Vila Nossa Senhora de Desterro (SC) sob o olhar de viajantes russos no início do século XIX

Essas expedições retratadas na fonte foram significativas no registro da sociedade da Ilha de Santa Catarina.

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Este artigo é reproduzido pela gentileza dos seus atores/as:

Fred Leite Siqueira Campos, Natália Damasceno e Beatriz Marcondes de Azevedo

RESUMO: Durante os anos de 1803 a 1804, o Almirante Adam Johann von Krusenstern e o comandante Urey Lisiansky foram responsáveis pela primeira circum-navegação russa, durante o processo de exploração do Pacífico que culminou com a ancoração da expedição russa no porto de Desterro. Os relatos escritos por eles a respeito dessa viagem, retratam suas representações sobre a Vila de Nossa Senhora do Desterro. Os relatos revelaram-se multifacetados em expressões de encantamentos, conflitos e ambivalências evidenciados por sentimentos de exaltação das belezas naturais e de aspectos socioeconômicos da região e descritos de maneira romantizadas ou em narrativas científicas assentadas numa ótica ocidental. 

Yuri Fyodorovich Lisyansky (também escritas como Urey Lisiansky) (em russo: ?????????, ???? ?????????), 13 de agosto de 1773 — 6 de março de 1837), foi um oficial na Marinha Imperial Russa e explorador. (https://pt.wikipedia.org/)

Introdução

O século XIX inicia um processo mais sistemático de estudos e pesquisas sobre a flora, fauna, geografia e vida social no Brasil. As facilidades de acesso trazem ao país viajantes que descrevem o ambiente natural e a vida social. Algumas expedições se tornam célebres pelos seus resultados científicos e artísticos. Por exemplo, a expedição russa que trouxe o barão, naturalista, explorador e médico Georg Heinrich Von Langsdorff, acompanhando o almirante russo Johann von Krusenstern em viagem ao redor do mundo, realizada entre 1803 essa contava com dois navios o Nadeshda e o Neva.

Adam Johann von Krusenstern e Urey Lisiansky estavam a serviço do Czar Alexandre I, capitães do Nadeshda e Neva, respectivamente. Esses viajantes saíram da Rússia com a missão de produzir um estudo para os futuros itinerários do Báltico para o Oceano Pacífico, que para a marinha russa era de grande auxílio, pois havia a possibilidade de desenvolver o comércio com a China e o Japão.

Uma expedição possibilita ensinamentos como, por exemplo, a expedição russa. Segundo Fedorova (2011), em seu artigo para a Revista The Journal of Pacific History, tal expedição “enriqueceu a ciência com descobertas e pesquisas que ampliaram ainda mais os limites das ciências naturais e da geografia” (p. 384).

Seus estudos das correntes no sistema oceânico global, fenômenos das marés, densidade relativa, salinidade e temperaturas da água do mar, direção e força dos ventos e luminescência do mar inauguraram o amplo estudo do oceano e se tornaram a base da oceanografia – uma nova ciência composta. Os participantes da expedição estavam à frente de seu tempo em muitos aspectos, suas descobertas ainda agora tendo um valor extraordinário para a hidrometeorologia, o estudo da evolução do clima e a mudança de correntes nos últimos 200 anos.

Krusenstern e Lisiansky navegavam principalmente longe das rotas mapeadas e aspiravam em todos os lugares determinar com precisão a posição do navio e modificar os mapas disponíveis. Onde sua rota coincidiu com a de James Cook, George Vancouver, Jean-François La Pérouse, Etienne Marchand, Joseph-Antoine d’Entrecasteaux e outros marinheiros, Krusenstern sempre comparou os resultados da observação com os dados de seus predecessores e confirmou ou negou suas conclusões. No Oceano Atlântico, Lisiansky comprovou a presença de contrafluxo equatorial.

A primeira circum-navegação russa preencheu os últimos “espaços desconhecidos” na parte norte do Oceano Pacífico. Os relatórios de viagens documentaram áreas não investigadas, portanto, as medições feitas durante a viagem têm um significativo valor para o governo russo e, também os dados de mapeamento da região foi utilizada por outros impérios.

