Por Pedro Stropasolas e Daniel Giovanaz.
A Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), vinculada ao Ministério da Saúde, investiga a perda de 320 doses do imunizante Coronavac que seriam utilizadas na imunização de indígenas do Território Indígena do Xingu (TIX). Em paralelo, profissionais de saúde que atuam na região vêm sendo perseguidos após vacinarem indígenas “não aldeados”, que ficaram de fora do grupo definido como prioritário pelo governo.
Essa discriminação fez com que mais da metade da população indígena do país ficasse de fora da primeira etapa da imunização contra covid-19.
A Associação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) questiona na Justiça, desde 2020, a exclusão dos indígenas não aldeados. Um dos argumentos é que muitos deles, embora vivam no ambiente urbano, visitam as aldeias com frequência e se tornam vetores de transmissão do vírus.
Na última terça-feira (16), o Supremo Tribunal Federal (STF) acatou essa argumentação e determinou que todos os indígenas sejam considerados grupo prioritário para vacinação, mesmo aqueles que não vivem em terras homologadas ou estão na cidade.
Perda de doses
A perda de doses foi relatada em um parecer técnico emitido pela Secretaria de Estado de Saúde (SES) do Mato Grosso.
“Vale ressaltar que as perdas dos imunobiológicos representam um grave incidente e é de responsabilidade do município o zelo, bem como a observância dos padrões recomendados aos imunobiológicos”, diz a nota da secretaria.
Os frascos com as vacinas estavam no Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) Xingu, localizado em Canarana (MT), uma das cidades vizinhas ao TIX.
O Programa Nacional de Imunizações (PNI) investiga a hipótese de que as doses teriam sido perdidas por conta de armazenamento inadequado. A responsabilidade da perda dos imunizantes está sendo apurada pelo Ministério Público
Em nota, o Ministério da Saúde afirma que o Plano de Operacionalização da Vacinação contra a Covid-19 prevê uma “perda operacional” de 5% das doses e, que, caso confirmado o problema, não faltarão vacinas para cumprir a meta de imunização no Xingu.
Negação da vacina
Enquanto as 320 doses eram jogadas fora, o DSEI negou a vacinação para indígenas de diferentes etnias sob alegação de não viverem no TIX, e sim, nas cidades do entorno.
Pelo planejamento inicial do governo, seriam imunizados apenas os indígenas registrados no Sistema de Informação em Saúde Indígena (SIASI).
No TIX, o total de indígenas que podem ser vacinados é de 3.938. Até o momento, 72% deles receberam a primeira dose e 13%, a segunda.
A determinação do STF da última terça, permitindo a vacinação de não aldeados, consta na homologação parcial da quarta versão do Plano Geral de Enfrentamento à Covid-19 para Povos Indígenas, no contexto da Arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) 709.
Antes da decisão do ministro Luís Roberto Barroso ser oficializada, indígenas vinham denunciando a omissão do DSEI em vacinar todos os indígenas nas aldeias, incluindo a perseguição e demissão de profissionais de saúde que escolhiam pela imunização.
A situação chegou ao limite no dia 15 de fevereiro de 2021, na Aldeia Ytapap, no Baixo Xingu, quando foram vacinados três indígenas que, desde o início da pandemia, permaneceram em isolamento na aldeia dos pais e já construíram suas casas na comunidade.
Como consequência, as duas enfermeiras responsáveis pela vacinação foram afastadas de suas funções, por ordem do Coordenador Distrital DSEI Xingu/Sesai/MS, Marcos de Carvalho. Uma delas enfermeiras, Vivian Vaz da Costa, trabalhava há 14 anos no distrito.
A outra, Karine Cardoso Santos, é enfermeira do Projeto Xingu, vinculado à Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Ela teve a demissão solicitada por ofício enviado por Carvalho à coordenadora do Projeto, Sofia Beatriz Machado de Mendonça, e já foi reintegrada.
A reportagem não conseguiu confirmar se Vivian Vaz da Costa também foi reintegrada. O texto pode ser atualizado assim que houver novas informações.
Revolta
“Esses indígenas têm residência fixa tanto na aldeia quanto na cidade”, relatou um morador da região que não quis se identificar à reportagem. “Então, a demissão não se justifica. Outros DSEI tiveram essa preocupação, e a vacinação está ocorrendo normalmente [mesmo para quem vive na cidade].”
“Existe uma perseguição aos nossos parceiros, Instituto Socioambiental [ISA], Projeto Xingu e ATIX, para deixar só profissionais com pensamento político bolsonarista. Mas foi graças a eles que conseguimos enfrentar a pandemia no Xingu. Se fosse só pela Sesai, o número de óbitos seria muito maior”, acrescentou a fonte em off.
As demissões geraram revolta em todos os polos do Xingu, com lideranças pedindo a saída imediata do secretário, e até com ameaças de ocupação da sede do DSEI.
Em ofício, a Associação Terra Indígena do Xingu (ATIX) pediu respostas ao secretário pela recusa da vacinação aos indígenas.
“Informamos a vocês que no Xingu não existem índios desaldeados, como a III gestão do DSEI está alegando”, diz o documento enviado pela Associação.
Em outro trecho, a ATIX afirma que a defasagem e desatualização dos cadastros no SIASI são de responsabilidade da gestão do DSEI Xingu e não dos indígenas.
O secretário não respondeu diretamente à ATIX, mas enviou um ofício a Fernanda Aliano Baldessar, Chefe da Divisão de Atenção à Saúde Indígena (DIASI/Xingu), permitindo a vacinação dos três indígenas.
A justificativa foi “a pressão que a gestão vem sofrendo e ainda a ameaça de invasão”. O secretário lembrou ainda que a última “invasão”, ocorrida em 2017, durou cerca de 6 meses e “causou vários danos que a gestão está tentando reverter até hoje”.
Nesta semana, para tentar acalmar os ânimos, Marcos de Carvalho está em visita aos quatro polos do Xingu para ouvir as demandas dos indígenas.
No TIX, até o dia 17 de março, foram confirmados 1.030 casos de covid-19 com 718 pessoas curadas e 16 óbitos.
O Brasil de Fato entrou em contato com o DSEI Xingu na segunda-feira (15) para ouvir sua versão sobre o caso, mas não houve retorno.
Edição: Vinícius Segalla.