Eu não acredito que esse mundo, que todos os dias se (des)constrói sob tanto consumo, cimento e pedras, possa nos trazer satisfação e vivência plena. Também não acredito que haja alguma pessoa que, não pensando no capital e seu vil metal, ache que esse mundo já tão cheio de concreto e latas ambulantes, represente aquilo que chamamos de qualidade de vida.
Em março, o Programa Millenium exibiu uma entrevista com o escritor australiano Paul Gilding, um veterano ambientalista, consultor de sustentabilidade e professor associado ao Programa de Sustentabilidade da Universidade de Cambridge, no Reino Unido. Na entrevista, concedida em plena ‘Times Square’ – coração do ideal capitalista – o mesmo expõe o iminente colapso do mundo moderno, mas com uma dose de esperança, quando divulga seu novo livro: ‘The Great Disruption’, lançado pela Bloomsbury Press (ainda sem tradução e publicação no Brasil). Gilding inicia a conversa chamando a atenção para a rua por onde caminham e o problema que pretende discutir: “Antes de mais nada, trata-se, claramente, de uma dependência. É só olhar em volta. Isto é uma loucura. Não tem a ver com qualidade de vida nem com satisfação. É divertido, mas não é o melhor que a humanidade pode fazer. Nós estamos presos aqui, já que, na maioria dos casos, nós estamos infelizes e a vida não está melhorando nem para as pessoas ricas do mundo. Aí, começamos a procurar as distrações”.
Não é diferente aqui no Brasil. O crescimento econômico da última década fez surgir uma nova classe média, trazendo a mesma falsa ilusão de felicidade das classes que já tinham poder de compra. Só que não estamos mais felizes por isso. Gilding argumenta que no mundo todo é assim, com exceção das pessoas que saem da pobreza para um padrão de vida razoável; porém, uma vez que conseguem os itens básicos necessários, não há mais felicidade além dessa fase. Mas somos todos incentivados a consumir, como se as mercadorias guardassem o segredo da felicidade, porém os recursos do planeta são limitados, finitos; e se todos nós vivermos para o consumo contínuo será o nosso fim.
A análise do ativista não é um chute ou um tiro no escuro. Se observarmos a nossa realidade e para além do Brasil, esse sistema não está à beira de um colapso. Ele já está em colapso! É evidente a escassez de recursos para continuar esse tipo de vida, que já não funciona mais. Nós não ficamos mais felizes ao comprar mais coisas: o que existe é uma dependência criada, continuamente alimentada, que se tornou um desmedido vício, para muitos difícil de abandonar. Como nos alerta Gilding: “Nós estamos tão dependentes desse impacto artificial que nos sentimos bem quando compramos algo, mas não funciona e, dois dias depois, compramos de novo para nos sentirmos melhor”.
Para ele, o estilo de vida de classe média alta – o famoso sonho americano – está morto. Simplesmente porque “não há como 9 bilhões de pessoas viverem assim. O sistema irá quebrar devido ao nível de desigualdade que é necessário para sustentá-lo. No momento, temos crescimento em algumas partes do mundo, mas a desigualdade só piora. É claro que, em algum momento, os mais pobres vão ficar furiosos e destronarão os ricos. As pessoas podem até pensar: ‘Tenho dinheiro, vou ficar bem. Isso me protegerá’. Mas dinheiro não traz proteção”.
A imprensa tende a mascarar as diversas revoltas que acontecem no mundo e comumente classificam tudo de terrorismo, dizendo que as motivações são religiosas ou populistas, contando com a falta de vontade das pessoas de analisar os fatos e a tola credulidade dos governados. As lutas que temos pelo mundo afora são motivadas pela desigualdade, pessoas que cansadas da exploração procuram atingir os países que promovem a exploração, principalmente os EUA. E alguns países europeus também considerados algozes, especialmente a Inglaterra. Pode parecer que Paul Gilding está falando sobre o futuro, mas basta procurar a imprensa alternativa e comprometida para fazer uma leitura critica e perceber que a revolta contra a desigualdade faz parte do nosso cotidiano.
