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Em 7 de abril de 1997, foi promulgada no Brasil a Lei 9.455, que passou a tipificar o crime de tortura, antes considerado pelo Código Penal apenas uma qualificadora. A lei surgiu da comoção de um episódio que ficou conhecido como “Caso da Favela Naval”, em que policiais militares torturavam e intimidavam moradores da região de Diadema. As cenas de violência foram gravadas e transmitidas por jornais de impacto nacional.
À época da aprovação da lei, muitos pontos foram tema de debate. A Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Crueis, Degradantes ou Desumanos, recepcionada em nosso ordenamento por meio do Decreto nº 40, de 15 de fevereiro de 1991, estabelecia como tortura “qualquer ato pelo qual dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais, são infligidos intencionalmente a uma pessoa a fim de obter, dela ou de uma terceira pessoa, informações ou confissões; de castigá-la por ato que ela ou uma terceira pessoa tenha cometido ou seja suspeita de ter cometido; de intimidar ou coagir esta pessoa ou outras pessoas; ou por qualquer motivo baseado em discriminação de qualquer natureza; quando tais dores ou sofrimentos são infligidos por um funcionário público ou outra pessoa no exercício de funções públicas, ou por sua instigação, ou com o seu consentimento ou aquiescência” (art. 1º). A Lei nº 9.455/97, por sua vez, não considerou o crime de tortura como crime próprio – no sentido da prática ser restrita apenas a agentes de Estado, como dispõe a Convenção.
O fato de a legislação não acompanhar a definição da tortura presente nos Tratados Internacionais ratificados pelo Brasil gerou discussões sobre a imposição da seletividade dos casos de tortura que chegariam ao sistema de justiça criminal e como seriam tratados aqueles envolvendo agentes do Estado.
Considerada genérica e pouco efetiva na definição do crime de tortura, especialistas já apontavam os problemas relacionados à eficácia da lei para a devida apuração, investigação e processamento dos casos, sobretudo aqueles envolvendo agentes do Estado. Da forma como foi disposta, a legislação deixaria a critério dos intérpretes da lei – especialmente juízes -, a caracterização do caso como crime de tortura.
Franco (1997), Shecaira (1997), Juricic (2002), Cabette (2006) e Burihan (2008), somente para citar alguns, destacaram que as divergências entre a lei brasileira e as convenções internacionais contra tortura abriram a possibilidade de que qualquer pessoa poderia ser processada segundo essa lei, independentemente de ser ou não agente do Estado, já que a lei ordinária optou por uma classificação do crime como comum, e não como próprio, conforme os tratados internacionais.
Luciano Mariz Maia (2006) destacou que uma das principais consequências da lei da forma como foi promulgada era o grande número de condenação de casos de violência doméstica como crime de tortura, ofuscando, assim, os casos que envolviam propriamente agentes públicos. Anos depois, pesquisas confirmaram essa possibilidade. O estudo “Julgando a Tortura” (2015) demonstra que os agentes públicos acusados por crime de tortura têm mais chance de serem absolvidos do que os não agentes, sobretudo nos tribunais superiores.
A pesquisa indica que a falta de provas e a falta de empenho das instituições de segurança pública e justiça na apuração dos casos envolvendo agentes públicos contribuem para esse resultado. Além disso, há um julgamento entrelaçado ao processo que diz respeito ao perfis das partes envolvidas. Se a vítima é um suspeito ou alguém que estava preso, há uma tendência de juízes e promotores não acreditarem na versão da vítima em detrimento da do agente público. Essa desqualificação impacta na forma como os casos são apurados, processados e julgados.
A falta de empenho das autoridades em apurar denúncias de tortura está presente também nos resultados de outras pesquisas. Recente trabalho publicado pela Conectas, chamado “Tortura blindada” (2017), demonstra que promotores e juízes, inclusive defensores, pouco se preocupam em apurar denúncias de violência policial mencionadas pelos acusados em audiências de custódia. O juiz deixou de perguntar se houve violência em 33% dos casos analisados. Em 91% dos casos, foi o promotor quem deixou de perguntar. Há também uma desqualificação das denúncias.
