Por Mariana Lima
A pandemia de Covid-19 entrou na vida das mulheres cis e trans como um agravador da violência. Estudos e pesquisas com base nos registros de violência doméstica, de gênero, feminicídios e transfeminicídios que vêm ocorrendo desde março de 2020 pelo país oferecem um panorama deste quadro.
De acordo com dados do 15º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, no último ano foram feitas mais de 694 mil ligações para o 190 – serviço para solicitar intervenção policial durante uma situação criminosa – denunciando ocorrências de violência doméstica. O número equivale a uma ligação por minuto durante a pandemia.
Os registros representam um aumento de 16,6% em comparação a 2019. Outra alta foi observada no número de medidas protetivas: um aumento de 3,6%, com 294.440 ordens executados ao longo de 2020. Além disso, 1.350 mulheres foram vítimas do feminicídio. De acordo com o Anuário, o número pode ser maior, já que nem todos os homicídios dolosos de vítimas do sexo feminino são classificados de forma correta.
Para Paola Stuker, doutora em sociologia e professora da Universidade Estadual do Oeste do Paraná, a pandemia não criou nenhum fenômeno novo, mas funcionou como um agravante dos fatores de risco para as mulheres, já presentes na sociedade e fortalecidos culturalmente.
Ela cita o maior tempo de convivência restritiva com os agressores no ambiente doméstico, o impacto econômico na família e a maior sobrecarga do trabalho não remunerado como alguns dos fatores que alimentam a violência contra a mulher nos últimos meses.
“Essas circunstâncias podem influenciar tanto no aumento das situações violentas, como na dificuldade das mulheres em reportarem os casos à polícia”, revela.
A questão também é observada pela pesquisadora Bruna Jaquetto Pereira, doutora em Sociologia pela UnB e coordenadora do Grupo de Estudos Mulheres Negras na mesma instituição, que aponta para os perigos da centralização dos serviços de assistência e denúncia.
“Na pandemia, as dificuldades para acessar os serviços se agravaram. Muitos foram descontinuados ou pararam de funcionar integralmente. E o desemprego, a vulnerabilidade econômica, ainda impacta na mobilidade das mulheres periféricas, por exemplo, que não conseguem acessar os serviços adequados nos centros das cidades, pois não têm dinheiro para a condução”, indica Pereira.
Gênero, classe e raça: a interseccionalidade da violência
As pesquisadoras argumentam que as intersecções entre gênero, classe social e raça precisam ser levadas em consideração no desenvolvimento de políticas públicas e serviços, principalmente em relação às mulheres mais vulneráveis à violência e que apresentam maior dificuldade para buscar por proteção.
“A concentração dos serviços de atendimento às mulheres nas médias e grandes cidades e, dentro dessas, nos bairros centrais, marginaliza justamente a parcela de mulheres que mais se encontra à mercê da violência”, explica a professora Paola Stuker.
O fator da raça, segundo a pesquisadora Bruna Jaquetto Pereira, é constantemente invisibilizado, o que dificulta o desenvolvimento de políticas mais direcionadas e com maior chance de impacto entre as mulheres negras vulneráveis. Segundo o 15º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 61,8% das vítimas do feminicídio no último ano eram negras.
“Apesar dos dados mostrarem a predominância da violência entre as mulheres negras, são os casos de mulheres brancas que têm mais espaço no noticiário. O racismo está presente em todas as formas de violência e invisibilizar isso é o mesmo que dizer que a vida dessa mulher negra vale menos”, argumenta Pereira.
Quando opressões como sexismo e racismo se relacionam, as violências produzidas se tornam ainda mais destrutivas, segundo Stuker.
“Nossas políticas públicas ainda costumam considerar as mulheres como sujeitos singulares, como se possuíssemos as mesmas experiências e necessidades. Para que de fato seja possível produzir justiça e descontruir diferentes níveis de desigualdades, precisamos de políticas públicas adequadas à pluralidade de mulheres”, pondera a professora.
O ódio ao feminino e o transfeminicídio
Há 15 anos, a Lei Maria da Penha entrou em vigor, representando um avanço do debate sobre a violência contra a mulher. Hoje, além da violência doméstica, a lei contempla a violência psicológica, patrimonial, sexual e moral. Apesar de isso não ser amplamente divulgado, a Lei Maria da Penha também é direcionada às mulheres trans e lésbicas agredidas por suas companheiras.
Para Symmy Larrat, coordenadora de projetos da Casa Neon Cunha e presidenta da Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos (ABGLT), a violência constante na vida de mulheres trans dificulta que elas vejam as delegacias como espaços seguros e de acolhimento, o que as afasta da busca pelas medidas de proteção através da lei.
