Por Letícia Lanz.
Não existe ideologia de gênero. O que existe é a ideologia da desigualdade de gênero, criada e mantida por setores ultraconservadores da igreja católica e seitas evangélicas neopentecostais cooptadas por eles. A ideologia da desigualdade de gênero tanto reforça quanto se apoia em movimentos sociais altamente reacionários, francamente contrários ao avanço dos direitos da mulher ocorrido a partir da segunda metade do século XX.
Gênero não é uma ideologia, mas uma robusta construção social, sustentada por fatos concretos e autoevidentes, uma vez que ninguém nasce homem ou mulher: tem que aprender a ser.
A introdução e implementação do conceito de gênero por pensadoras feministas, a partir de meados da década de 1960 do século passado, foi um poderoso elemento na luta pela igualdade direitos entre os sexos. Contudo, pelo seu próprio poder de desconstrução e checagem da ordem social, até então totalmente naturalizada, despertou a ira mortal dos conservadores que viram no conceito de gênero um gravíssimo revés nas pretensões de continuidade da dominação machista-sexista.
Gênero não necessita de nenhuma ideologia política ou conjunto de crenças religiosas que lhe dê sustentação, muito ao contrário da ideologia da desigualdade de gênero que precisa lançar mão do folclore bíblico e de estudos biológicos completamente superados a fim de garantir sua hipótese central que é a dominação absoluta do homem sobre a mulher ou, dito de outra forma, a rendição total e absoluta da mulher à dominação masculina.
A ideologia da desigualdade de gênero é muita antiga, datando dos primórdios da revolução agrícola, ocorrida há cerca de 10.000 anos, quando o macho se apropriou não apenas dos meios de produção, mas sobretudo dos meios de procriação da espécie, através da total subjugação da fêmea.
Foram os teóricos da ideologia da desigualdade de gênero, em sua maioria oriundos de setores ultraconservadores da igreja católica, que inventaram e passaram a disseminar a expressão “”, com o objetivo de desmoralizar o conceito de gênero e lançar uma cortina de fumaça para encobrir as pretensões de continuidade da milenar dominação masculina, colocada em risco de morte pela ampla redefinição e ampliação do espaço da mulher na sociedade contemporânea.
Essa ira tornou-se pública, evidente e notória em setembro de 1995, em Pequim, na IV Conferência Mundial da ONU sobre a Mulher, cujo tema foi “Igualdade, Desenvolvimento e Paz”, quando participaram do evento 189 governos e mais de 5.000 representantes de 2.100 ONGs.
Dentre os principais temas tratados no encontro estavam assuntos absolutamente indigestos para os defensores da ideologia da desigualdade de gênero como, por exemplo, o avanço dos direitos das mulheres e o seu empoderamento na sociedade contemporânea; a mulher e a pobreza; a mulher e a tomada de decisões na sociedade; a proteção da fêmea criança e adolescente e a violência – inclusive a violência doméstica – contra a mulher.
Os defensores da ideologia da desigualdade de gênero começaram a enxergar, no notável avanço sociopolítico da mulher, ocorrido a partir na segunda metade do século XX, a derrocada final do sistema patriarcal e uma das suas estratégias de contra-ataque foi a invenção dessa falácia intelectual que apelidaram de ideologia de gênero, através da qual tentam aterrorizar a sociedade, profetizando um universo caótico, numa sociedade moralmente em ruínas, em virtude da perda do status masculino de dominação.
Uma vez que seria um fiasco político atacar de frente o feminismo enquanto movimento social mais vitorioso do século XX, os defensores da ideologia da desigualdade de gênero voltaram seus canhões para o chamado feminismo radical, que eles apelidaram de feminismo de gênero, e que, segundo eles, tem sua origem na doutrina comunista fundada no pensamento marxista de Engels (A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, de 1884), Simone de Beauvoir (O Segundo Sexo, de 1949) e A dialética do sexo, de Shulamith Firestone, de 1970, numa tentativa de ultrassimplificar o complexo e ultradiversificado pensamento feminista desenvolvido a partir da década de 1960.
