Por Maíra Mathias, Outras Saúde.
A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) completa 20 anos neste sábado (26/01) e vive um momento complicado. No fim de dezembro, Jair Bolsonaro, recém-eleito presidente, demonstrou em seu Twitter que não sabe o que a agência faz. Ele escreveu que no seu governo a Anvisa “terá o merecido valor para o desenvolvimento da medicina e outras responsabilidades”, afirmando que um perfil “técnico” ocuparia sua direção.
Durante as eleições, a Anvisa foi condenada por candidatos como o próprio Bolsonaro e Ciro Gomes, sob acusações de corrupção. Ciro chegou a dizer que se sentia tentado a fechar todas as agências reguladoras. Há ainda as costumeiras críticas à morosidade no registro de produtos, algo especialmente comum entre as indústrias reguladas pela agência – elas desejam que novos medicamentos e agrotóxicos, por exemplo, cheguem mais rápido às nossas prateleiras.
No Congresso também há conflitos. Há pouco tempo houve o famoso caso da fosfoetanolamina, a ‘pílula do câncer’. Embora a Anvisa não a tenha liberado – por falta de testes clínicos em humanos –, os parlamentares aprovaram uma lei que autoriza o uso da substância. E, já ameaçada de impeachment, a então presidente Dilma Rousseff a sancionou. O Congresso também aprovou a comercialização de inibidores de apetite que tinham sido proibidos pela Anvisa em 2011, e hoje existe ainda um projeto de decreto legislativo para pôr fim à resolução da agência que controla a comercialização deles.
Hoje, tramita no Congresso o famoso PL do Veneno, que, se aprovado, pode limitar a atuação da Anvisa no processo de avaliação e reavaliação de agrotóxicos – na prática ele ficará a cargo do Ministério da Agricultura.
Afinal, para que serve a Anvisa? A quantas anda seu real poder de regulação? Por que as indústrias e a classe política reclamam tanto? Quais críticas de fato merecem ser feitas? O Outra Saúde conversou com Álvaro Nascimento, pesquisador aposentado da Fiocruz que por muitos anos se dedicou a estudar os mecanismos de regulação da publicidade de medicamentos no Brasil e o modelo regulador adotado pelo país. Nesta entrevista, ele ajuda a entender essas questões.
Álvaro Nascimento, entrevistado por Maíra Mathias
O que a Anvisa faz?
A vigilância sanitária é uma área de ampla atuação, e a agência de vigilância sanitária é quem cuida desse escopo amplo: é sobre alimentos, medicamentos, saneantes, estabelecimentos e serviços de saúde. A agência reflete as exigências que são feitas à área de vigilância sanitária.
Como isso funcionava antes da criação da Anvisa? Havia um órgão responsável pelas atribuições da agência antes dela existir? Fale também sobre o contexto da criação da Anvisa.
Antes da Anvisa havia a Secretaria Nacional de Vigilância Sanitária (SNVS). Quando a agência foi criada, em 1999, um dos problemas que o movimento sanitário via não era a criação em si, mas o fato de que era um modelo pouco discutido no âmbito do SUS. O Sistema já havia feito dez anos em 1998, e a criação da Anvisa foi na verdade uma resposta do governo Fernando Henrique Cardoso a uma questão pontual, que era o crescimento exorbitante da falsificação de medicamentos no Brasil. Isso explodiu em 1999 de tal forma que era preciso dar uma resposta. E a resposta do governo federal, frente à sua completa ineficiência em controlar a produção, e também da própria indústria e do comércio varejista em terem um sistema que assegurasse a qualidade dos medicamentos comercializados no país, foi a criação da Anvisa.
Lembro que até o Inca [Instituto Nacional do Câncer], em licitações públicas, comprando de empresas reconhecidas e com registro, estava recebendo medicamento para câncer de crianças com água. A mortalidade no Inca aumentou estupidamente em um curto espaço de tempo, algo totalmente inesperado, e quando foram investigar viram que uma leva que havia sido comprada de uma distribuidora conhecida tinha água dentro dos medicamentos. No varejo, as denúncias foram surgindo, investigações foram sendo feitas e descobriram que havia um esquema nacional de falsificação de medicamentos, havia casos em todas as regiões.
