Viva o Estado laico(?) mexicano

Ecatepec - Estado de Mexico - México - 14/02/2016 - Papa Francisco é recebido em ECATEPEC. Foto: EDOMEX
Ecatepec – Estado do México – México – 14/02/2016 – Papa Francisco é recebido em ECATEPEC. Foto: EDOMEX

Por Ana Rosa Moreno, desde o México, para Desacato.info.

México, esse país situado no umbigo da lua, onde a democracia é um mito e cujo discurso de mais de 100 anos era foi advogar por um Estado laico e sobretudo soberano, este mês nos deu o que falar. É que a visita do Papa Francisco ao país mexicano despertou grandes debates que dividiram o país em ensanguentadas (não de forma literal) e apaixonadas posturas (algumas coerentes outras fundamentalistas), assuntos como o orçamento para sua visita, o objetivo dela (se era para legitimar o governo ou para impedir que o número de católicos mexicanos seguisse descendo), sobre se era uma visita de Estado como representante do Vaticano  ou uma viagem pastoral como o representante de Deus na Terra, etc.

Em fim, o Papa Francisco pousou em terra mexicana na sexta-feira 12 de fevereiro ao Aeroporto Internacional Benito Juárez, onde sua chegada mais dos que um ato de Estado virou um espetáculo de televisão, com celebridades da classe artística, o público VIP berrando como se de um show de rock se tratasse e os governantes estatais enchendo sua Santidade de presentes.

Os dias subsequentes estiveram lotados de percursos no papa móvel, missas, mais presentes, gente emocionada de ver o pontífice e a mídia toda com suas câmeras em direção a ele esperando as palavras e as frases que não abandonariam os jornais dia ou noite.

O sucessor de São Pedro, de 12 a 17 de deu missa em seis cidades chaves da república mexicana, Cidade do México; Ecatepec no estado do México; em Morélia, Michoacán; em Tuxtla  Gutiérrez e San Cristóbal de las Casas em Chiapas e em Ciudad Juárez, Chihuahua. Estas seis cidades têm em comum que são administradas por governantes corruptos, pouco sensíveis y nada próximos à população, cidades onde o narcotráfico, o tráfico de pessoas, os feminicídios, os desaparecimentos forçados e a pobreza arrasam a população.

Dentro do discurso do sumo pontífice se trataram temas como o narcotráfico, a corrupção, a exclusão dos povos indígenas, a migração, a família e a falta de proximidade da Igreja com seus fiéis, é claro de forma sutil sem ofender os presentes. Não houve nenhuma bronca nem puxão de orelha; pelo contrário, o papa se mostrou feliz e com gosto recebia cada um dos presentes, além de se deixar fotografar com os parentes dos políticos e empresários.

Ecatepec - Estado de Mexico - México - 14/02/2016 - Papa Francisco é recebido em ECATEPEC. Foto: EDOMEX
Ecatepec – Estado de Mexico – México – 14/02/2016 – Papa Francisco é recebido em ECATEPEC. Foto: EDOMEX

Porém, o Papa Francisco não falou nos assuntos que tanto tem machucado a população como a repressão do Estado, casos como Tlatlaya e  Atenco onde o exército mexicano disparou contra a população desarmada que se manifestava e, além do mais, encarcerou centenas de civis em total violação aos direitos humanos. O caso Ayotzinapa também é uma ferida aberta; faz mais de um ano que o exército mexicano junto com um cartel de narcotráfico sob as ordens do governador de Guerrero prenderam e fizeram desaparecer 43 estudantes que foram acusados, sem provas, de agitadores. O sumo pontífice se recusou a tocar no assunto de Ayotzinapa, o declarou complexo, e se negou a falar com os pais dos desaparecidos. Dos jornalistas assassinados em Veracruz, nada. Nem a homossexualidade nem o aborto foram mencionados.

A pederastia ficou atrás da cortina; o Papa Francisco declarou que tudo está articulado a Marcial Maciel e que é um tema tabu porque nem Juan Pablo II nem Benedicto XVI falaram sobre isto. Também deu indulgência plenária aos Legionários de Cristo e fez como que não viu um crime (pederastia) que que deve ser punido com todo o peso da lei. De fato, o discurso do Papa em relação à Igreja mexicana foi agradável: a convidou a ser transparentes e a que se aproximasse mais das pessoas. Não vimos o Papa progressista de quem tanto se fala, não aceitou que a Igreja falhou às vítimas que sofreram abuso sexual por parte de padres católicos.

Os cinco dias da sua visita serviram para legitimar os governos estaduais e o federal, além de estabelecer um estado de laicidade aconfesional deixando para atrás a laicidade anticlerical, ato que foi selado com o presidente da República comparecendo à missa na Basílica da Virgem de Guadalupe e comungando.

Todas as páginas oficiais do Estado tinham imagens alusivas ao Papa Francisco e à Igreja católica. Todos os políticos, todas as cores representadas no Congresso mostraram catolicismo.

Durante a visita do Papa o México foi desenhado como um país totalmente católico, deixando nas sombras as outras religiões que coexistem pacificamente no território.

Foto: Presidência da República Mexicana
Foto: Presidência da República Mexicana

Também se deixou pra lá a história de um país que por mais de meio século defendeu a liberdade de culto e a não intervenção da Igreja católica nos assuntos do Estado, que custou duas guerras, sangue derramado e o rompimento de relações diplomáticas com o Vaticano.

Em relação aos custos que significou a visita do Papa se destinaram aproximadamente 37 milhões de reais que cobriram o governo federal e estadual (de nossos impostos).

Em Ecatepec, Estado do México, foi gasta a soma de 2 milhões de reais em saquinhos de água (R$ 920.000), barreiras de segurança (R$ 680.000), em muros com mensagens para o Papa (R$ 132 mil), panfletos de informação sobre fechamento de ruas e medidas de proteção civil (R$ 110 mil) e coletes vermelhos para o pessoal de atenção do governo (R$ 22 mil).

Em Chiapas, apesar de que houve doações para receber o Papa, a missa, barreiras, cadeiras, etc., o estado gastou 22 milhões de reais. Como dado, 76.2% da população deste estado, ou seja, 3.951 milhões de pessoas vivem em situação de pobreza.

Em Michoacán foram gastos quase 9 milhões de reais e se receberam doações, até a mobília que o Papa usou na sua missa foi doada.

E em Chihuahua, a cifra gasta foi de 3 milhões de reais mais a doação de R$ 400 mil que a população arrecadou por meio da campanha “Coração generoso”.

A visita do Papa contou com patrocinadores das grandes empresas multimilionárias como Telmex, Banorte, Aeroméxico e Chrysler.

O dinheiro destinado à visita do Papa poderia ter sido destinado à construção de hospitais. escolas, estradas, melhora dos serviços públicos, combate ao narcotráfico, programas sociais de todo tipo que ajudassem no desenvolvimento do país, contudo o governo mexicano considerou que era melhor gastar em missas para acalmar a população e mantê-la passiva, para que esqueça a violência gerada pelo narcotráfico, a repressão do Estado, os feminicídios, os desaparecimentos forçados, o desemprego, a pobreza, etc.

Finalmente, concluo que a cumplicidade Igreja-Estado serve para legitimar o governo corrupto e repressor em troca de privilégios para a Igreja, deixando no esquecimento o Estado laico que alguma vez foi o México e, sobretudo, um jogo com a fé de grande parte dos mexicanos.

Tradução: Tali Feld Gleiser.

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