Para ela, mesmo com a criminalização da LGBTfobia, por meio da Lei de Racismo (7716/89), as chances de penalização dos casos ainda são mínimas.
“A gente está acostumada a sofrer violência. Esses espaços, que teoricamente são para ter acesso a proteção, causam um sentimento de impunidade para a mulher trans. Já fica na mente que não vão reconhecer ela como vítima e a denúncia não vai dar em nada. Isso desmotiva qualquer ação. Sabemos que vamos ser agredidas, então para que ir lá, num lugar em que se você for humilhada não adianta reagir, porque você ainda pode ser presa”, argumenta.
No último ano, Symmy viu a vulnerabilidade de mulheres trans apoiadas pela Casa Neon Cunha, localizada em São Bernardo do Campo (SP), aumentar devido à maior presença delas no mercado informal de trabalho, principalmente na área da prostituição.
“Essas pessoas já estão nas ruas desde a adolescência, quando precisam sair de casa por causa da violência familiar. É uma vulnerabilidade que começa muito cedo. São pessoas que vivenciaram ‘estupros corretivos’ ou exorcismos pela incompreensão do outro. Hoje, ela vai sofrer no ambiente público outras violências porque já está nesse lugar de vulnerabilidade, que torna o corpo trans um corpo matável”.
De acordo com o dossiê anual feito pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), em 2020 foram registrados 175 assassinatos de mulheres transexuais e travestis. O número alcançado no último ano mantém o Brasil no topo do ranking mundial de assassinatos de pessoas trans, posição que ocupa desde 2008, segundo a ONG Transgender Europe (TGEU).
Para Dália Celeste, pesquisadora da Rede de Observatórios da Segurança em Pernambuco e analista na plataforma Fogo Cruzado, tanto o feminicídio como o transfemincídio têm suas origens no mesmo ponto: o ódio e o desprezo ao feminino.
“O Brasil é um dos países mais violentos para identidades femininas. Os números que vemos hoje, pelo menos em relação às mulheres trans, não mostram um aumento, mas evidenciam uma violência que sempre ocorreu. As mulheres trans sempre enfrentaram uma cultura do extermínio. A pandemia agravou um cenário que já existia”, aponta.
Apenas no primeiro semestre de 2021, foram mortas 80 pessoas transexuais, segundo relatório da Antra. A maior parte das vitímas eram mulheres trans e travestis negras.
Deste total, dois casos evidenciam o ódio que cerca a ocorrência do transfeminicídio. Em um deles, uma menina trans de apenas 13 anos, Keron Ravach, foi espancada até a morte, sendo atingida por pauladas, socos, chutes, facadas e pedradas, em janeiro, no Ceará.
O outro é o de Roberta da Silva, de 33 anos, que teve 40% do seu corpo queimado enquanto dormia perto de um terminal de ônibus. Roberta ainda teve um braço amputado enquanto estava na UTI, mas acabou morrendo devido à gravidade dos ferimentos.
Ambas morreram antes de ultrapassar a expectativa de vida de pessoas trans, que é 35 anos. Os principais suspeitos pela violência contra elas são adolescentes.
“Ninguém nasce machista ou transfóbico. As crianças são ensinadas. A transfobia é algo estrutural e, hoje, crianças e adolescentes estão usando a transfobia como um instrumento da violência. O homem não mata uma mulher trans por vergonha do desejo. Eles matam porque não sabem lidar com um corpo que foram ensinados a odiar. O sistema desumaniza esses corpos e promove um processo de higienização. Quando uma mulher trans é assassinada, o que vemos são crimes de ódio. É o ódio realmente exposto”, afirma Dália.
Ela ainda reforça que as mulheres trans e travestis estão privadas dos relacionamentos afetivos, tanto pela trajetória de rompimento familiar como pelas vulnerabilidades que impedem que criem vínculos duradouros, o que explica a ocorrência da violência, em grande parte, no espaço público.
“Quando uma mulher cis é agredida no espaço doméstico, o homem vê poder nessa relação ao esconder isso. Agora, tratando-se das mulheres trans, a agressão é pública porque gera menos comoção de quem está ao redor. A Roberta estava no centro da cidade, em um terminal, e foi queimada vida sem que ninguém fizesse nada”, pondera.
Desmonte de políticas e serviços escassos
De acordo com o relatório do Inesc ‘Um país sufocado – balanço do Orçamento Geral da União‘, dos R$ 120,4 milhões disponíveis para políticas voltadas especificamente para as mulheres em 2020 no Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, foram efetivamente pagos R$ 35,4 milhões, embora tenham sido empenhados – ou seja, valor comprometido, mas não necessariamente gasto – R$ 117,4 milhões, recursos que serão de fato pagos somente em 2021.