Mas podemos trazer a reflexão pra mais perto de nós. O crescente aumento da criminalidade local também tem como motivação a desigualdade: os baixos salários diante de muitas horas trabalhadas e as péssimas condições da periferia – por décadas esquecidas pelos governos – contrastam com o contínuo apelo ao consumo, que tem como fim o enriquecimento dos donos do capital. Não conseguir consumir causa frustração, que pode se transformar em raiva e ódio, e muitas vezes, leva à violência. Os donos do capital, que constantemente se mostram como vítimas da criminalidade, são também aqueles que geram violência, ao relegar aos trabalhadores a miséria de viver só para o consumo, mas sem poder consumir. A sociedade local e a sociedade brasileira estão sob pressão constante e a criminalidade nada mais é que pequenas explosões.
O problema é que não temos como melhorar enquanto não aceitarmos a realidade. Mesmo percebendo que o sistema está em colapso, ainda negamos isso, simplesmente porque a mudança é um enorme desafio para nós. Para tanto, precisamos acreditar que não estaremos só abrindo mão do consumo. Essa mudança não seria em si um sacrifício, pois não iremos perder nada em particular: “Olhe só ao nosso redor: muitas das empresas que estão aí não existirão mais na economia do futuro. Haverá empresas, empregos e uma economia, mas todos diferentes. Então, se você faz parte do sistema atual, ter de abrir mão disso não é algo agradável em termos de negócio. Mas é isso, obviamente, que acontece o tempo todo no capitalismo e na sociedade.
Isso vale também para questão da mobilidade urbana, quando Gilding afirma que “Talvez isso nos force a abrir mão dos carros da forma como os usamos hoje, o que não quer dizer que não haverá mais carros. Ou seja, nós ainda vamos precisar de bons sistemas de transportes, só que esses sistemas serão outros. Nesse caso, se você estiver envolvido, a sensação pode ser de sacrifício. Mas, com o tempo, haverá a sensação de avanço. Temos que reconhecer as mudanças que precisamos fazer. Ao final, elas serão avanços e não sacrifícios”.
De fato, não há mais como defender o desenvolvimentismo, o crescimento econômico voraz e o progresso com espírito de cruzada – práticas estas estimuladas pelo governo – sem pensar nas conseqüências devastadoras dessas bandeiras. Estamos presenciando crescimento na China e também no Brasil, mas a verdade é que o preço dos alimentos vem subindo, estamos sentindo a sociedade menos estável/mais volátil, com níveis altos de endividamento. Eu vejo a humanidade caminhando, mas com a necessidade imediata de mudar a rota, pois estamos perto de ficar sem saída: se a economia não crescer, as dívidas aparecem e se crescer, logo atingiremos os limites do planeta.
E não basta só pintar a calçada de vermelho pra dizer que temos ‘ciclovias’ e aí nos tornamos sustentáveis. Segundo Gilding, esse tipo de maquiagem “É uma sensação de que temos que fazer algo, mas as maiores coisas que temos de fazer — mudar os sistemas de transporte, de energia e de alimentação — ainda são assustadores demais, além dos muitos interesses que advogam contra isso tudo. Então, fazemos algumas coisas que nos fazem parecer boas, tipo maquiagem verde, para parecer que fizemos algo”. Precisamos de mudanças profundas e já deixamos passar muito tempo. Mas ainda não é tarde demais, e acredito que haverá mudanças, pois não suportaremos mais sobreviver nesse sistema tão degradante e doente.
Depende, sobretudo, de uma postura individual. “O que nós temos de perceber é que a qualidade de vida não vem das distrações, e sim de fazer as coisas. Não se trata de se distrair da vida, e sim de vivê-la. Isso pode vir de uma comunidade mais forte, de aprender coisas novas, adquirir novos conhecimentos, de manter relações com as pessoas, de ter laços mais fortes dentro da sociedade, de ser mais saudável, pois é o que propicia uma vida boa. Mas, se usarmos o nosso tempo para ganhar dinheiro, não teremos tempo suficiente para fazer o que traz felicidade. Aí começa essa dependência não só do que é ruim para o mundo, mas do que é ruim para nós. Nós temos de consertar o mundo, mas olhando para dentro e consertando a nós mesmos. É por isso que toda essa ideia tem a ver com uma evolução consciente da humanidade e de nós mesmos. Reconhecer que isso tem a ver com a qualidade de vida e que a vida assim será melhor é um ótimo começo”.