Ao pensar no contexto das expedições científicas do século XIX, é possível compreender que se faz necessária a construção de uma análise sobre a sociedade de Desterro na primeira década do século XIX por meio do olhar estrangeiro. Pressupõe-se que esses relatos têm muito a apresentar sobre a Ilha de Santa Catarina, sua natureza, seus habitantes e seu cotidiano.  Também a partir da análise da historiografia produzida sobre os viajantes, busca-se discutir o olhar dos historiadores sobre eles e quais imagens que construíram ou não sobre Desterro a partir dos escritos dos expedicionários russos.

Metodologia

Neste enfoque, o Império Português criou e disseminou uma imagética de sua colônia para outros impérios europeus. Destaca-se a imagem construída acerca dos indígenas como pessoas gentis e amigáveis, mas que depois foram caçados pelos portugueses e catequizados à força pela igreja católica. O imaginário dos europeus será discutido pela análise do relato de viagem da expedição russa que, segundo a historiadora Mary Louise Pratt, são textos que trazem os discursos euroimperialistas abordando esse tema por meio do poder de construção contínuo e carregado de neutralidade, espontaneidade e repetições (PRATT, 1999, p. 24).

A autora também apresenta o conceito de “zona de contato” que será usado para análise dos relatos de viagens. Aqui o conceito de “zona de contato” pode ser compreendido como sinônimo de fronteira cultural, baseado numa perspectiva expansionista europeia (PRATT, 1999, p. 32). Pratt (1999) destaca as dimensões interativas e improvisadas dos encontros coloniais, pondo em questão como os sujeitos coloniais são constituídos. O conceito de “perspectiva de contato” também vai ser desenvolvido na produção desse trabalho. Visando é claro, uma distinção entre os navegadores russos dos habitantes de Desterro, uma vez que se entende que não se pode aplicar o mesmo tratamento para os dois ambientes.

Numa “perspectiva de contato”, como destaca a autora, tem-se que a questão de como os sujeitos são constituídos nas e pelas suas relações uns com ou outros. Trata às relações entre colonizadores e colonizados, ou viajantes e “visitados”, não em termos de separação ou segregação, mas em termos de presença comum, interação, entendimentos e práticas interligadas, frequentemente dentre de relações radicalmente assimétricas de poder (PRATT, 1999, p. 32).

Assim como Pratt, outra autora que trabalha com relatos de viagem é Leite (1984). Ambas fazem um trabalho de pesquisa que busca apresentar as possibilidades e formas de expressão contidas nesse tipo de fonte. Por meio da análise retórica, o relato de viagem pode ter seus contornos e desdobramentos de acordo com cada atividade de pesquisa e sua análise pode ser realizada por meio do enfoque da História Social. Ao se trabalhar com relato de viagem com o enfoque na história social, propõe-se a discussão sobre os estereótipos culturais e os preconceitos de classe ou questões raciais que são encontrados ao longo da história.

Através dessa variedade de formas, o material extraído da literatura de viagem é praticamente constituído por dois tipos de informação: dados individuais (em descrições de uma pessoa ou situação determinada); dados coletivos: (em descrições ou comparações de agrupamentos, como dados a respeito de relações entre grupos e interpretações de cenas a acontecimento. Cada um desses tipos de dados exige interesse e acuidade de percepção de diferentes graus, bem como uma capacidade de abstração e generalização muito diversa (LEITE, 1984, p. 30).

Roger Chartier, historiador francês / Foto: Adauto Perin

Empregando a análise sociológica e histórica do historiador francês Roger Chartier, ao se estudar um relato específico, é necessário compreender os conceitos de representação, prática e apropriação. Tendo esses conceitos discutidos na obra O Mundo como Representação. Neste texto, Chartier mostra reflexões e abordagens possíveis acerca do discurso das representações e como ele se dissemina nos estudos sobre as diferentes abordagens.

Chartier (1990) articula o conceito de representação social dentro do discurso da História Cultural. Para esse trabalho, a representação social é utilizada como método de enfoque, uma vez que o foco de interesse são os fenômenos humanos de passam a ser conhecidos e explicados a partir de uma perspectiva coletiva.

A história cultural tem como principal objetivo “identificar o modo como em diferentes lugares e momentos uma determinada realidade social é construída, pensada, dada a ler” (CHARTIER, 1990, p. 17). É neste contexto que as representações sociais são inseridas. Suas preocupações envolvem temas como: as atitudes perante a morte, os comportamentos religiosos, as crenças, as formas de sociabilidade, as relações de parentesco, etc. Desta maneira, segundo Chartier (1990), pode-se pensar uma história cultural que “tome por objetivo a compreensão das representações do mundo social, que o descrevem como pensam que ele é ou como gostariam que fosse” (p. 19). As representações do mundo social seriam determinadas pelos interesses dos grupos que as forjam (SANTOS, 2011, p. 34).

