Por Carmen Tornquist.
Tenho recorrido a metáfora da toupeira, para recompor minhas forças e para pensar que, apesar de todas as durezas da realidade, há muita gente trabalhando no sentido contra-hegemônico, construindo pacientemente algo diverso do que a lógica enlouquecida e voraz do capital nos oferece, todos os dias. O exemplo mais recente refere-se à sanção do Plano Diretor que deverá “regular” (!) a nossa cidade (!). ( mas a lista é longa) um outro mundo – bem diverso do que aqui está- esta sendo, discreta e lentamente, urdido. As derrotas no sentido de quem busca este outro mundo, de fato, têm sido grandes nestes últimos anos. No Brasil, em SC, e em Florianópolis, mais, ainda, a roda viva não é para principiantes, deixa marcas e promove desesperança…Tem dias que a gente se sente… como quem partiu ou morreu…
Foi na vibração da toupeira, no entanto, que comecei a reparar em um outro bicho, uma ave, na verdade, (pois é preciso voar) conhecida: o João de Barro. Reparei que ele monta seu ninho em espaços urbanos os mais bizarros: já os vi ao lado de semáforos, bem alto, trazendo um toque rústico a este moderno equipamento sem o qual a cidade seria hoje impossível; ele e/ou ela também situa sua “oca” em janelas de altos edifícios, ao lado de outdoors espetaculares que tentam nos vender mais uma mercadoria. Um observador atento e sensato percebe com facilidade a presença desta casinha de barro tão parecida com a “saudosa maloca” onde tantos brasileiros passam dias felizes (?) de suas vidas…
Fui então pesquisar um pouco mais sobre esta ave, e descobri coisas lindas a seu respeito:
O João de Barro é uma ave sul-americana, circula pelos países do Cone sul nos quais a Mata Atlântica ainda estende suas energias: Uruguai, Paraguai, Brasil Bolívia e Argentina. Tendo a achar que é uma ave guarani, pois estes países são também espaços tradicionalmente ocupados por estes indígenas. Na Argentina, território considerado sua terra originária, antes da livre dispersão pelas terras baixas da América do sul, também é conhecido como hornero, dado sua incansável gana de construir seu ninho de barro, espécie de “forno amigo” onde coabita com sua fêmea (haveria uma Maria de Barro?), segundo alguns autores, com destacada dedicação e amorosidade. Mas, apesar da maloca de barro que ergue com a mesma obstinação da toupeira – que advém originalmente da Europa- o João de Barro, ave que é, gosta das alturas, atravessa o céu de anil do Cone sul, mas não sem valorizar as chuvas; de onde tira o barro para (re)montar o seu casulo. O hornero é também chamado de ogaraity ou guyra tatakua, e ao que tudo indica, articula muito bem sua natureza libertária e aventureira – mobilidade permanente – com a construção – provisória, mas intensa – de moradias. Neste particular, lembra muito os povos guarani, que também insistem em permanecer nestes beligerantes territórios. De origem rural, de onde mantém seu espírito aventureiro e despojado, o João de Barro se adaptou à realidade urbana a seu próprio modo: mesmo com restrições, reconstrói seu modo de ser permanentemente, tal qual a velha toupeira, com quem compartilha invisibilidade, obstinação e força.
As empresas responsáveis pela iluminação das ruas e das sinaleiras não hesitam em destruir os ninhos erguidos nos altos fios das metrópoles e das pequenas cidades, mas o João de Barro, diferente da sua parenta – retorna também aos antigos territórios, aproveitando as sobras da demolição ou erguendo de novo seu ninho, com novos estoques de barro recolhido em suas andanças ao léu, sabedor de que este caminho “é trabalho sem termo” (como diz Cecília Meirelles). Da sua lida, o João de Barro não desiste nunca.
Fontes
GUASCH, S. L. (coord.)Diccionario Guaraní- castellano.Sevilla/Asunción, Edictora Cristo Rey. 1961.
MEIRELLES, Cecília. Hoje desaprendo o que tinha aprendido ontem. Cecília Meirelles: Poemas completos. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira.1982.
SADER, Emir. A Nova Toupeira. São Paulo: Boitempo Editorial, 2009.
E as canções:
Novamente (Alexandre Lemos e Fred Martins, 2007)
Roda viva (Chico Buarque, 1967)