Violação do sigilo da fonte: atentado ao direito à comunicação

Por Tatiana Stroppa.*

Na terça-feira, 21, o blogueiro Eduardo Guimarães, autor do Blog da Cidadania, foi conduzido coercitivamente para prestar depoimento na Superintendência da Polícia Federal de São Paulo, além de ter computadores e celulares apreendidos por ordem do juiz Sergio Moro, da 13ª Vara Federal de Curitiba, em inquérito que apura o suposto vazamento de informações da 24ª fase da Operação Lava Jato, deflagrada em março de 2016.

Na época, Eduardo Guimarães antecipou informações sobre a condução coercitiva do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e acerca de diligências de busca e apreensão na sede do Instituto Lula.

A Justiça Federal no Paraná, como os membros do Ministério Público Federal, que atuam na Lava Jato, emitiram notas para explicar a situação. Segundo a JF, “Eduardo Guimarães não é jornalista e seu blog destina-se apenas a permitir o exercício de sua própria liberdade de expressão e a veicular propaganda político-partidária”; “não é necessário diploma para ser jornalista, mas também não é suficiente ter um blog para sê-lo” e “a proteção constitucional ao sigilo de fonte protege apenas quem exerce a profissão de jornalista, com ou sem diploma”.

Já a nota do MPF menciona que a investigação pretende descobrir “se informações sigilosas foram repassadas a investigados por Guimarães antes de ele ter publicado em seu blog” e que “portanto, a diligência não foi motivada pela divulgação das informações à sociedade.”

Por outro lado, a defesa de Eduardo Guimarães rebateu defendendo que: “condicionar a qualificação de ‘informação jornalística’ ao conteúdo das manifestações não tem outro nome: é censura” e que “é inquestionável que o fato em apuração (divulgação pública de uma informação) foi praticado no exercício de atividade jornalística”.

Essas defesas remetem a um antigo imbróglio: o da regulamentação da profissão de jornalista. Em junho de 2009, o Supremo Tribunal Federal considerou que não era necessária a exigência do diploma de jornalista e a obrigatoriedade de registro profissional para exercer a profissão.

O ministro Gilmar Mendes entendeu que o artigo 4º, inciso V, do Decreto-Lei 972/1969, baixado durante a ditadura militar, estava em desacordo com a Constituição Federal (CF) de 1988 e que “o jornalismo e a liberdade de expressão são atividades que estão imbricadas por sua própria natureza e não podem ser pensados e tratados de forma separada”. Portanto, com a decisão do STF operou-se a desregulamentação da profissão de jornalista e, dessa forma, fixou-se que qualquer pessoa, mesmo sem o diploma, pode exercer a atividade jornalística.

Liberdade de imprensa x liberdade de expressão

O professor Venício Lima discute uma das questões mais polêmicas do atual debate público das comunicações: as diferenças entre os conceitos de liberdade de expressão e de liberdade de imprensa.

A partir da análise de textos históricos sobre o tema, explica que há uma diferença óbvia entre três palavras que não foi preservada em suas traduções: press (imprensa), print (impressão) e speech (fala). Neste sentido, afirma que a liberdade de imprensa não tem hoje o mesmo significado que tinha na Inglaterra do século XVII em que “the press” era apenas a tipografia onde indivíduos livres para imprimir e divulgar suas ideais estariam mais preparados para o autogoverno.

Diante disso, conclui que faz tempo que a velha “imprensa” se transformou em uma poderosa instituição – na mídia, que é o coletivo dos diferentes meios impressos e eletrônicos – e não tem mais qualquer relação direta com a liberdade individual de expressão dos cidadãos.

Assim, não se pode dizer que no Brasil a construção histórica do sistema de mídia, privatizado, concentrado e oligopolizado, apesar da vedação contida na Constituição Federal, tenha contribuído efetivamente para a formatação de uma comunicação democratizada e de um espaço público participativo.

Por consequência, é inegável a contribuição da evolução digital. Abriram-se novos espaços de interlocução na arena pública, permitindo que vozes que antes não tinham espaço nos meios de comunicação convencionais passassem a ter expressão. O acesso à internet – embora ainda limitado – pode permitir às pessoas assumir uma posição ativa na relação comunicacional ao saírem da posição de receptores da informação e passarem à posição de criadoras de conteúdos, os quais podem ser divulgados de maneira instantânea e com acentuada velocidade de propagação.

Segredo x publicidade

A leitura da Constituição Federal revela a preferência pela publicidade e transparência na política de informações, acessível a todos os cidadãos, que permita o controle da atividade governativa e o acompanhamento do exercício do poder. Esse direito, portanto, somente pode ser restrito quando o sigilo for imprescindível à segurança da sociedade e do Estado, conforme incisos XIV e XXXIII do Art. 5º, Art. 37, e inciso IX do Art. 93.

A ideia era vencer a cultura do sigilo, impondo a divulgação das informações de caráter público que estão sob a guarda e gestão de órgãos e entidades governamentais. O acesso é a regra, e o sigilo, a exceção. Aliás, a existência de uma política de informações totalmente transparente e pública é essencial em uma democracia.

O sigilo da fonte é reguardado, por exemplo, quando necessário ao exercício profissional (Art. 5º, XIV). Mas essa garantia precisa ser interpretada a partir de duas mudanças radicais: a) a retirada da exigência do diploma para o exercício da atividade jornalística; b) a utilização dos potenciais democratizantes que a internet oferece para tornar públicas notícias e críticas.