Com esse trabalho pretendeu-se contribuir com o conhecimento sobre as representações construídas pelos viajantes russos sobre as condições sociais, econômicas e políticas da Vila de Nossa Senhora do Desterro na primeira década do século XIX. Nos escritos dos viajantes é possível captar como eles observam os elementos culturais dos habitantes, a situação das defesas da Ilha, da economia e do comércio ou da falta dele, em um claro recorte de tempo e espaço. Os viajantes, em seus relatos, construíram imagens sobre como era a vida na Ilha de Santa Catarina dentro da condição de colônia portuguesa.

Os russos em Desterro

Deste período, destacam-se relatos de viajantes, todos incluídos na obra de Paulo Berger, Ilha de Santa Catarina: Relatos de viajantes estrangeiros nos séculos XVIII e XIX. A obra contém 20 relatos de viajantes estrangeiros que atracaram em terras desterrenses entre 1712 e 1828. A primeira edição foi publicada pelo programa editorial do Poder Legislativo do Estado. Na apresentação inicial do livro, o então Presidente da Assembleia Legislativa do Estado de Santa Catarina, Waldomiro Colautti, informa que a impressão faz parte do projeto cultural que foi desenvolvido pelo Estado, da qual a publicação dizia respeito aos interesses da comunidade. Berger foi o responsável pelo levantamento das fontes. É importante assinalar que, ao utilizar esse livro, que contém os relatos de viagens dos viajantes russos, não foi utilizada a versão original dos relatos e nem ocorreu uma verificação em relação à tradução.

Essas expedições retratadas na fonte foram significativas no registro da sociedade da Ilha de Santa Catarina. Da expedição Krusenstern, é de interesse a narrativa da estadia da expedição em Santa Catarina e, de especial interesse para este trabalho. Assim como a narrativa do Capitão Lisiansky, suas percepções salientam sobre a população desterrense, sua breve análise da economia também será debatida, o viajante-autor também oferece um levantamento sobre os habitantes, relatando sobre a condição do escravo e dos índios catarinenses.

A ancoragem na ilha de Santa Catarina, a priori, era para abastecimento de comida, água e madeira. Krusenstern acreditava que em até 10 dias ele conseguiria colocar os navios em ordem. A estadia se tornau permanente quando o capitão Lisiansky informou que o mastro principal e o mastro de proa do Neva estavam em mau estado. O receio do capitão ficou evidente quando em seu relato, Krusenstern destacou que Desterro era desprovida de ofícios básicos, não havia carpinteiros, marceneiros, artesãos. O viajante manifestou que não havia pessoas capazes de satisfazer as necessidades da navegação, que o navio poderia ficar preso na Ilha de Santa Catarina e assim a expedição se arrastaria por meses.

Podemos destacar que ambos os viajantes russos elaboram suas críticas e apontamentos sobre a fragilidade dos fortes, os habitantes descentes de portugueses, e sobre a mão de obra africana escravizada nas ruas de Desterro, além do despreparo da coroa portuguesa que subestima as vantagens que poderia obter das colônias. Krusenstern retrata também os outros viajantes que escreveram sobre suas estadias em Santa Catarina, os ataques de nativos, a questão de exportar mercadorias só para o Rio de Janeiro, o almirante também relata da falta de comerciantes na vila de nossa senhora do Desterro, a pesca de baleia sendo monopolizada pela coroa portuguesa, o comércio ou a falta dele, e como os estrangeiros observavam os moradores que nos relatos são descritos algumas vezes como atenciosos e hospitaleiros.

“De todo o Brasil, a Ilha de Santa Catarina, juntamente com a parte do continente em suas proximidades, é talvez a que menos tem atraído a atenção do governo português, tanto como deveria merecer, em vista de sua localização, seu clima saudável, seu solo fértil, e seus valiosos produtos” (KRUSENSTERN apud BERGER, 1990, p.138).

