tempos geográficos, os quais são irredutíveis (ARENDT, 1967). A filosofa exemplifica a matéria trazendo à tona o fato da Alemanha ter invadido a Bélgica em 1914 – no início da Primeira Guerra Mundial – haja vista que foi um fato vivido por milhares de sujeitos, foi orquestrado conscientemente por sujeitos, seus registros ficaram disponíveis, bem como os testemunhos e marcas incontestes do ocorrido – por isso, a verdade é essencialmente política (ARENDT, 1967). Todavia, ela aponta para o que chama de “mentira organizada” (narrativas que carecem de validade histórica), presentes tanto nos regimes totalitários, como nas democracias liberais. Tendo em vista que a verdade é política, na medida em que os grupos de poder têm interesse e meios de manipular os discursos decorrente de um fato concreto, ou mesmo apaga-lo, por meio dos meios de comunicação de massa, não só é capaz, mas vêm praticando de fato este mentira organizada (ARENDT, 1967).

O que Arendt denomina de mentira organizada é certamente um dos pilares de operação da Ideologia. Um exemplo prático das relações internacionais são as intervenções humanitárias em países do terceiro mundo, sob o âmbito de promoção dos Direitos Humanos. Por exemplo, o povo do Iraque de fato sofria violações dos Direitos Humanos por parte de seu governo, ou seja, uma narrativa verdadeira, e que, diante do Direito Internacional Público, justificava missões de paz da ONU, ao passo que tal narrativa oculta – cinismo – os reais motivos da intervenção – domínio geopolítico militar e comercial dos Estados Unidos, vis-à-vis a questão do petróleo. Eis que em seguida surge a força motriz do (cinismo) social, não cabendo mais a velha formula de Karl Marx “eles não sabem o que fazem, e por isso fazem”, sendo agora “eles sabem muito bem o que estão fazendo, e assim mesmo fazem” (ŽIŽEK, 1996). É interessante observar, com indício do que foi explicado, o trabalho das pesquisadoras brasileiras Natália Bueno e Nara Pavão, as quais descobriram, por pesquisa realizada em vários estados do Brasil, que o eleitor brasileiro não leva em conta se o candidato é corrupto na hora de votar, mesmo que para 94% da população, segundo o IBGE, a corrupção é um dos grandes males do país[5]; trocando em miúdos: “eu sei que a corrupção é um grande problema, sou radicalmente contra a corrupção, mas, ainda assim, não me importo em votar em político corrupto.”

Isso posto, observou-se o funcionamento geral da Ideologia em “estado puro”, isto é, abordou-se resumidamente – sem a pretensão de esgotar o debate – sua estrutura de funcionamento nos discursos corriqueiros, no discurso teórico e na prática social, seja ela na escola, política, ou na economia. Por fim, na segunda parte deste artigo, a intenção é passar do universal ao particular.

Complicado, não? Concluindo com Matrix

O filosofo esloveno Slavoj Žižek (2012) costuma citar a trilogia Matrix[11] para exemplificar o que é a Ideologia e suas derivadas. Em Matrix, o mundo real foi destruído pelas máquinas, as quais mantêm os humanos em hibernação constante para sugar-lhes energia vital, conectando-os, portanto, à Matrix, isto é, um universo virtual igual ao mundo anterior à destruição. Sem, no entanto, que os seres humanos ali “vivendo” percebam que aquilo é uma fantasia virtual, ao passo que o mundo exterior é um deserto frio, apocalíptico e caótico – o Deserto do Real – onde a vida é quase impossível. Os seres humanos que escaparam da Matrix, por sua vez, vivem num geofront (cidade subterrânea) em constante guerra contra as máquinas. Com efeito, a cena que representa o protagonista Neo escolhendo a pílula vermelha, no intuito de saber a verdade fora da Matrix, ao invés da azul, que o faria permanecer em seu sonho, Žižek chama a atenção para a necessidade de haver uma terceira pílula (ŽIŽEK, 2002).

Para o filósofo, a questão não é viver alienado pela fantasia, muito menos se iludir que fora da fantasia exista uma “verdade” a ser descoberta, “fora da caverna de Platão”. Logo então, o filosofo nos provoca a procurar uma “terceira pílula”, isto é, Žižek alega que não é possível imaginar nossa vida social, tal qual ela é, fora da fantasia da Ideologia. Segundo ele, é preciso saber identificar a realidade na ilusão, isto é, saber localizar a Ideologia em seu devido lugar (ŽIŽEK, 2002)

Em suma, a Ideologia fornece nossas coordenadas sociais, nos interpela e posiciona nas classes, castas e estamentos. Ela estrutura, em última análise, nossas interações com o mundo exterior, cujo qual, não possui significado prévio ao surgimento da raça humanoide. Muito provavelmente que – e agora é uma hipótese do autor desse artigo – a Ideologia tenha surgido junto a origem humana. Nossos ancestrais, por exemplo, ao se deparar com o que hoje nomeamos de aurora boreal, ficavam tão estonteados a ponto de atribuir àqueles fenômenos um significado que hoje, mais uma vez, denominamos de sobrenatural, divino. Essa reação de espanto diante do sublime, do que provoca desatinos, e portanto, nos faz fantasiar a respeito, é o modo como a Ideologia surge e se projeta. A humanidade é naturalmente propensa a ela, por que vive em sociedade. Por que adquiriu a capacidade de, em coletivo, simbolizar, significar, dar nomes, tornar-se sujeito. Todavia, na medida em que as relações sociais foram sendo construídas pelo poder e dominação de uns sobre outros, a Ideologia, então, retroalimenta e reproduz imediatamente essas relações conflituosas.

Na abordagem de Žižek, a única forma de viver em um ponto capaz de criticar a Ideologia, é, ao aceitar o desconforto, o conflito e contradição, denunciá-los permanentemente. O status anti-ideológico é explosivo.

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