Por Marcos Bagno.
Nós, brasileiros e brasileiras, ao contrário dos portugueses e dos falantes de espanhol, francês, inglês, italiano, alemão e tantas outras línguas, não usamos o verbo ter quando nos referimos a sensações físicas e a sentimentos. Não é nada brasileiro dizer coisas do tipo “tenho fome”, “tenho medo”, “tenho dor de cabeça”, “tenho frio”. O que dizemos é: “estou com fome”, “estou com medo”, “estou com dor de cabeça”, “estou com frio” e por aí vai. E se eu quiser traduzir uma pergunta boba como: “Você está com a chave?” para o inglês, o francês, o espanhol, o alemão, vou ter de usar nessas línguas o equivalente ao verbo ter, como,aliás, em português europeu: “Tens a chave?”. Ora, em quimbundo e em quicongo, duas das língua mais faladas em Angola, a ideia de “ter” se expressa com o verbo (ku)kala, que significa ‘estar, morar, residir’, seguido da preposição ye (quicongo) ou ni (quimbundo), equivalente ao nosso com: Tuala ni jihenda, literalmente, palavra por palavra, “estamos com saudades”! E o mesmo tipo de construção ocorre em outras línguas do grupo banto, como o suaíli, o lingala e o zulu.
Durante a maior parte do período colonial, a população brasileira foi composta em sua grande maioria pelos escravos negros. Logo após a Independência, em 1822, 70% do total de brasileiros eram compostos de escravos, de negros forros, de mestiços e do que tinha restado das populações indígenas, massacradas desde o início da colonização. Impedidos de falar suas línguas maternas, tendo de conviver com falantes de diferentes línguas africanas, os escravos e seus descendentes foram aprendendo o português nas condições que lhes eram possíveis e, no processo, foram transferindo características de suas línguas para a língua de seus senhores, fazendo surgir uma língua nova: o português brasileiro. Isso, sem dúvida, explica o nosso brasileríssimo “estar com” como equivalente a ter.
Houve um tempo em que muitas pessoas, em atitude preconceituosa, se referiam ao modo de falar das pessoas humildes e sem instrução formal como “pretoguês”. Ora,examinando bem os fatos históricos, poderíamos até dizer que esse é que devia ser mesmo o nome da nossa língua, de tal modo ela chegou a ser o que é hoje graças ao influxo que recebeu das línguas africanas. Atualmente, cada vez mais estudiosos do português brasileiro realizam pesquisas com o objetivo de rastrear, detectar e explicar o poderoso impacto que tiveram sobre a nossa língua os idiomas trazidos à força para cá pelo abominável sistema econômico escravagista.
Muitos aspectos da nossa gramática só podem ser explicados quando comparados, não com o português europeu, não com outras línguas latinas, nem mesmo com outras línguas europeias, mas sim com línguas africanas, principalmente as do grupo banto, as primeiras a chegar por aqui.
Marcos Bagno é linguista, escritor e professor da UnB – marcosbagno.org
eu tb digo “estou com fome”, “estou com medo”, “estou com dor de cabeça”, “estou com frio”… devo sofrer de alguma doença, pois não sou brasileiro… esse cara que assina o artigo, é um bobo ignorante e preconceituoso.