As defesas na região de Desterro

Cabe observar neste contexto que o litoral da província de Santa Catarina era de significativa importância para os navegadores, pois por sua localização privilegiada, servia de ponto de passagem e parada obrigatória para o abastecimento de navios em trânsito pela costa brasileira em direção à região do Rio da Prata e para os russos para sua viagem ao pacífico. Krusenstern considerava nossas fortalezas insignificantes e achava que o governo português deveria dar mais atenção a esta Ilha. Desterro fica em uma posição estratégica e serve como porto para abastecimento para os viajantes que rumam mais ao sul.

Segundo a narrativa de Lisiansky, a partir do momento que eles se aproximam do forte de Santa Cruz (Fortaleza de Santa Cruz de Anhatomirim), hasteiam-as bandeiras portuguesas em todos os fortes. Da fortaleza de Santa Cruz é possível localizar às Fortalezas de Ponta Grossa (Fortaleza de São José da Ponta Grossa) e de Ratones (Fortaleza de Santo Antônio de Ratones).

Imagem: UFSC.

Dentro deste enfoque, os comentários dos russos sobre os fortes e as fortalezas detalharam a fragilidade dos fortes. Krusenstern comenta que na fortaleza de Santo Antônio de Ratones “pequeno forte de nove canhões na Ilha de Ratones; mas desses nove canhões três somente estavam em condições de operar” (KRUSENSTERN apud BERGER, 1979, p.149). O observatório da expedição foi construído na Ilha de Anhatomirim, o Alm. Krusenstern passou um bom tempo pela Ilha. Ele comentou que contou somente 20 canhões ali, que, em sua maioria, pareciam estar em péssimas condições.

“A Vila de Nossa Senhora do Desterro é ainda menos fortificada: um pequeno forte de oito canhões no ancoradouro, cujos suportes estavam quase todos danificados, constitui sua única defesa (KRUSENSTERN apud BERGER, 1979, p.150).”

Krusenstern considerou que o governo português deveria dar mais atenção a esta ilha, pois,

“De todo o Brasil, a Ilha de Santa Catarina, juntamente com a parte do continente em suas proximidades, é talvez a que menos tem atraído a atenção do governo português, tanto como deveria merecer, em vista de sua localização, seu clima saudável, seu solo fértil, e seus valiosos produtos (KRUSENSTERN apud BERGER, 1979, p.149).”

O viajante ainda comentou que qualquer nação que se empenhasse em conseguir a posse desta colônia, conseguiria fazer de imediato, até mencionou como exemplo a façanha espanhola de 1777, dizendo que ela nem necessitou de maiores armamentos. Estas colocações de Krusenstern permitem especular sobre a condição das fortificações na Ilha. Para o capitão, o despreparo da guarnição, as fortificações sem artilharia refletem a “imbecilidade do governo” (KRUSENSTERN apud BERGER, 1979, p.150).

Também é mencionado por Krusenstern, apresentando como ainda menos fortificado “um pequeno forte de oito canhões no ancoradouro, cujos suportes estavam quase todos danificados constitui sua única defesa” (KRUSENSTERN apud BERGER, 1979, p.150). Esse forte mencionado localiza-se na Vila de Nossa Senhora de Desterro.

O sistema de defesa da Ilha foi implementado no contexto da política de povoamento, a coroa portuguesa tinha interesses na região do Rio da Prata, que pelo tratado de Tordesilhas era da coroa de Castela. Flores (2000) comenta sobre o uso do princípio uti possidetis, que segundo a autora nada menos é de que quem povoa domina.

Nesta conjuntura, a Ilha de Santa Catarina passou a representar a principal prioridade da colonização do Sul brasileiro localizado à beira da Costa entre Rio de Janeiro e embocadura do Prata, era de relevância estratégica. Ela representava, simultaneamente, uma atalaia do domínio português e um estímulo para a concorrência dos estrangeiros (FLORES, 2000, p. 38).

Cabe considerar neste sentido que, proteção às possíveis inovações Desterro tinha o suficiente, no que se dizia respeito à questão estrutural. Mas, isso não quer dizer que tinha guarnição e munição suficiente para aguentar um possível ataque de nações estrangeiras. Levando em consideração que em 1776 aconteceu uma invasão do império espanhol, pode-se inferir que a frota espanhola deveria ter um grande contingente de navios.

