Por Marina Oliveira, assessoria de comunicação do Cimi.
“Quantos governos terão, nas mãos, sangue Kinikinau até que o seu território seja garantido?”. Matias Benno, coordenador do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) – Regional Mato Grosso do Sul, lamenta a morosidade do Estado brasileiro em demarcar a Terra Indígena (TI) Agachi, do povo Kinikinau – expulso há quase cem anos de seu território ancestral pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI).
Desde a primeira assembleia realizada pelos Kinikinau, em 2014, é reivindicado um Grupo de Trabalho (GT) à Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) para a identificação da TI Agachi, em Aquidauana (MS), – conforme parecer favorável emitido pela Coordenação de Identificação e Delimitação da Diretoria de Proteção Territorial da Funai, publicado em abril de 2019. Mas, como o processo segue paralisado, os indígenas Kinikinau precisaram se dividir em vários territórios dos povos Kadiweu e Terena e também em áreas urbanas do estado de Mato Grosso do Sul.
Em razão da dispersão em diferentes territórios e municípios, ainda não se sabe oficialmente quantos Kinikinau compõem o povo. No entanto, integrantes do Cimi Regional Mato Grosso do Sul, junto com famílias Kinikinau, começaram a fazer um levantamento populacional do povo e já identificaram aproximadamente mil pessoas – espalhadas pelos municípios de Bonito, Aquidauana, Miranda, Nioaque, Dois Irmãos do Buriti, Sidrolândia e Campo Grande.
Frei Klenner Antonio, missionário do Cimi Regional Mato Grosso do Sul, explica que o esbulho do território Agachi desencadeou uma série de violências e violações contra os Kinikinau, incluindo a negação histórica de sua existência – muitos dos indígenas tiveram até os seus nomes apagados de registros ou a sua identificação substituída de Kinikinau para Terena.
“Os Kinikinau são criadores de gado e também agricultores. Os Kadiwéu passaram a pressionar a saída dos indígenas Kinikinau com uso de violência, intimidações e humilhações. Já houve situações de assassinatos e de muita pressão contra os Kinikinau e, então, os indígenas passaram a sair da aldeia São João, que fica dentro da Terra Indígena do povo Kadiwéu”, conta Frei Klenner. Devido à forte pressão, os Kinikinau que ainda ficaram dentro do território dos Kadiwéu já não criam mais gado e reduziram as plantações.
“Já houve situações de assassinatos e de muita pressão contra os Kinikinau”
Matias Benno falou sobre esse contexto. “A maior parte dos Kinikinau foi para a aldeia Mãe Terra, dos Terena, em Miranda [MS], e estabeleceu um agrupamento. Eles [Kinikinau] sabem que estão em terras emprestadas, mas agora conseguem viver com um pouco mais de paz”, diz Matias.
“Eles sabem que estão em terras emprestadas, mas agora conseguem viver com um pouco mais de paz”
No entanto, devido ao crescente número de pessoas dentro da pequena área Terena onde os Kinikinau passaram a viver –, que é, inclusive, uma retomada –, os indígenas Kinikinau também já estão sentindo a pressão para deixar o local.
Tentativa de retomada
Para acelerar o processo, os Kinikinau tentaram, em 2019, regressar por conta própria ao seu território tradicional, retomando parte da TI Agachi. Porém, não obtiveram sucesso. Na primeira tentativa, os indígenas estavam com a posse consolidada desde a madrugada do dia 1º de agosto de 2019, e mesmo assim foram alvos de ações truculentas da Polícia Militar (PM) local.
No final do mesmo dia, os policiais realizaram uma operação sem ordem judicial e sem aviso prévio – o que é considerado ilegal. Cerca de 130 homens da PM, apoiados por helicópteros e ônibus escolares, realizaram o despejo de forma violenta, com bombas e tiros de bala de borracha contra mulheres, crianças e idosos.
Esse foi o primeiro episódio de despejo ilegal sofrido pelos povos indígenas do estado de Mato Grosso do Sul, com uso de forças de segurança em defesa de interesses privados.
“Esse foi o primeiro episódio de despejo ilegal sofrido pelos povos indígenas do estado de Mato Grosso do Sul”
Em uma tentativa de fortalecimento, os Kinikinau construíram uma pequena Oca, conhecida como Xiri Xiri (casa do Beija Flor), na aldeia Mãe Terra. Nesse espaço, uma das famílias confeccionam as cerâmicas do povo, ensinam as crianças sobre a cultura e artefatos indígenas Kinikinau.