Nessa conjuntura, a resposta do governo foi criar a Anvisa. Cria esta agência substituindo a Secretaria, e responsabilizou a agência por criar um sistema que evitasse aquele grau de falsificação. Foi feito a toque de caixa, não houve debates no SUS sobre o modelo a ser adotado, sobre como a agência se articularia com a vigilância dos estados.
Mas esse debate já existia na saúde coletiva, no âmbito da Reforma Sanitária?
O debate sobre vigilância sanitária existia, mas não especificamente sobre a criação de uma agência reguladora. E ela passou a ser um fato consumado, inclusive seu modelo. A meu ver, optou-se na época pelo modelo dos EUA. E os problemas apontados em relação à antiga Secretaria não foram superados.
A grande crítica feita à SNVS era que o seu dirigente era enfraquecido, pois era apontado pelo ministro da Saúde e poderiam ser trocados a qualquer hora. Era alguém que, se fizesse efetivamente seu trabalho, poderia cair devido à pressão de deputados, senadores, da própria indústria e do comércio varejista… E o ministro dava uma canetada e o trocava. Isso havia de fato, não era uma crítica vazia. Por exemplo Luis Felipe Moreira Lima e Sueli Rosenfeld [Suely foi diretora da Divisão de Medicamentos entre 1985 e 1987, quando a SNVS era chefiada por Moreira Lima] passaram por isso. A indústria pediu sua saída porque a Secretaria passou a ter uma atuação mais fina no controle de produtos. E, na época, o Roberto Santos, o ministro da Saúde de Sarney, os demitiu.
A Anvisa pretensamente surge mais protegida em relação a isso. Não tem mais um responsável único, mas uma diretoria colegiada. Não são mais indicações do ministro; o Executivo manda os nomes para o Senado, que aprova ou não. Eles estariam assim imunes às pressões políticas. Mas nada disso é verdade. Na realidade, se o Senado é quem aprova o dirigente de todas as agências – e não só da Anvisa – o filtro político já se dá. Se o Executivo mandar o nome de alguém que não seja do interesse da indústria, do comércio varejista, que não seja do interesse do capital, esse nome não passa no Senado. O Executivo já fica constrangido no momento em que indica o nome. Não são poucos os exemplos de nomes que não foram enviados porque não passariam no Senado. Ou seja, essa proteção é um engodo, não existe de fato.
Em outros países, há modelos que ofereçam uma blindagem maior?
A blindagem tem muito a ver com a capacidade de a sociedade ser organizada, e de a democracia funcionar. As empresas farmacêuticas alemãs, inglesas e francesas que atuam aqui no Brasil se submetem, na Europa, a regulações muito mais duras sem reclamar. Na publicidade de medicamentos, por exemplo, na Europa há como prerrogativa a anuência prévia da propaganda. Não se anuncia primeiro na televisão uma propaganda enganosa para, só depois, a agência descobrir, punir e tirar do ar. A Merck e todas essas grandes empresas que estão aqui enviam sua publicidade ao Estado, às agências, que analisam e decidem se ela pode ir ao ar ou não.
Quando propusemos isso aqui, na consulta pública da Anvisa, a indústria esperneou e nos chamou de censores. O que lá se chama anuência prévia, aqui eles chamaram de censura prévia, censura à liberdade de manifestação comercial. A mesma legislação que eles respeitam na Europa, não querem respeitar aqui. A Anvisa desconsiderou nossa proposta, as propagandas enganosas continuam no ar aqui. A própria Anvisa assume que mais de 90% das propagandas são irregulares e ilegais, submetendo a população a risco.
Voltando à questão do modelo. Em minha pesquisa, construí um ‘triângulo da modernidade cínica’ que discute essa questão da indicação dos dirigentes. Um dos vértices do triângulo é o Senado, com 81 senadores, e grande parte sem voto – não tiveram votos da sociedade, mas são suplentes dos eleitos. Esses senadores aprovam os dirigentes de todas as agências. Em outros vértices estão os diretores empossados, que precisam fiscalizar e eventualmente punir a atuação do terceiro vértice, que são os setores regulados. Que variam em cada agência: empresas de petróleo, planos de saúde, indústria farmacêutica. E esses setores regulados sustentam a campanha eleitoral dos senadores que aprovam os nomes.