Ainda especulando, talvez a corte de Bragança não fez mais pelas suas defesas, deixando de lado a manutenção das mesmas como comenta em 1808, o explorador e navegador russo Vassili Mihailovitch Golovnin, durante sua estadia em Desterro, que a manutenção dos fortes foi deixada de lado, e que eles estavam em um péssimo estado de conservação. Golovnin explicou que até mesmo os canhões não estavam em condições de uso, “foram fundidos no século XVII ou talvez antes e foram completamente abandonados” (GOLOVNIN apud BERGER, 1979, p. 216). Ainda sobre as defesas da capitania, é insatisfatória para os padrões de cidades portuárias. Logo em sua chegada ele deduziu, pela falta de salvas, “é mais provável que não possuíssem pólvora ou então que tivessem tão pouco dela que não desejavam desperdiçar tal preciosidade” (GOLOVNIN apud BERGER, 1979, p. 212).

No forte mencionado por Krusenstern, segundo o viajante, a guarnição era de 500 homens. Em relação a isso, segundo o autor, na fortaleza de Anhatomirim teria uma guarnição de 50 homens segundo Krusenstern (KRUSENSTERN apud BERGER, 1979, p.150). Lisiansky complementou que a força militar consistia em um regimento de soldados de linhas, composto por 1.000 homens e 3.000 milicianos (apud BERGER, 1990, p.163).

A estes fatores cabe salientar que Desterro chegou a ter mais de uma dúzia de construções de defesa, entre fortins, fortalezas e baterias. Essas construções serviam para legitimar o domínio português no atlântico sul. No entanto, esse detalhamento do abandono do sistema de defesa colonial merece destaque. Não se pode esquecer que tais registros, deveriam também seguir as orientações do império russo, além de relatos de viajantes, eram relatórios com informações e conhecimentos que deveriam servir para o império russo analisar e definir seus interesses sobre as regiões visitadas, suas possibilidades comerciais ou possibilidade de expansão de suas conquistas territoriais.

A economia de Desterro

O papel que Desterro tinha para a economia da colônia não era relevante o suficiente para o interesse da Coroa Portuguesa. Essa afirmativa se faz relevante quando se observam as defesas da Ilha que os viajantes russos e outros autores já pontuaram que eram esquecidas pelo Império Português. O porto de Desterro e suas (im)possibilidades são consideradas ao longo dos relatos de viagens. No relato de Krusenstern sobre as relações econômicas entre Desterro e o Rio de Janeiro e o controle do sistema colonial português. Lisiansky (1979, p. 162) lembra em seu relato que todo o comércio com as colônias portuguesas estava limitado a ser conduzido através do Rio de Janeiro,

Krusenstern aponta que o Príncipe Regente era a favor de Desterro se tornar um porto livre, mas colocou uma série de restrições que dificultou o comércio. Sobre essas restrições, a historiadora Mamigonian (2013) aponta que os interesses da coroa portuguesa com o litoral catarinense estavam ligados com a integração da capitania com o circuito atlântico. Se passava de um projeto estratégico de colonização e exploração.

O interesse da corte portuguesa em Desterro concebe-se pela assimilação da qual a localização geográfica da Ilha de Santa Catarina, que é uma velha conhecida dos navegadores europeus no Atlântico Sul. Em Ilha de Santa Catarina: relato de viajantes estrangeiros nos séculos XVIII e XIX é possível visualizar os relatos de viajantes estrangeiros que aportaram à Ilha de Santa Catarina somente entre os anos 1712 a 1828. Inúmeras expedições e viagens se dão pela rota do Atlântico Sul que atravessavam o Cabo de Hornos. O que permite inferir que quando Desterro foi visitada pelas frotas espanholas e ficou sob guarnição da Coroa Espanhola, a Corte Portuguesa se organizou e retomou o controle desse ponto de aprovisionamento e reparos de frotas que buscavam o Pacífico. A Ilha de Santa Catarina, enquanto o Canal do Panamá ainda não existia, Santa Catarina foi um dos pontos estratégicos mais visados do Atlântico Sul.

Todo o processo colonial de ocupação do litoral catarinense foi impulsionado pela corte portuguesa. Controlar o território do Sul da Colônia era importante por causa do Rio da Prata, o escoamento dos minérios e ouro retirados pela corte de Castela, do lado espanhol do continente, eram transportados pelo Rio da Prata, se os portugueses controlassem a passagem poderiam cobrar taxas à coroa espanhola.