“Outras formas de fortalecimento ocorrem no grupo de artesãs da aldeia Mãe Terra, onde mulheres Terena e Kinikinau se unem para produção de suas distintas cerâmicas. Além de algumas famílias que produzem suas cerâmicas e artesanatos em suas próprias casas”, explica Frei Klenner.
“Outras formas de fortalecimento ocorrem no grupo de artesãs da aldeia Mãe Terra, onde mulheres Terena e Kinikinau se unem para produção de cerâmicas”
Morosidade
Após tantos anos de espera, um sinal de esperança: em setembro de 2022, o desembargador federal Hélio Nogueira, da 1ª Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF3), determinou que a Funai retomasse, imediatamente, o processo demarcatório das terras ocupadas pelo povo Kinikinau. À época, o juiz estabeleceu prazo de seis meses para elaboração de estudo antropológico de identificação.
Porém, com o limite em março deste ano, a Funai – que até pouco tempo estava sob comando de Marcelo Xavier e aliados – ainda não chegou nem perto de concluir o processo. Na decisão, o magistrado determina que o órgão indigenista oficial respeite “os prazos previstos no Decreto 1.775/96, com apresentação, em juízo, de cronograma de fases necessárias à conclusão da demarcação, sob pena de multa diária de R$50 mil”.
Segundo o TRF3, o Ministério Público Federal (MPF) em Mato Grosso do Sul, iniciou, em 2013, o acompanhamento da instauração e andamento do processo de identificação e demarcação do território tradicionalmente ocupado pelos Kinikinau. Mas, como mencionado anteriormente, o caso não foi priorizado pela Funai até o momento.
“A morosidade do Estado brasileiro em demarcar o território Kinikinau condicionou o povo a viver em uma profunda situação de vulnerabilidade humana, cultural e social em terras alheias. Eles não podem ser quem são, precisam se adaptar aos modos de vida de outros povos. Como todo indígena, os Kinikinau têm sua língua e cultura próprias, o seu jeito de fazer roça e criar os animais. Eles têm também o seu jeito próprio de educar as crianças que, devido à desterrritorialização, não conseguem aprender a língua materna. Nas escolas onde estudam, a língua indígena falada é sempre dos donos dos territórios, Terena ou Kadiwéu”, explica Lídia Farias, missionária do Cimi Regional Mato Grosso do Sul.
“A morosidade do Estado brasileiro em demarcar o território Kinikinau condicionou o povo a viver em uma profunda situação de vulnerabilidade”
“Os Kinikinau precisam de seu território para se reconstruir como povo, fortalecendo os traços tradicionais, um tesouro que o povo vem há mais de cem anos materializando nos coloridos vasos de barro confeccionados pelas ceramistas do povo”, completa a missionária.
Sem demarcação, não há proteção
Sem avanços na demarcação, a violência só cresce contra o povo Kinikinau. Na noite da última terça-feira (7), o indígena Elísio Rosa Veiga – do povo Kinikinau –, de 34 anos, foi assassinado na aldeia São João, no território Kadiwéu, em Bonito (MS). Elísio estava em seu estabelecimento comercial, dentro da aldeia, quando foi surpreendido com quatro disparos de arma de fogo, todos no tórax. Presentes, a esposa e o filho, de apenas 4 anos de idade, também foram ameaçados pelo autor do crime.
Ainda é desconhecido o real motivo do assassinato do indígena, mas a suspeita é de que a motivação tenha a ver com disputa de terras dentro do território. Esse é mais um caso que escancara a falta de interesse e compromisso do Estado brasileiro com a demarcação dos territórios indígenas – resultando em mortes, ameaças e violações de direitos, garantidos pela Constituição Federal de 1988.
“O povo Kinikinau precisa continuar existindo com todos os seus membros. Não dá mais para perder ninguém, não dá mais para esperar. As crianças não podem mais aguentar essa espera. Por isso, pedimos aos governantes e à Funai que concluam imediatamente o procedimento demarcatório para que o povo Kinikinau possa viver em liberdade e paz”, clama Lídia Farias.
—