Do recurso pago em 2020, mais da metade foi para o pagamento do serviço Ligue 180, canal telefônico
para denúncias de violência, além de R$ 5,8 milhões para pagar pendências de anos anteriores. Vale pontuar que o Ministério recebeu créditos extraordinários, no valor de R$ 137 milhões, para o enfrentamento da Covid-19.
Apesar do aumento da violência contra a mulher na pandemia, o valor circulou pouco pelos programas necessários, que ficaram fechados. As unidades da Casa da Mulher Brasileira, espaço que integra diversos serviços voltados para as mulheres em situação de violência, por exemplo, não funcionaram presencialmente durante a pandemia, somente com atendimento virtual.
Para as pessoas LGBTQIA+, nenhum gasto direto foi realizado em 2020, apesar dos cerca de R$ 800 mil empenhados, segundo análise da Gênero e Número, com base em dados do Portal da Transparência do Governo Federal
“Os serviços não estão funcionando como deveriam e as campanhas não são efetivas. Não existe uma política pública que consiga reforçar as informações, onde estão os serviços. Assim, a subnotificação se faz presente. O Estado só vai ver esse aumento nos números de feminicídios, que são a ocorrência final da trajetória da violência contra a mulher”, explica a pesquisadora Bruna Jaquetto Pereira.
A fragilidade das políticas já era observada antes da pandemia. Um levantamento da Revista AzMina revelou que apenas 7% dos municípios brasileiros possuem delegacias especializadas no atendimento à mulher. Desta forma, uma grande parte das mulheres vítimas da violência ainda precisa buscar atendimento em uma delegacia comum.
“Embora seja possível realizar denúncias de violência contra mulheres em qualquer delegacia de polícia, a inexistência de uma delegacia especializada afeta na motivação e na sensação de proteção e conforto das mulheres para registrarem a ocorrência, bem como, em alguns casos, no próprio acolhimento que é prestado na unidade policial”, aponta a professora Paola Stuker.
Stuker ressalta que o processo de culpabilização da vítima na hora de buscar suporte nas instituições seria um paradoxo que só se faz presente quando essas compõem alguma coletividade desprestigiada na sociedade, como mulheres negras e trans.
“É exatamente esse estigma que determina na sociedade quem são as pessoas que são consideradas dignas de justiça. Quando esse tipo de valor está presente na segurança pública, no sistema de justiça e em outros serviços da rede de proteção, isso determina se essas mulheres serão devidamente acolhidas e protegidas”, argumenta.
A falta de políticas e os problemas para tornar os serviços acessíveis a todas as mulheres vêm sendo observados pela ONG Tamo Juntas, que presta assessoria multidisciplinar e gratuita para mulheres em situação de violência através de uma rede de profissionais voluntárias.
“Recebemos muitas mulheres que já buscaram ajuda e se sentiram desassistidas ou frustradas nesses serviços. É importante que ela seja acolhida, que não sofra outras violências. Esse descrédito na rede de assistência só tende a aumentar com a pandemia”, esclarece Leticia Dias Ferreira, copresidenta da Tamo Juntas.
Letícia reforça que a diminuição do orçamento a cada ano prejudica a estrutura desses serviços, que já não conseguem realizar a busca ativa ou investigar as denúncias.
“A violência doméstica é uma pandemia dentro da pandemia da Covid-19. E vai continuar ocorrendo quando isso acabar. O aumento dos casos mostra o quanto a vida das mulheres está sob ameaça. É urgente o olhar do Estado para isso. O que falta é investimento público e a compreensão da importância de fortalecer uma rede de proteção. O que temos cada vez menos é a vontade política para fazer isso, principalmente para grupos vulneráveis”, afirma.
Busque ajuda:
ONG Tamo Juntas (www.tamojuntas.org.br) – basta acessar, fazer o cadastro e aguardar o contato.
Disque 180 ou acione pelo WhatsApp através do número (61) 99656-5008.
Disque 190.
Mapa das Delegacias da Mulher – AzMina.
https://azmina.com.br/projetos/delegacia-da-mulher/
Aplicativo para celular PenhaS – oferece informações e ferramentas para pedir ajuda (https://azmina.com.br/projetos/penhas/)
Mapa do Acolhimento (https://www.mapadoacolhimento.org/) – rede que conecta mulheres que sofrem ou sofreram violência de gênero a psicólogas e advogadas dispostas a ajudá-las de forma voluntária.