O sul contava apenas com a campanha dos bandeirantes, e não era exatamente um projeto de ocupação por si só. Os primeiros indícios de ocupação de portugueses, foram com Francisco Dias Velho no final do século XVII. Essa ocupação inicial portuguesa não ocorreu da forma como deveria ser. Durante o período de Dias Velho na região, um navio corsário que estava nas águas de Canasvieiras foi capturado. Os piratas tiveram sua carga tomada pela Fazenda Real, e eles não gostaram, dois anos depois eles voltam às águas da região e atacam o assentamento construído por Dias Velho. Segundo Flores (2000, p. 37), Dias Velho é morto durante o assalto desses piratas.

Passado esse episódio, a Coroa Portuguesa viu que era necessário dominar a região. O primeiro passo era povoar, pois era fundamental o reconhecimento da Espanha de que essas terras eram portuguesas. Flores (2000) explica o contexto que fez com que a corte estudasse e desenvolvesse a migração em massa de casais portugueses do Arquipélago dos Açores.

Povoar a Ilha não seria tarefa simples. Estimular a transferência da população de outras partes do Brasil era inviável. Com uma grande extensão de terras e muitas oportunidades agrícolas e extrativas, as pessoas não se interessavam por uma região ainda desprovida de atrativos econômicos. O uso de mão-de-obra escrava para servir os interesses políticos e estratégicos da coroa também não seria viável. Um soldado escravo não corresponde à política de povoamento e de economia de abastecimento comercial (FLORES, 2000, p. 38).

Toda a empreitada de ocupação se desenvolveu com a migração de açorianos para perpetuar a mesma cultura de trigo que era conhecida nos Açores. Entretanto, sabe-se que a cultura do trigo não se adaptou nos solos da Santa Catarina. Os açorianos, plantaram mandioca, produzindo farinha que alimentava as tropas portuguesas e as embarcações que passavam.

Entende-se que o projeto colonial português implementado em toda a colônia, incluindo o povoamento da capitania de Desterro, visava garantir o domínio territorial e de seu porto, cuja posição era estratégica nos mares do sul. E o desenvolvimento de sua economia fazia parte desse sistema.

Devido à exploração de ouro nas “Minas Gerais”, Flores (2000, p. 41) assinala que Portugal “experimentava um surto de prosperidade”. A corte portuguesa estava muito bem com as riquezas de sua colônia no ultramar.

Neste sentido, infere-se com base no relato dos viajantes russo, que embora Portugal prosperasse economicamente, graças à colônia, o sistema colonial e suas características representavam fragilidades na economia da ilha catarinense. Pontua-se aqui que os interesses coloniais às pressões voltadas aos empreendimentos agrícolas não deram certo, talvez em função da falta de eficiência econômica em Desterro.

A pesca de baleias

O litoral catarinense no projeto da Coroa Portuguesa foi incorporado à área de exploração da baleia. A exploração de cetáceos fez parte da atividade econômica durante a colônia. A própria instituição de armações de baleias auxiliou na ocupação e povoamento de Desterro, assim como parte da costa meridional brasileira (ZIMMERMANN, 2013, p. 44). A baleia em si fornece inúmeras fontes econômicas, sua carne era salgada e conservada e servia como alimento a longo prazo, a carne seca de baleia. Do animal ainda eram aproveitadas a língua, era uma iguaria e era comercializada com a corte. As barbatanas eram enviadas para e Europa e foram muito utilizadas na confecção de roupas femininas como os espartilhos e as armações de saias.  Os ossos eram usados na construção civil e na produção de móveis. O óleo da baleia serviu, especialmente, para a iluminação dos engenhos, de casas e fortalezas ao preparo de argamassa para as construções. Todas essas propriedades da indústria de óleo e outros derivados do cetáceo ajudaram a desenvolver o litoral da Capitania entre os séculos XVII e XVIII.

Krusenstern no seu relato informa que a pesca era monopólio da coroa portuguesa, e no entendimento do viajante poderia ser um ramo lucrativo e auxiliaria nas despesas da manutenção das tropas e dos oficiais, presume. Mas devido ao empenho do governo português era difícil obter lucros com as armações. Em 1808, quando outra expedição russa atraca em Desterro, o comandante da corveta Diana, Golovnin, menciona que:

Há em Santa Catarina um grande engenho para exploração total das baleias. O direito de pesca foi concedido pelo governo a uma companhia de negociantes e é muito lucrativo. Ao chegar, vimos grande quantidade de baleias quase na entrada da baía. (GOLOVNIN apud BERGER, 1979, p. 217).

