Por Elissandro Santana, para Desacato.info.
OBSERVAÇÃO IMPORTANTE: não prossiga com a leitura se não quiser refletir ou argumentar de forma sensível e inteligente!
Quando o assunto é regalar o peito e encher os dentes de carne, a partir da dor animal, pouco importa se o indivíduo é de direita, de esquerda, centrista, se é do Fora Bolsonaro ou do Fica Bolsonaro, se é ateu, agnóstico ou teísta (por teísta entenda-se aquele que professa alguma fé e pertence a alguma religião), se é negro ou branco, magro ou obeso, baixo ou alto, rico ou pobre, morador da periferia ou dos bairros elitistas, explorador ou explorado, gay, bi, hétero, assexuado, mulher, homem, gênero fluído, escolarizado, intelectual, analfabeto, maconheiro ou tapado reacionário. Quase todos esses atores e atrizes sociais se encontram e dialogam, de alguma forma, no grande banquete da dor.
O pior de tudo é que muitos/as odeiam qualquer tentativa de reflexão em torno da questão deixar de comer carne, de matar, de explorar os animais, tanto que, quase sempre, banalizam a discussão ou tentam desconstruir toda e qualquer pessoa que queira fazer um debate sério a respeito do tema com base em uma ética biocêntrica, aquela que parte do pressuposto de que todos os seres que existem merecem existir.
O mais triste dos fatos é entender que entra ano, sai ano, chega Natal, sai Natal e as alminhas seguem as mesmas, sedentas, famintas em seus burburinhos de desejos, de sonhos e de ganâncias. Nesse entremeio, as comemorações em torno das conquistas e dos desejos são sempre nutridas com a carne dos pobres inocentes nesse mundo no qual o bicho homem se comporta como um verdadeiro demônio em relação aos animais, um canibal com garfo e faca pintado de ético, de cidadão do bem, que vai à igreja, que se projeta como uma pessoa ética, que se vê como ser de paz e, por isso mesmo, se sente merecedor de tudo de bom que a vida possa ofertar a cada virada de ano.
Como o Desacato é um espaço plural para discussões e não estou nem aí para as caras feias a cada texto que publico, resolvi, mesmo em um ano pandêmico, incomodar as alminhas boas, construindo esta arena para embates, e digo embates, pois a cada texto que publico, minha caixa de e-mail lota, com elogios ou com ataques, dependendo do umbigo de interpretação do/a indivíduo/a, já que estamos na era dos achismos e a maior verdade é sempre a do umbigo.
Pois bem, o grande ponto para refletir, caros/as leitores/as, é que já é possível viver sem carne, aliás, sempre foi, ainda que alguns pensadores apologistas da morte animal digam que não é, mesmo sabendo disso, seguimos comendo e sorrindo. Alguns tergiversarão, dizendo que neste momento deveria discutir problemas e soluções em relação àqueles que passam fome ou que o que importa é a vacina e direi que são pontos muito importantes que não podem ser esquecidos, jamais, mas defender os animais também deve ser nossa preocupação. Ademais, não podemos perder de vista que todas as injustiças no campo da política precisam ser colocadas em pauta, pois não devemos compactuar com exploração, de nenhuma forma, e é justamente por acreditar nisso que trago para essa nossa conversa o comportamento de morte em relação aos outros seres, por acreditar que qualquer luta por justiça será incompleta, que não haverá justiça social sem justiça ambiental e vice-versa.
Alguns, inclusive intelectuais, dirão que só evoluímos por causa do consumo da carne, principalmente, quando aprendemos a usar o fogo para o cozimento. Outros dirão que a proteína animal é essencial para a nossa alimentação. Estes esquecem que já avançamos o suficiente no campo da tecnologia e em outros aspectos para vivermos sem a dor dos outros seres que se estão aqui é porque fazem parte de um processo evolutivo tal como nós, que precisam desfrutar deste mundo, afinal, o Planeta não é só nosso e nunca será. Ele é de todos!
Essa forma como pensamos acerca dos animais tem raízes históricas e profundas, portanto, para entendê-la, faz-se necessário desfazer-se de conceitos cristalizados e de verdades obsoletas, por isso, a análise não pode ser simplista e demanda raciocínios em várias frentes. Em uma perspectiva ocidental e, mais especificamente, brasileira, país com enormes raízes coloniais, mesmo em pleno século XXI, muitas explicações normalizadoras da morte encontram suporte em nosso processo de formação de nacionalidade, arvorado em valores da religiosidade do colonizador, o explorador legitimado pelo divino do catolicismo de outrora, o pai das crias protestantes da atualidade. Talvez por isso, que, desde criança, biblicamente, falando, naturalizamos a morte dos animais, pois baseado no mundo religioso colonizador, o animal não importava e hoje, no máximo, os que mais se sensibilizam chegam a pensar na forma como se deve abatê-lo, “sem dor”, de “forma limpa”, para que tudo seja rápido, o que não deixa de ser um conforto mental para quem acha que precisa ser justo para o reino eterno após a vida. Como somos frutos de um emaranhado de vozes do passado, esse problema desponta como nosso grande fantasma e pesadelo, sendo assim, será preciso vencê-lo para seguir adiante! Precisamos desconstruir, com urgência, o imaginário de que o importante é o prato cheio e o sorriso na cara, tendo em vista que essa falsa ideia de alegria deve se desfazer para que possamos construir a paz que tanto almejamos.
