Ao final da tarde, enquanto os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) levatavam-se para deixar o plenário lotado de indígenas e quilombolas, um grande arco-íris era visível na Praça dos Três Poderes, em Brasília. Além de refletir os pingos da chuva torrencial que acabava de cair na capital federal, parecia adornar a estátua da Justiça, simbolizando a histórica vitória que os quilombolas – e, por consequência, também os povos indígenas – obtiveram na sessão de quinta (8).
A corte decidiu a favor dos quilombolas na Ação Direta de Constitucionalidade (ADI) 3239, que questionava o método de titulação de seus territórios tradicionais, e foi quase unânime ao rechaçar a tese político-jurídica do marco temporal.
Durante a tarde, o plenário do STF foi ocupado por quilombolas e indígenas do povo Xavante, que vieram a Brasília para acompanhar o julgamento de outra ação, a Ação Cível Originária (ACO) 304, em que uma agropecuária pede indenização pela criação da reserva Parabubure, em 1979, sobre área que alegam ser sua propriedade.
O julgamento da ADI proposta pelo partido Democratas (DEM) em 2004 contra a titulação de terras quilombolas, entretanto, acabou ocupando toda a tarde, e a apreciação da ACO será feita em outro momento, ainda a ser marcado.
“O dia de hoje para nós quilombolas é um dia histórico, um dia em que parte do Estado brasileiro reconhece uma dívida histórica”, comemorou Biko Rodrigues, da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq). “Reconhecer que o Decreto 4887 é constitucional e que a partir dele se pode titular os territórios quilombolas, para nós, é um avanço significativo”.
Placar folgado
A ação do DEM pretendia ver declarado inconstitucional o Decreto 4.887/2003, que regulamenta o procedimento de identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação de quilombos. Nesta semana, o próprio presidente do partido, o senador José Agripino Maia, caracterizou a ação como um “equívoco do passado”.
O julgamento terminou com um placar de oito votos favoráveis aos quilombolas – dos ministros Rosa Weber, Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Ricardo Lewandowski, Luiz Fux, Marco Aurélio, Celso de Mello e Cármen Lúcia, e três contrários.
Do lado contrário, o ministro aposentado Cesar Peluzo, relator da ADI 3239, havia se manifestado pela procedência da ação. O ministro Dias Toffoli também já havia se posicionado, decidindo pela procedência parcial da ação, admitindo a constitucionalidade do Decreto, mas incluindo como condição para a titulação de territórios quilombolas o marco temporal – tese segundo a qual só poderiam ser tituladas áreas que estivessem sob posse quilombola em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal.
O voto de Toffoli foi acompanhado hoje, de forma isolado, pelo ministro Gilmar Mendes, conhecido por defender o marco temporal e a limitação do direito de quilombolas e indígenas ao reconhecimento de seus territórios tradicionais.
Entender-se que a constituição solidificou a questão ao eleger um marco temporal objetivo para a atribuição do direito fundamental a esse grupo étnico significa fechar uma porta de força constitucional para o exercício completo e digno de direitos inerentes à cidadania assegurados pela Constituição” – Edson Fachin
Marco temporal derrotado
Em uma série de posicionamentos puxados pelo ministro Edson Fachin, todos os ministros e ministras que votaram a favor dos quilombolas foram enfáticos ao rechaçar a tese do marco temporal, que é encampada por ruralistas e também assombra os povos indígenas.
“Não depreendo da redação do artigo 68 do ADCT [Ato das Disposições Constitucionais Transitórias] a restrição do direito à titulação de propriedade apenas daqueles remanescentes de comunidades quilombolas que estivessem na posse mansa e pacífica da área na data da promulgação do texto constitucional”, afirmou Fachin em seu voto.
“Não há lugar para inaplicabilidade do marco temporal e de outras condicionantes. Eu aduzo que a interpretação gramatical do artigo 68 não encontra qualquer referência em datas ou parâmetro temporal, ao contrário, vê reconhecida a propriedade definitiva. O dispositivo declara o direito de propriedade sem delimitar marcos temporais” – Luiz Fux
Os ministros Luiz Fux e Luís Roberto Barroso também foram enfáticos ao rechaçar o marco temporal em seu voto, assim como o Ricardo Lewandowski. Citando a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), Celso de Mello e Cármen Lúcia também afastaram a alegação de que uma regra constitucional não poderia ser regulada por decreto.