Nesse cenário, deve-se compreender que o que está constitucionalmente protegido é o exercício da atividade jornalística, e não do jornalista. Em outras palavras, o sigilo da fonte é uma garantia fundamental para o exercício do direito à informação e, por isso, estão protegidas tanto a emissão de notícias como as críticas a elas correlacionadas, independentemente do meio utilizado e da forma de recepção das mensagens.

Entendemos também que o sigilo da fonte, além de permitir a ampliação das possibilidades de recolhimento de informação, é uma verdadeira proteção constitucional para pessoa (informante) que revela os fatos e as informações, permitindo que tragam ao conhecimento público acontecimentos que nunca revelariam se soubessem que poderiam sofrer represálias ou ser sujeitos de responsabilidades perante eventuais denúncias.

Portanto, o sigilo da fonte protege tanto o exercício da atividade jornalística ao permitir que aquele que divulgue as notícias e críticas não seja punido por não revelar a identidade da fonte, como garantia para as pessoas que fornecem as informações sob a condição de não serem identificadas.

É evidente que constitucionalização do sigilo da fonte não isenta aquele que exerce a liberdade de informação jornalística de responsabilidade pelo que divulgue, diante da vedação, também constitucional, do anonimato (Art. 5º, IV). Agora, impossível pretender justificar a quebra do sigilo daqueles que estão exercendo atividade jornalística para que as instituições judiciais, administrativas e policiais consigam sucesso em suas investigações, sob pena de assistirmos ao esvaziamento deste direito, com consequências bastante negativas para a própria sociedade, já que tais relativizações afetam o pluralismo de informações e o conhecimento de assuntos de interesse público sem os quais impossível caracterizar uma sociedade democrática.

É preciso avançar na análise e entender a importância do sigilo da fonte para o exercício da liberdade de informação jornalística que não pode ficar dependendo de qualificações arbitrárias sobre o seu significado e a sua abrangência.

Calar jamais

Em tempos de golpe, ameaças e perseguições a comunicadores populares e jornalistas fazem parte da agenda do retrocesso. Na semana passada, o repórter Caio Barbosa foi demitido do jornal O Dia por exigência do bispo Marcelo Crivella, prefeito do Rio de Janeiro. O prefeito desmente o jornalista em nota que mistura, como é sua prática, política e fé religiosa. A convite do Intervozes, Barbosa vai compartilhar seu relato hoje, às 19h, na Casa Pública (Rua Dona Mariana , 81 – Botafogo – Rio de Janeiro), durante o lançamento do relatório Direito à Comunicação no Brasil 2016. O caso se soma a um cenário sombrio que está sendo denunciado pelo Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação através da campanha Calar Jamais.

***

Nota de esclarecimento da defesa de Eduardo Guimarães

Informamos que o juiz Sérgio Moro acabou de publicar uma decisão por meio da qual reconhece que Eduardo Guimarães é jornalista e, em tom de arrependimento, afirma ser “o caso de rever o posicionamento anterior e melhor delimitar o objeto do processo”.

Como consequência, determinou a exclusão de “qualquer elemento probatório relativo à identificação da fonte de informação”.

Dessa forma, o magistrado voltou atrás e reconheceu a tese alegada pela Defesa desde o início dessa investigação, admitindo ter tomado medidas ilegais.

Após o levantamento do sigilo dos autos, cumpre-nos informar fato extremamente grave. 

Antes de ser conduzido coercitivamente, o jornalista Eduardo Guimarães teve o sigilo de suas ligações telefônicas violado. O magistrado determinou que a operadora de celular informasse seu extrato telefônico, com o objetivo claro de identificar a fonte que teria passado a informação divulgada no blog.

É importante ressaltar que a fonte jornalística foi identificada mediante quebra de sigilo dos extratos telefônicos do Eduardo Guimarães.

Portanto, a decisão não corresponde à realidade ao afirmar que Eduardo “revelou, de pronto, ao ser indagado pela autoridade policial e sem qualquer espécie de coação, quem seria a sua fonte de informação”.

Basta perceber que o próprio juiz Sérgio Moro agora reconhece a ilegalidade das medidas tomadas visando à obtenção prévia da fonte de informação, para concluir que houve nítida coação ilegal no ato de seu depoimento.

Está devidamente comprovado que, na ocasião do depoimento, as autoridades já tinham conhecimento da sua fonte de informação, obtido mediante o emprego de meios que o próprio magistrado agora assume serem ilegais.

Não bastasse tamanha arbitrariedade, a autoridade policial sequer aguardou a chegada deste advogado para iniciar o depoimento.

Assim, é evidente a ilegalidade deste depoimento, cuja anulação será oportunamente requerida pela Defesa, bem como a restituição de todos os equipamentos eletrônicos ilegalmente apreendidos.

Caso se julgue necessário, estaremos à inteira disposição para prestar novos esclarecimentos, pois não há dúvida de que o jornalista Eduardo Guimarães agiu de acordo com a ética de sua profissão.

***

*Tatiana Stroppa é doutoranda em Direito Constitucional, professora e pesquisadora do Centro Universitário de Bauru (ITE).democratizaçã

Foto: Pedro de Oliveira/ ALEP.

Fonte: Intervozes.

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.