Foi a partir de Pequim que os teóricos da ideologia da desigualdade de gênero começaram a veicular a expressão “ideologia de gênero”, como disfarce para a verdadeira ideologia discriminatória e segregacionista contida no seu discurso de desigualdade e hierarquia “natural” entre os sexos, com total supremacia do macho sobre a fêmea.
A definição de Marx para a palavra “ideologia” se encaixa perfeitamente na descrição do que é e para que serve a ideologia da desigualdade de gênero, quando ele afirma que ideologia é um conjunto de ideias que procura ocultar a sua própria origem nos interesses sociais de um grupo particular da sociedade. Posteriormente, Lênin operacionalizou esse conceito marxista afirmando que ideologia é qualquer concepção da realidade social ou política, vinculada aos interesses de certas classes sociais em particular.
Mediante o emprego da ideologia, os teóricos da desigualdade de gênero produziram imaginários sociopolítico-culturais e lógicas de funcionamento da sociedade, sem nenhum fundamento empírico, cuja função é encobrir o conflito entre as duas categorias oficiais de gênero, homem e mulher, de modo a dissimular o evidente propósito de dominação masculina, ocultando a presença dos interesses particulares sob a aparência de legítimos interesses coletivos. Em síntese, a função básica da ideologia da desigualdade de gênero é garantir a dominação do homem sobre a mulher de modo a encobrir e prevenir e evitar o conflito aberto entre dominadores e dominadas.
Dessa forma, a ideologia da desigualdade de gênero é uma clara tentativa de assegurar a dominação masculina mediante o ordenamento e a divulgação de explicações ilusórias e manipuladoras a respeito da superioridade “natural” do homem sobre a mulher, fundamentada principalmente em mitos bíblicos sem nenhum fundamento empírico e até numa ciência biológica “essencialista” e “naturalizante”, construída em cima de estudos altamente tendenciosos e que há muito tempo já não goza de nenhum prestígio nem mesmo entre os biólogos realmente sérios e conscientes da sua profissão.
A “naturalização” das suas ideias abstratas e mitologias bíblicas tem sido a forma mais comum dos teóricos da ideologia da desigualdade de gênero justificarem porque existem e porque devem existir desigualdades sociopolítico-culturais entre homens e mulheres, remetendo-as a supostas causas naturais.
Sob a ótica do chamado essencialismo biológico, a situação de inferioridade econômica, social, política e religiosa da mulher em relação ao homem ocorre em virtude de fatores “naturais”, como a “natural” superioridade física e mental do macho sobre a fêmea, além do imbatível argumento da “vontade divina” que determinou, desde o início dos tempos, que o homem fosse o chefe e o legislador da sociedade e a mulher sua mera coadjuvante subalterna, conforme disposto na bíblia cristã.
O homem, enquanto grupo social hegemônico, sempre se beneficiou historicamente do recurso ideológico da naturalização, graças à qual tem permanecido no poder há milênios estabelecendo, através dessa mesma naturalização, uma hierarquia de gêneros e uma ordem “natural” de privilégios, na qual ele se coloca no topo da hierarquia e na condição de herdeiro natural de privilégios concedidos pelo “divino” em pessoa.
Os pontos essenciais da ideologia da desigualdade de gênero podem ser sintetizados nas seguintes características estruturais desse sistema de crenças:
a) A ideologia da desigualdade de gênero é DOGMÁTICA, isto é, toma como ponto de partida dogmas religiosos e dogmas científicos a respeito do homem e da mulher que não demonstra, que não prova, nem tenta provar. É a partir dessas afirmações, sem nenhuma base empírica, que a ideologia da desigualdade de gênero tenta se estabelecer, sem nenhum rigor lógico, baseada exclusivamente na fé religiosa, “reforçada por pesquisas biológicas fajutas.
b) A ideologia da desigualdade de gênero é TOTALITÁRIA, não apenas no sentido de que pretende se impor à sociedade, de maneira totalmente unilateral e arbitrária, não admitindo nenhum tipo de crítica ou oposição, mas também no sentido de que busca abarcar totalitariamente toda a realidade humana.
c) A ideologia da desigualdade de gênero é DEMIÚRGICA, isto é, ela se concebe a si própria como criadora de uma realidade que traduz integralmente a “vontade de Deus”.
d) A ideologia da desigualdade de gênero é UTÓPICA, negando-se a reconhecer a realidade concreta do ser humano e tentando substituir essa realidade concreta por uma realidade totalmente idealizada, por mais contraditória ou absurda que seja.