O assessor jurídico do Cimi, Adelar Cupsinski, explica que além de garantir os direitos dos quilombolas, o julgamento desta quinta também se reflete sobre os direitos dos povos indígenas – que, em agosto, obtiveram outra importante vitória, depois de uma intensa mobilização nacional em defesa de seus direitos e contra o marco temporal.
“O Supremo rechaçou a tese do marco temporal por ampla maioria, afastando essa tese definitivamente para os quilombolas. Se consolidou no dia de hoje o direito dos povos indígenas, dos quilombolas e demais comunidades tradicionais”, avalia.
A posição de isolamento de Mendes e Toffoli foi visível no julgamento. Ambos foram frontalmente confrontados pelos demais ministros. Depois do intervalo concedido no meio da tarde, seus assentos restaram vazios: ambos abandonaram a sessão, contrariados e derrotados.
“Essas batalhas ganhas em tempos difíceis têm que ser comemoradas. Concretizar esse sonho de ter sua terra, para nós, é conquistar a liberdade plena para nosso povo e garantir que as terras onde repousam nossos antepassados serão as terras férteis que vão projetar nosso futuro” – Biko Rodrigues, Conaq
Decisão histórica
Das mais de seis mil comunidades quilombolas espalhadas pelo país, cerca de 5800 ainda não tem nenhum título. “Ainda há um caminho muito longo a se percorrer, mas o dia de hoje marca um ciclo. O Executivo agora tem o desafio de demarcar as comunidades que faltam e fazer assim chegarem as políticas públicas”, avalia Biko Rodrigues, da Conaq.
Outro ponto abordado durante o julgamento foi a hipótese de que ter a autodeclaração como um critério para o reconhecimento de comunidades quilombolas abriria margem para fraudes.
“A autodefinição feita pela comunidade quilombola é apenas o ponto de partida de um procedimento que – eu contei – é feita em 14 partes, e que inclui laudo antropológico, inclui manifestação do Incra e de todos os interessados. A ideia de que pudesse haver fraude é um pouco fantasiosa”, afirmou Barroso.
“Era preciso que a comunidade quilombola conseguisse criar uma sociedade puramente imaginária para se argumentar que exista fraude. Ela teria que documentar um modo de produção econômica, relações com antepassados, teria que simular cemitérios que normalmente se encontra nessas comunidades”, concluiu o ministro.
“Com essa decisão, o STF retira todo e qualquer fundamento legal ao Parecer 001/17 da AGU aprovado pelo Presidente Temer e ainda vigente no Brasil”
Pauta indígena
O julgamento da ACO 304 ainda não tem data prevista, mas se espera que seja recolocado na pauta em breve. Após o julgamento da ADI em favor dos quilombolas, cresce a expectativa de que repita o placar unânime a favor dos direitos indígenas em agosto de 2017, durante o julgamento das ACOs 362 e 366.
Tratam-se de ações semelhantes, todas ajuizadas antes de 1988 e envolvendo terras indígenas no mesmo estado, o Mato Grosso.
A decisão de hoje também fragiliza ainda mais o Parecer 001/2017 da Advocacia-Geral da União (AGU), aprovado por Temer em julho do ano passado. O “parecer antidemarcação” do governo Temer impõe a toda a administração pública o marco temporal e outras condicionantes como critérios para avaliar todo e qualquer processo envolvendo a demarcação de terras indígenas.
“Com a presente decisão, o STF reconhece o direito das comunidades quilombolas às suas terras e elimina qualquer tipo de condição para tanto, inclusive do ponto de vista temporal”, avalia o secretário executivo do Cimi, Cleber Buzatto.
“Essa posição amplamente majoritária do Supremo aplica-se também para as disputas em torno do direito fundiário dos povos indígenas. Com isso, o STF retira todo e qualquer fundamento legal ao Parecer 001/17 da AGU aprovado pelo Presidente Temer e ainda vigente no Brasil”.