Ou seja, há conflito de interesses já no cerne do modelo. Quem aprova os dirigentes é financiado pelos setores regulados. Não há dirigente que não seja aprovado a partir dos interesses dos setores regulados. O senador do petróleo, o senador do plano de saúde, o senador do agronegócio, o senador do comércio varejista de alimentos não vão aceitar alguém que regule melhor esse setor, então não aprova este nome. E, além disso, o Senado ainda propõe nomes: “mande ‘fulano’, que nós aprovamos”.
Daí surge o processo de cooptação que é mais grave do que antes, porque antecipa a pressão política. Antes pelo menos o dirigente era removido depois de ter feito algum procedimento que desagradasse ao setor regulado. Agora, ele sequer senta na cadeira, a aprovação já é submetida desde o princípio ao poder do capital. E mais, eles podem ter seus mandatos renovados. Cai na mesma questão de antes. Na medida em que sua atuação seja mais ou menos fiscalizadora e punitiva, não tem seu mandato renovado. Então atuam no sentido de pegar leve. E quem sofre com isso é a sociedade.
Em suma, a criação desse modelo de agência não resolve a principal crítica ao modelo anterior quando diz que, com a criação da agência, os dirigentes têm autonomia. Não, pois só chegam lá com o carimbo dos interesses políticos através do Senado.
Há algum caso que chame a atenção?
Tem um caso de recuo na indicação. O professor Eduardo Costa, da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz, havia sido indicado pelo então presidente Lula e estava se preparando para ser sabatinado. Na véspera à noite, ouviu na Hora do Brasil a notícia de que seu nome havia sido trocado por outro. Ele sequer recebeu um telefonema.
Quando se olha o currículo dos dirigentes das agências, percebe-se a quantidade de conflitos de interesses ali. Essa história de o Bolsonaro dizer que só vai indicar nomes técnicos é uma besteira. Nada impede que sejam nomes técnicos e que representem determinados interesses. Podemos ter um grande dirigente da indústria farmacêutica na direção. Pode até ser um engenheiro químico, técnico, mas que trabalha há 20 ou 30 anos no mercado e que têm seus interesses. Quando sair da agência, vai voltar para lá. E isso no Banco Central, nas agências todas. Podem ter nomes técnicos conhecidos, mas são dirigentes de planos de saúde, de empresas ligadas ao petróleo, de bancos. E depois vão voltar ao setor regulado. Que técnica é essa? Obviamente há uma dimensão técnica, mas também de interesses particulares.
Mas a estrutura de uma agência reguladora não é mais adequada do que a de uma secretaria? Há alguma qualidade nesse modelo?
Eu não quero me somar à indústria que, mesmo comandando todo o processo de agencificação brasileiro, segue reclamando. Não quero me somar ao capital que critica as agências pelo pouco que elas fazem na regulação. Quero me somar a quem critica pelo muito que elas poderiam estar fazendo e não fazem. É verdade que a Anvisa recebe críticas à direita e à esquerda, do setor regulado e da academia.
O setor regulado reclama porque sempre quer mais. Quer ausência total do Estado, quer que o próprio mercado regule tudo. A indústria argumenta que se puser um medicamento podre em circulação, o nome vai ficar sujo a população vai deixar de comprar. O Conar [Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária], por exemplo, era a grande bandeira da indústria farmacêutica no sentido de regular a propaganda de medicamentos. Imagine que regulação o Conar faz? Nenhuma. Fiz um estudo de um ano e vi que o Conar frente a uma avalanche de publicidades falsas, e ao longo desse período ele não tinha tirado nada do ar, mesmo quando demandado por algum órgão da sociedade.
Minha crítica à agência é pelo muito que ela não faz. Pelo tanto que não ouve como deveria ouvir segmentos da sociedade que têm muito a contribuir. E, quando contribuem – profissionais da saúde, academia, o Instituto de Defesa do Consumidor – são desconsiderados. Quanto mais a indústria reclama, mais conquista. A contrário dos outros, que não conquistam o espaço que deveriam conquistar.