Muito antes de assistir a essa entrevista, percebi a necessidade de uma atitude de resistência à ditadura do consumismo. Há anos eu venho, aos poucos, mudando a minha postura: ando bem menos de carro, uso mais transporte público e carona para ir ao trabalho, também ando muito mais de bicicleta. Faz tempo que ir ao shopping deixou de ser um ‘programa de lazer’, para ser um local pra comprar o que entendo necessário ou então para ir ao cinema. Viajar se tornou uma busca pelo conhecimento de outras culturas e fico atenta às armadilhas cenográficas fabricadas para incentivar o consumo dirigido aos turistas.
Não é minha intenção dizer aqui que sou melhor que os outros. Faço isso porque realmente me satisfaz, me deixa mais leve, mais livre. Se não compro demais, não me preocupo com meu cartão de crédito e não fico escrava de contas. Comprar por comprar não me satisfaz. Uso o carro com parcimônia. Se não saio direto com meu carro, não me estresso no trânsito e não me incomodo com a falta de estacionamento. Troco qualquer ida ao shopping por um passeio ao ar livre, curto andar de bicicleta, procuro aventuras – não tão radicais – pois em algum momento perdi um pouco dessa coragem. Procuro estar mais envolvida com grupos e coletivos que lutam por uma cidade mais sustentável e humana, pois de nada adianta ficar em casa só reclamando e criticando pelas redes sociais. Valorizo aqueles que partem para pequenas ações individuais, atitudes que não contribuem pra essa cultura de consumismo desenfreado. Mesmo morando em grandes cidades, dá pra ir além do corriqueiro (reciclar lixo e não desperdiçar alimentos), como fazer uma pequena horta no próprio apartamento, que é uma delícia. Isso tudo não é difícil, ao contrário: é libertador praticar esses pequenos atos de auto-gestão, usando sempre da criatividade.
Num texto publicado recentemente por Luciane Evans no portal ‘Pragmatismo Político’, também já se constatou que a “crítica ao individualismo, competição infinita e acúmulo material deixou de ser atitude ‘de esquerda’ para transformar-se em opção cultural de muitos”. Sim, há um verdadeiro fenômeno – não publicizado – apontando que muitos homens e mulheres vêm mudando velhos conceitos em nome da simplicidade, certos de que há muito mais quando se tem menos. Perceberam que o tempo e a energia investidos para aquisição de coisas supérfluas podem minguar as oportunidades de conviver com o outro, de buscar a espiritualidade, autoconhecimento e senso de comunidade. “Escolheram uma vida simples por diferentes razões, que podem estar ligadas a espiritualidade, saúde, qualidade de vida e do tempo passado com família e amigos, redução do estresse, preservação do meio ambiente, justiça social ou anticonsumismo. Algumas pessoas agem conscientemente para reduzir as suas necessidades de comprar serviços e bens e, por extensão, reduzir também a necessidade de vender o seu tempo. Talvez por isso, elas são serenas, sorridentes e leves”.
Desejo encontrar cada vez mais pessoas que compartilhem dessas ideias. Reunir um grupo, em algum lugar que a gente não ouça tantas buzinas e motores; que tenha mais árvores que cimento, mais terra que asfalto. Mas sem que isso também se torne mais uma outra forma de ganhar dinheiro. Pois estou é com muita fome e sede; e é de vida mesmo! Mas sobre esse assunto, eu converso com vocês outro dia…
* Sally Satler é advogada e procuradora municipal. Esse texto foi publicado originalmente no Portal Blumenews, de Blumenau, onde a autora é colunista. Seu blog: http://www.sallysatler.blogspot.com.br/