Como explicado, em decorrência de nossas bases coloniais, no minúsculo universo ocidental cristão, seja católico, evangélico ou em outras vertentes nas quais Cristo é o fundamento de fé, aprende-se, desde muito cedo, que os animais nos foram dados pelo Criador, para o nosso deleite, alimentação. No “Dominai-os…”, talvez, esteja o início de nossa concepção equivocada sobre os bichos e assim fomos crescendo, caminhando, seguindo para esse abismo de horror no qual nos encontramos. Um mundo de explorados e exploradores em todas as frentes, inclusive entre humanos. Desta maneira, marchamos para o vazio, pois onde se mata para se viver é impossível construir qualquer espécie de equilíbrio permanente. E não me venham com o argumento de que no reino animal os próprios animais se devoram, quer dizer, carnívoros comem os demais, pois isso só é válido entre eles. A questão aqui é sobre nós, seres que se acham pensantes e que possuem outros recursos alimentares.
O incrível é que quando éramos novos, muitos de nós até sentíamos muito pelos bichinhos, mas à medida que crescíamos se encarregavam de normalizar ou de esconder os processos por trás da morte dos animais. Hoje, fazem a mesma coisa, só que de uma forma mais sofisticada. Terceirizaram a morte. Se antes ela se dava nos quintais de casa ou em algum matadouro não tão distante dos centros das cidades, atualmente, o cadáver já chega, muitas vezes, temperado em casa. “Uau, que delícia!”.
Para uma dimensão do prazer humano em relação à carne, percebam que os supermercados dedicam seções enormes à exposição da carniça e os/as clientes, em vez de refletirem sobre a morte, fazem exatamente o contrário, passam por esses espaços lambendo os beiços, já imaginando tudo prontinho. Esse lamber se dá nos encontros de família, nas festinhas das empresas, nas comemorações religiosas ou em outros rituais do cotidiano social. Ao fim e ao cabo, o socializar-se se faz com um banquete no qual o prato principal é sempre um animal!
A verdade é que muitos de nós nunca paramos para uma reflexão sobre a vida em sua plenitude. Estamos sempre muito ocupados e nos encontramos prenhes de naturalizações seculares, milenares. Em meio a estas construções semânticas sobre a vida, em quaisquer festinhas e rituais, principalmente, naqueles de cunho religioso em que muitos juram comemorar a vida, leva-se a morte à mesa. E aí se estabelece um paradoxo ou um enorme jogo de antíteses. Nesses rituais que dizem de vida, logo pensamos no peru suculento, no frango crocante, no peixe assado (ou cozido), na carne bovina ou na carniça de qualquer outro infeliz animal. Tudo isso porque a carne será sinal de fartura entre os humanos, sempre. O que é muito pesado e triste!
Mas por que esta reflexão na virada do ano? Este ano pandêmico possibilitou-nos perceber ainda mais o valor da vida, mesmo que muitos não tenham despertado para isso. É tempo de mudança total, de olharmos para dentro de nós, mesmo que esse olhar para o interior possa revelar o horror que mora em nosso âmago, pois como não sabemos quem realmente somos, do baú pode sair algo bem mais pesado que 2020. Independente desta possibilidade, este é um exercício necessário, como diz uma sábia menina chamada Edinha, pessoa com quem tenho o prazer de dialogar diariamente, de forma virtual!
Com base em tudo o que foi discutido, cabe destacar que mudar é preciso, canibal de garfo e faca, mas se a mudança não for por amor aos animais, que seja pensando no que vocês deixarão para as gerações futuras. Entendam, de uma vez por todas, que os animais fazem parte da grande teia de sustentação da vida no planeta. No mais, tentem se imaginar no lugar deles. Reflitam sobre a dor que lhes impusemos e no mal que todo esse inferno, do qual somos senhores, tem causado, pois isso respingará em nós, aliás, isso já ocorre, é só pensar historicamente e fazer o levantamento de quantos males já nos assolaram em decorrência do consumo animal. Sobre o próprio coronavírus há discursos e pesquisas que levantam hipóteses sobre animais específicos terem sido agentes de transmissão.
Enfim, mais uma vez evoco Edinha para dizer que em um momento como esse percebemos que a humanidade precisa de misericórdia, pois sem isso estaremos todos perdidos, envoltos por uma nuvem de decadência, de desamor e de ilusão. Mas como receberemos misericórdia se ao longo de nossa existência e “evolução” não fomos misericordiosos com os demais? Isso exige de nós a viagem ao Grande EU, para que, desta forma, a humanidade possa olhar para dentro de si, e fazendo isso, visualize a centelha divina (e aqui não falo do Deus Cristão) que está guardada nos átomos da existência, em um pedacinho de cada coração do humano que se desligou da natureza e, desligando-se, perdeu-se!
Elissandro Santana é professor, membro do Grupo de Estudos da Teoria da Dependência – GETD, coordenado pela Professora Doutora Luisa Maria Nunes de Moura e Silva, revisor da Revista Latinoamérica, membro do Conselho Editorial da Revista Letrando, colunista da área socioambiental, latino-americanicista e tradutor do Portal Desacato.
A opinião do/a autor/a não necessariamente representa a opinião de Desacato.info.
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