Um grande exemplo é o do processo da nova resolução sobre a propaganda de medicamentos. Foi entregue um documento nacional com 19 propostas, assinado por 12 instituições, 146 especialistas. Enviamos 19 propostas para a nova regulamentação na consulta pública aberta pela Anvisa – ninguém enviou tantas proostas, e com tantas assinaturas, como nós. Deixamos o documento na internet, as contribuições chegavam vindas de profissionais de sáude competentes, professores, de consultores do Ministério da Saúde na área do uso racional de medicamentos. Das 19, sabe quantas foram utilizadas pela Anvisa no novo modelo regulador? Nenhuma. E algumas eram apenas reivindicações do cumprimento de leis que já existiam desde os anos 1980, e ainda assim foram ignoradas. Ficou uma importante questão: quem são as pessoas da Anvisa que analisam as propostas que chegam de uma consulta pública? Isso deveria ser público, precisamos saber se há conflito de interesses no grupo que examinou. Mas não, é segredo.
Eu tinha assento na Câmara Técnica de Propaganda da Anvisa, e ela não discutiu em uma reunião sequer o novo modelo, e não foi por falta de protestos. É assim que funciona.
Outro problema: na Câmara técnica, que possui 18 assentos, o setor regulado tinha uma super representação, com 14 assentos. Os consumidores tinham um (com o Idec), a academia tinha dois (com a Abrasco e a Sobravime, Sociedade Brasileira de Vigilância de Medicamentos). O Conselho Federal de Farmácia tinha um. Éramos este pequeno grupo contra 14. E ao se realizar uma consulta pública, era uma desfaçatez desconsiderar as propostas que vinham dos setores organizados da sociedade, como Abrasco, Fiocruz, Idec, Conselho Federal de Farmácia. Para se ter uma ideia do escândalo, o próprio ministro da Saúde na época, José Gomes Temporão, assinou aquele documento com as 19 propostas, como um dos proponentes. A Anvisa desconsiderou solenemente.
Quando eu falo do modelo estadunidense, é este modelo, de conflito de interesses explícito. Ainda assim, fizemos no Brasil coisas que, se você conta nos EUA, uma economia absolutamente liberal onde quase tudo pode, são tidas como risíveis. Por exemplo, houve um presidente da Anvisa, Dirceu Raposo, que recebeu ao fim de sua gestão um prêmio de gestor do ano dado pela indústria farmacêutica, o setor regulado. Isso é concebível? É como o presidente do Banco Central americano receber um prêmio dado pelos bancos que regula. Ele cairia na hora. Como aqui o setor regulado premia quem o fiscaliza e pune? Na época isso foi pesadamente criticado, escrevemos sobre isso, eu mesmo cheguei a escrever numa coluna para o Globo. Ainda assim, a Anvisa colocou esse prêmio no seu site oficial, como se fosse uma grande coisa: “vejam só como nosso diretor presidente tem valor – o setor regulado o considerou o gestor do ano”.
É essa narrativa de colaboração entre regulador e regulado, como se fosse algo positivo, como se não tivesse implicação alguma.
E a gente sabe que não há colaboração, o setor regulado não cumpre a lei, é campeão em propaganda enganosa, por exemplo. A própria Anvisa fez convênio com 14 universidades brasileiras que analisaram anúncios e chegaram à conclusão de que 90% da publicidade farmacêutica brasileira é perigosa, ilegal e promove risco sanitário para a população. A própria Anvisa escreve isso no site dela. Por que o diretor presidente recebe um prêmio da indústria? Porque as multas são irrisórias, a indústria nunca paga, abre processo administrativo, pede perdão da dívida, recebe efetivamente descontos enormes nas multas que precisa pagar. Na minha pesquisa, vi que, em multas por propaganda enganosa, pagava-se menos de 1% do que se gastava com publicidade farmacêutica. E nada impede que o valor dessas multas seja repassado para o preço dos medicamentos, ou seja, que sejam pagos consumidores. Não havia nenhum instrumento. Por quê? Porque a indústria não queria deixar criar. Novamente, não estou com isso querendo acabar com a agência. Só acho que precisa multiplicar por 100 a sua atuação.
A Anvisa tem sido acusada de invadir a competência do Executivo e do Legislativo. Essas críticas procedem? Quais são os limites da atuação da agência?