Segundo os ideólogos da desigualdade de gênero, há uma diferença radical entre homens e mulheres e essa diferença é proveniente do sexo biológico, que é o único determinante da categoria de gênero em que cada indivíduo é enquadrado ao nascer e que não é modificável de maneira alguma ao longo da vida da pessoa.
A ideologia da desigualdade de gênero vê o sexo biológico como um dado inflexível e inexorável, que jamais pode ser alterado pelo “gênero” enquanto construção social, fazendo de conta que não sabe e não vê o longo processo de aprendizagem social de gênero a que toda pessoa é submetida, a partir do momento em que seu sexo genital é identificado, ainda no útero materno.
Por outro lado, comportamentos sócio-divergentes como a transgeneridade são amplamente condenados e vistos como manifestação de distúrbio mental e/ou de clara e flagrante “desobediência” à ordem natural das coisas, devendo ser exemplarmente punidos e/ou “curados” mediante “terapias de conversão religiosa”.
Para os teóricos cristãos da ideologia da desigualdade de gênero, a família “natural”, composta por pai, mãe e filhos, é a única formação capaz de expressar a vontade suprema “do Criador”, em que a prática do sexo deve ocorrer exclusivamente com fins de procriação.
Tanto a liberação sexual feminina quanto a “aceitação” de outras manifestações da sexualidade e de expressão de gênero, fora do padrão cis-hétero normativo, constituem, para os teóricos da ideologia da desigualdade de gênero, não apenas gravíssimos “pecados mortais”, como fazem parte de uma conspiração “orquestrada” por grupos feministas e grupos de ativismo LGBT (lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros) visando, dentre outras desgraças para a sociedade “organizada”:
a) A ampla e total destruição da família, mediante a aprovação do casamento entre pessoas do mesmo sexo e a ampla liberação do aborto;
b) A apropriação total, pela mulher, dos meios de procriação, através da progressiva “dessexualização” da paternidade e o emprego dos “bancos de sêmen”;
c) A conquista das escolas e da mídia, com o fim de realizar a “colonização” feminista e LGBT da sociedade.
Em todos esses itens repousa, em “off”, o medo descomunal do homem de perder – como em grande parte já perdeu – o seu antigo status de legislador e “comandante em chefe” da sociedade. Mas o maior temor dos defensores da ideologia da desigualdade de gênero é a queda de “Jeová”, a essa altura inevitável, signo maior da masculinidade dominadora, em vigor há dez mil anos na história da humanidade.
Essa é a visão totalmente paranoica do futuro da humanidade que a ideologia da desigualdade de gênero tenta vender às pessoas, afirmando que é isso que ocorrerá, caso o conceito de gênero seja amplamente difundido e praticado pelos indivíduos e sociedades.
Infelizmente, isso é algo que não pode mais ser interrompido, pois gênero não é um conceito novo e abstrato, mas a própria essência sobre a qual repousa todo o enorme castelo da civilização. A divisão de papeis e funções entre o homem e a mulher na sociedade não tem uma origem “natural” como advoga a precária e mentirosa argumentação dos teóricos da ideologia da desigualdade de gênero. Pelo contrário, trata-se de uma clara produção cultural de cada sociedade, em cada época, através da qual machos e fêmeas da espécie são treinados a performatizar desempenhos socialmente pré-fixados, em razão da sua genitália exposta ao nascer.
É justamente esse “determinismo” do gênero e sua supremacia sobre atributos supostamente de ordem “natural” no homem e na mulher que tanto desespera os teóricos da ideologia da desigualdade de gênero, ancorados em visões idealizadas, dogmatizadas, cristalizadas e totalmente abstratas da realidade humana.
—
Fonte: Leticia Lanz.