Por Babatunde Osotimehin e Zainab Bangura.
Imagine um orfanato de 300 crianças abandonadas por serem fruto de violações sexuais. Agora imagine uma aldeia onde só no último ano foram violados 11 bebês entre seis meses e um ano e 59 crianças entre um e três anos.
A história da violência sexual nos conflitos é tão antiga quanto a guerra propriamente dita. Não distingue fronteiras, condição étnica, religião, nem idade.
A população da República Democrática do Congo (RDC) conhece muito bem o sofrimento da violência sexual. Um documento do Ministério de Gênero indica que, somente em 2012, foram registrados 15.654 casos, alta de 52% em relação ao ano anterior.
Desses crimes, 98% foram cometidos contra mulheres. Nas zonas congolesas de conflito, a idade média das sobreviventes é inferior a 21 anos, e um terço tem entre 12 e 17 anos. No ano passado, 82% de todas as vítimas não tinham completado a escola primária.
Esses não são apenas números. Trata-se de crianças concebidas em violações e abandonadas, e também de mulheres e meninas que diariamente suportam as sequelas físicas e emocionais de semelhante agressão, e de homens e meninos que sofrem em silêncio a vergonha e o estigma associados a esse crime.
Todos os sobreviventes devem receber a atenção necessária, e todos os atores envolvidos devem unir forças para permitir que reconstruam suas vidas e evitem que esses fatos se repitam.
Não foi esse conflito que criou o flagelo da violência sexual que hoje enfrentamos na RDC. As raízes, especialmente a desigualdade das mulheres e o abuso de poder, estão aí há séculos.
Na RDC, e em todo o mundo, a violência de gênero é o abuso mais prevalente, mas menos reportado, de direitos humanos.
O conflito gera insegurança e um contexto de impunidade que, por sua vez, exacerba a violência sexual persistente.
Para erradicar efetivamente a violência sexual nos conflitos devemos redobrar a promoção dos direitos femininos como direitos humanos, e criar mecanismos viáveis que ponham fim à impunidade e enviem uma forte mensagem de que esse abuso de poder, extremo e dominante, não será tolerado. Devemos falar forte e claro: será julgado e será castigado.
A violência sexual em situações de guerra, como a que vive o leste da RDC, apresenta desafios únicos. Segundo o último informe do secretário-geral – da Organização das Nações Unidas (ONU), Ban Ki-moon –, somente nessa parte do país operam mais de 44 grupos armados, alguns procedentes de países vizinhos.
Quase todos esses grupos estão implicados em crimes sexuais. Também se acusa soldados das forças armadas e da polícia. Nesse contexto, fica particularmente complexo atrair uma ampla variedade de atores estatais e não estatais para garantir que as violações não sejam usadas como arma de guerra.
Os custos econômicos e humanos desses crimes e de outras formas de agressão de gênero são tremendos: incluem a perda de vidas e sustento, a rejeição de famílias e comunidades, e graves consequências para a saúde reprodutiva e mental, inclusive com risco de morte.
Contudo, a violência sexual não é inevitável.
O governo da RDC reconheceu essas consequências e tomou medidas para modificar o discurso público diante do problema. Em 2006, aprovou uma lei que ampliou a definição de violência sexual e promoveu sanções mais severas para os responsáveis.
Em 2009, o país desenvolveu a Estratégia Nacional sobre Violência de Gênero, e em março deste ano o governo e a ONU assinaram um comunicado conjunto expondo as ações concretas que as autoridades adotariam para erradicar esses crimes.
Todos esses são passos na direção correta, mas é preciso fazer muito mais. As leis têm de ser aplicadas, e se deve julgar e condenar os agressores.
Fazer com que impere a lei em um território imenso, onde o direito consuetudinário é, em muitos lugares, a única autoridade reconhecida, representa um enorme desafio para as instituições e os atores envolvidos no combate à impunidade.
Porém, a RDC não está sozinha nessa luta. O sistema da ONU, que inclui as forças de manutenção da paz, também tem uma responsabilidade direta de apoiar e facilitar as iniciativas nacionais.
Assumimos essa missão conjunta para a RDC para aprofundar o compromisso político, potencializando a participação das instituições democráticas, dos dirigentes políticos e da sociedade civil.
Nosso objetivo é que os compromissos assumidos e o trabalho feito pelo governo e pela ONU marquem uma diferença nas vidas de mulheres, meninas, meninos e homens que vivem com temor todo dia.
Nos comprometemos a trabalhar para a eliminação da violência sexual na RDC.
Para alcançar avanços significativos, precisamos do apoio da comunidade internacional, de todo o sistema da ONU e do governo. Também defendemos maior atenção dos doadores nos serviços básicos para os sobreviventes, que incluam educação, saúde, abrigo, sustento e outras ações psicossociais.
A violência sexual na RDC está longe de ter acabado, mas trabalhando juntos podemos pôr fim ao que durante muito tempo constituiu o maior silêncio da história, e escrever seu capítulo final.
Eliminar a violência de gênero e empoderar as mulheres e as meninas constituem a essência das mudanças que esse país deve adotar para alcançar a paz e o desenvolvimento.
* Babatunde Osotimehin é subsecretário-geral adjunto da Organização das Nações Unidas (ONU) e diretor-executivo do Fundo de População das Nações Unidas. Zainab Bangura é subsecretária-geral da ONU e representante especial do secretário-geral para violência sexual nos conflitos.
Fonte: Opera Mundi.
Foto: IPS.