É claro que a Anvisa não invade essas competências. É o legislativo quem está tentando invadir a competência técnica dela. Quando a Anvisa proíbe agrotóxicos e medicamentos, quando ‘demora’ a analisar o registro de uma nova droga, tem vários aspectos que precisa analisar. Inclusive, no caso dos medicamentos, é preciso analisar se já não há algum medicamento no mercado com a mesma função. Porque um dos instrumentos da indústria farmacêutica para aumentar o preço dos medicamentos é esse: já há um remédio que custe determinado valor, quero aumentar o preço e fazer uma nova estratégia de marketing, então crio outro, equivalente, peço novo registro e cobro três vezes mais. Cabe ao Estado impedir que a sociedade vire refém disso. No site da Sobravime há dezenas de estudos sobre isso.
Não é por falta de registro de produtos que somos o país doente que somos. Temos centenas de medicamentos que são similares a outros. Já fiz uma comparação há alguns anos entre Alemanha e Brasil, e vi que a Alemanha possuía 150 registros de medicamentos que resolviam 100% de suas doenças. Na mesma época, nós no Brasil tínhamos três mil registros.
Ainda sobre a competência do Legislativo: não sei se a bancada da bala, da bíblia e dos agrotóxicos têm capacidade técnica de dizer se inibidores de apetite devem ou não ser permitidos. Têm? É preciso lidar com decisões técnicas. E é para isso que serve a agência. A sociedade contribui com impostos para ter técnicos, estudiosos, fazer consultas públicas, consultar especialistas internacionais, para que se veja como outros países estão se comportando. É razoável que recebamos dezenas de agrotóxicos que já estão proibidos na Europa inteira? Isso pode ser decidido por parlamentares ligados ao agronegócio? Me parece que não. Que competência o Legislativo tem para decidir sobre produtos químicos, sobre produtos recém descobertos, sobre inibidores de apetite que não são comercializados em diversos países pelos riscos que trazem? Nenhuma. Eles são financiados pelos setores regulados, são sustentados pelo grande capital que funciona exclusivamente de acordo com seus interesses. O que fazer se o agronegócio quer aumentar sua produção com base em produtos proibidos no mundo inteiro? Quer aprovar isso por meio do Legislativo, mesmo que isso cause doença e morte às pessoas? Não pode, não pode deixar. Para isso tem Estado.
Existe um risco maior de enfraquecimento da Anvisa no atual governo? Ainda no ano passado o novo ministro da Saúde, Mandetta, disse em entrevista que a Anvisa poderia se basear nos registros concedidos por outras agências, como a FDA, dos Estados Unidos. E isso daria mais celeridade aos registros.
Eu não estudei profundamente isso, mas vejo com maus olhos, pode ser um primeiro passo para a extinção de qualquer iniciativa nossa regulatória. Para que vamos continuar analisando? Tudo o que a FDA ou a EMEA [Agência Europeia de Medicamentos] aprovarem a gente aprova. Sendo que temos dimensões próprias de análise, doenças próprias, nossa terra, nossa água, nossa produção agrícola. A FDA e a EMEA aprovam e a gente tira xerox? Ao contrário do que eles dizem, temos capacidade para fazer essas análises com base na nossa realidade. E isso incomoda. Como consumidor brasileiro, não quero ser submetido a decisões que a FDA toma para os consumidores dos EUA, Estado tem que ter estrutura própria para os proteger com base na nossa realidade.
E no nosso projeto de país…
Óbvio. Por trás da autorização de determinado produto tem pesquisas. E essas pesquisas abrem espaço para novas descobertas inclusive. Novos produtos são descobertos assim. Temos que ter órgãos de fiscalização ligados a pesquisa que produzam isso. Temos profissionais, parque industrial e instituições públicas capazes disso. Vamos abrir mão e carimbar registros da FDA e da EMEA? Por que estamos destinados a esse tipo de subalternidade? Somos um subestado e pretendemos continuar assim para sempre? Por quê? “Ah, porque demora a conceder o registro”. Os EUA também demoram a conceder registros, a média lá não é baixa.
