Foi uma sensação difícil de traduzir. Como se fosse violentada, junto daqueles tantos que sucumbiram na luta por liberdade e democracia, a custa de muito sangue e sofrimento. Na primeira semana do ano, conheci o Memorial da Resistência, antiga sede do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) entre 1940 e 1983, em São Paulo, onde funcionava parte dos mecanismos da repressão política da ditadura militar. Não há como percorrer aquelas salas sem sentir todo o horror instalado no Brasil com os anos de chumbo. Reaberto como museu em 2008, o prédio de tijolos vermelhos na Praça General Osório, junto à Estação da Luz, gera sensações e emoções. Conhecer o Memorial é indispensável a todos aqueles que hoje podem se manifestar livremente, sem medo de serem presos por falarem o que acreditam.
A atmosfera do ambiente é pesada. A energia, muito negativa. Construído no início do século XX para abrigar escritórios e armazéns da Companhia Estrada de Ferro Sorocabana, o edifício testemunhou a prisão e tortura de presos políticos como Freis Betto e Tito, Dilma, Wladimir Herzog, Rose Nogueira, Elza Lobo. Hoje se dedica à preservação da memória política do país. É possível visitar as celas onde os presos políticos ficavam detidos. Logo no início, os sons de cadeados abertos, fotos tiradas e da máquina de escrever criam a ideia de que o visitante está dando entrada no DOPS.
Na primeira cela é possível verificar o processo de implantação do Memorial, viabilizado através de reuniões com ex-presos políticos e a Secretaria de Cultura de São Paulo. O corredor leva à segunda sala, que homenageia os presos desaparecidos e mortos pelo DOPS/SP. A terceira cela recostitui o dia-a-dia dos presos. Colchões finos no chão, pia imunda, uma toalha suja estendida num varal improvisado recriam o cotidiano na prisão. Nas paredes, há ainda inscrições refeitas com objetos cortantes e baseadas nas memórias de ex-detentos, que marcam nomes de quem foi preso ali e frases de desespero, como a assinada pela ex-presa política: Rose Nogueira: “raptaram meu bebê”. Na quarta e última cela, o ambiente é todo escuro, apenas com um foco de luz sob um caixote com um cravo vermelho numa garrafa plástica. Na cela, o visitante tem a possibilidade de ouvir depoimentos e relatos de ex-detentos que passaram pelo local chamado pelos torturadores de “sucursal do inferno”. O DOPS/SP esteve por anos sob a responsabilidade do delegado Sérgio Paranhos Fleury, responsável direto por torturas e assassinatos e também por atormentar para sempre as memórias de Frei Tito.
Nas paredes das salas, frases de ex-detentos: “Dependendo da maneira como o carcereiro abria a porta, a gente percebia o que era; se era para chamar alguém para a tortura, se era alguém chegando, se era a comida vindo”. Curioso é que o prédio não guarda nenhum aparelho usado para a tortura. As salas estão descaracterizadas. O ambiente pode ter sido recriado com outras cores, mas de toda forma, a manutenção do espaço como museu aberto ao público é uma forma de impedir que o período mais cruel da história brasileira seja esquecido.
Desde que li Olga, de Fernando Morais, na faculdade, e mais recentemente, Batismo de Sangue, de Frei Betto, os relatos de tortura nunca mais me deixaram. A resistência na abertura dos arquivos da ditadura brasileira é algo a ser combatido pela população. A vontade política é condição fundamental para que os torturadores da ditadura paguem pelos seus crimes. A quem interessa preservar generais e assassinos de um passado recente?