Outra função institucional necessária à prevenção e ao combate à tortura e que merece cada vez mais atenção é o controle externo da atividade policial, que deve ser exercido pelo Ministério Público, como dispõe o art. 129, VII da Constituição. No entanto, em pesquisa divulgada em dezembro de 2016 intitulada “Ministério Público: guardião da democracia brasileira?”, o Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESEC/UCAM) apurou, dentre Promotores de Justiça e Procuradores da República entrevistados, que a prioridade em suas atuações é o combate à corrupção (62%). Apenas 7% dos entrevistados declararam que o controle externo da atividade policial é sua atual atividade exclusiva, e 24% disseram desempenhá-la em conjunto com outras funções institucionais.
A audiência de custódia pode ser considerada um avanço para a identificação da tortura, apesar dos desafios apontados pela pesquisa da Conectas. Mas, além dessas audiências, tivemos alguns avanços institucionais nos últimos anos, como a aprovação da Lei nº 12.847/2013, que institui o Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, cria o Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura e o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura. Os relatórios produzidos pelo MNPCT apontam e expõem a falência do sistema carcerário, que traz em seu cotidiano práticas de violência institucional que violam a Lei nº 9.455/97 e a Lei de Execução Penal. Relatórios internacionais indicam a criação da lei como avanço necessário, mas ainda há muito o que se fazer para ampliar a atuação destes entes, criar Comitês Estaduais de Prevenção e Combate à Tortura e reforçar a importância de uma atuação direta do Ministério Público em relação ao controle externo da atividade policial, uma de suas funções institucionais.
Há outra questão que merece atenção: o SPT recomenda, desde 2000, que o Brasil assegure a independência dos Institutos Médico-Legais em relação às polícias, a fim de garantir que o exame de corpo de delito não seja acompanhado por um policial, em caso de tortura. Além disso, os protocolos de realização destes exames devem observar o exame de lesões internas, externas e devem prever a investigação de tortura psicológica.
Podemos dizer que nesses 20 anos alguns passos foram dados, o que fortalece a política de prevenção e combate à tortura no Brasil. A lei 9.455/97 pode ser considerada o início dessa jornada, apesar dos problemas identificados em pesquisas quanto à sua aplicação. Talvez o maior desafio esteja na visão das instituições e nos atores responsáveis pela apuração, investigação, processamento e julgamento dos casos de tortura. É preciso mudar a cultura que permeia essas instituições e que tornam a violência policial uma realidade cotidiana.
Carolina Costa Ferreira é Doutora em Direito, Estado e Constituição (UnB) e líder do Grupo de Pesquisa “Criminologia do Enfrentamento” (UniCEUB – DF)
Maria Gorete Marques de Jesus é Doutora em Sociologia e pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência da USP
Referências citadas
BURIHAN, Eduardo Arantes. A Tortura como Crime Próprio. São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2008.
CABETTE, Eduardo Luiz Santos. A definição do crime de tortura no ordenamento jurídico penal brasileiro. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n. 59, 2006.
CALDERONI, V.; JESUS, M.G.M de. (Coord). Julgando a tortura: análise de jurisprudência nos tribunais de justiça do Brasil (2005 – 2010). ACAT-BRASIL/CONECTAS/NEV-USP/IBCCRIM/Pastoral Carceraria. 2015
FRANCO, Alberto Silva. Tortura: breves anotações sobre a Lei 9455/97. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n. 19, p.56-72, jul/set. 1997.
JESUS, Maria Gorete Marques de. O crime de tortura e a justiça criminal: um estudo dos processos de tortura na cidade de São Paulo, São Paulo: IBCCRIM, 2010.
JURICIC, Paulo. Crime de tortura. São Paulo: Juarez de Oliveira. 2002.
LEMGRUBER, Julita; RIBEIRO, Ludmila; MUSUMECI, Leonarda; DUARTE, Thais. Ministério Público: Guardião da democracia brasileira?. Rio de Janeiro: CESeC, 2016.
MAIA, Luciano Mariz. Do Controle Judicial da Tortura Institucional: À luz do direito Internacional dos Direitos Humanos. Recife: Tese (Doutorado), Universidade Federal de Pernambuco, 2006.
SHECAIRA, Sérgio Salomão. Algumas notas sobre a nova Lei de tortura – Lei n. 9455 de 7 de abril de 1997. Boletim IBCCRIM, São Paulo, n.54, maio 1997.
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Fonte: Justificando.