O consumidor americano não consegue comprar sem receita. Aqui o risco está muito mais estabelecido. No Brasil, uso de medicamentos é a segunda maior causa de intoxicação. A cada 40 minutos o SUS registra uma intoxicação causada por medicamento. E fora as que não são registradas. Então isso não é brincadeira. Se não tivéssemos capacidade, vá lá, podíamos nos basear nas outras avaliações. Mas temos. Na verdade a pesquisa brasileira incomoda.
Acredito que o pouco de regulação que se conseguiu instituir está sob risco. Na propaganda de medicamentos, tema que domino, a própria regulação que não contemplou nossas 19 propostas, e que contemplou os interesses da indústria, do comércio varejista, da mídia e das agências de publicidade, mesmo essa regulação é alvo de reclamações do setor regulado o tempo inteiro. Eles não podem se mostrar satisfeitos. Não podem bater palmas, precisam reclamar de alguma coisa mínima. Se não existisse Anvisa nem vigilância sanitária, seria o mundo perfeito para eles.
Pode fazer um balanço do que houve de positivo nesses últimos 20 anos?
O que houve de positivo foi uma conscientização da sociedade sobre a importância da vigilância sanitária. Nessas polêmicas todas travadas com a Anvisa, aumentou muito a quantidade de organizações sociais que passaram a pensar o risco sanitário dos medicamentos, por exemplo. Hoje há muito mais consciência disso.
Apesar de Anvisa ter uma atuação às vezes ao contrário. Por exemplo: a frase que estampa nossas propagandas – “Ao persistirem os sintomas, o médico deverá ser consultado” – só existia, quando implantamos, em um único outro país do mundo: Portugal. Quando digo que o médico deve ser consultado se os sintomas persistirem, estou incorporando que a pessoa já tomou o medicamento por conta própria. Não creio que essa seja a melhor frase para servir de alerta no âmbito do modelo regulador brasileiro. Só falta colocar na frente “Tome primeiro o medicamento”. Isso é frase que se use no sentido de prevenir o uso irracional de medicamentos? A indústria adora esta frase, porque ela estimula o consumo por conta própria. “Tente por si próprio administrar o medicamento que você julgue ser o mais eficaz. Se ele não resolver, se os sintomas persistirem, se você passar mal, se tiver uma intoxicação, então você deve procurar um médico”. Não é uma frase razoável.
A Anvisa contribui para o aumento do risco – ela não trabalha com a prevenção, mas com o aumento do risco quando faz tantas concessões ao setor regulado, este é o ponto. Seu eixo de atuação é o mercado. Lembro de uma conferência em que um dirigente da Anvisa, em sua primeira apresentação na Agência, disse que o objetivo número um da Anvisa era o desenvolvimento do setor regulado. Eu quase levantei da cadeira. Para uma agência reguladora, o primeiro objetivo era desenvolver o setor regulado. Não era superar os problemas identificados pelos índices de morbimortalidade da população brasileira sob responsabilidade do sistema de vigilância sanitária, não era equacionar os problemas ligados, por exemplo, às intoxicações humanas. Era desenvolver o setor regulado. Creio que isso não tem mudado, só piorado. Então por mais que a Anvisa não seja o que deveria ser, avançamos muito na conscientização da sociedade em relação ao que significa risco sanitário. Mas podemos e devemos avançar muito mais no estabelecimento de um sistema de vigilância sanitária que responda às necessidades desta mesma sociedade.
Não quero acabar com a agência, mas ela pode ser muito mais efetiva e eficaz do que tem sido. Se fez muito pouco em relação ao que poderia ter sido feito. Numa escala de um a dez, estamos no dois, quando poderíamos estar no sete ou oito. Não faltam profissionais, estruturas, laboratórios, centros de pesquisa. É uma opção de privilegiar o mercado e não a proteção à saúde. E essa opção é que precisa ser alterada, por mais que a conjuntura seja mais desfavorável. Por isso mesmo não dá para cruzar os braços – se os riscos são maiores, isso requer maior esforço nosso. Felizmente, esses 20 anos colocaram junto à sociedade uma dimensão nova do que significa risco sanitário em relação a consumo e direitos. Não se avançou tanto – mas não porque existe Estado, e sim porque existe pouco Estado.