Tem-se então por parte do governo garantir que as armações fossem uma vantagem econômica para a província. O viajante Langsdorff aponta que antigamente as armações eram arrendadas a uma sociedade comercial como monopólio e obtinham bons lucros, mas a coroa encampou tudo, o que o naturalista pressupõe que os antigos arrendatários não tivessem mercado para seus produtos ou que o governo esperasse ganhar quantias maiores.

Para compreensão da expansão do comércio de baleias Zimmermann aponta que foi a partir de 1614, que a coroa espanhola decretou a baleia como um peixe real, estabelecendo que a pesca passaria ao monopólio da coroa. As armações, já existentes ou que ainda viriam a surgir, apesar de pertencerem à coroa seriam arrendadas para particulares, que seriam por elas responsáveis, mas não proprietários. Este modelo seria vigente até o fim do século XVIII e início do século XIX.  Os arrendadores das armações foram responsáveis por investir na estrutura, na compra de escravos e na manutenção da ordem. Com o término do arrendamento toda a estrutura deveria ser inventariada e entregue novamente à administração da pesca (ZIMMERMANN, 2013, p. 44-45).

Os negros africanos escravizados na colônia foram responsáveis pela mão de obra das armações de baleia, em 1772, na região da Lagoinha, era um depósito de azeite de baleia produzido principalmente na Armação da Piedade, e tornou-se também uma armação baleeira. Para o trabalho na Armação da Lagoinha, além de alguns trabalhadores livres, eram constantemente comprados escravos na praça do Rio de Janeiro. Estes cativos foram adquiridos pela Administração da Pesca da Baleia (ZIMMERMANN, 2013, p. 47).

Os escravos em Desterro

Durante a estadia dos russos em Desterro, Krusenstern registra que os escravos estavam construindo uma igreja, que na percepção do capitão chamou sua atenção porque “em muitos países católicos, é considerada muito mais importante do que hospitais ou outras edificações úteis” (KRUSENSTERN apud BERGER, 1979, p. 150). A igreja que ele se refere é a Igreja de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito, a igreja dos negros e escravizados:

Eu fiquei muito surpreendido ao ver numa noite por volta das dez horas, quando me dirigia para bordo, diversos escravos negros de ambos os sexos carregando pedras para aquele propósito (construção de igreja); mas minha admiração diminuiu um pouco, quando considerei que a recompensa por esse zelo religioso pertencia menos a eles do que seus senhores” (KRUSENSTERN apud BERGER, 1979, p. 150)

FAED/UDESC

Sobre a relação dos senhores de escravos com seus escravos, Lisiansky menciona os preparativos para a festa de Natal, um evento que tanto os senhores e quanto os escravos participavam. Destaca-se que o viajante não se sente interessado pelo comportamento dos senhores, o que lhe chama a atenção são os negros “de acordo com seus aspectos, reproduziam em mim uma grande diversão, com suas esquisitas danças típicas, onde eram introduzidas ações e gestos característicos, à maneira de suas condutas em batalhas.” (LISIANSKY apud BERGER, 1979, p. 162). O viajante informa ainda que os gestos são de preparo de batalhas, mas não deixa específico que tenha algum referencial com a capoeira ou até mesmo de alguma manifestação religiosa.

Outro viajante que relata sobre os escravos negros em Desterro é o naturalista alemão Langsdorff, que estava viajando junto com os russos. Ele adverte que a quantidade de escravos negros que são encontrados pelas ruas de Desterro é estranha ao olhar dos europeus, principalmente para ele, que diz que sentiu uma revolta especial quando percebeu “um grande número dessas criaturas abandonadas, nuas, deitadas frente às portas das ruas laterais, e oferecidas à venda” (LANGSDORFF apud BERGER, 1979, p. 176).

No que se refere ao relato de Golovnin, viajante que chegou em Desterro em 1808, também de uma expedição russa, nada tinha sobre o que relatar sobre a condição dos negros escravizados ou negros libertos de Desterro.

Cabral (1970), em relação aos escravos, comenta que a quantidade de negros em Santa Catarina era relativamente pequena em relação a outros locais, e que eles eram tratados com bondade pelos seus senhores, e era quase sempre empregado nos serviços domésticos e no carregamento de barcos.

Para atender esta dimensão, Cardoso e Mamigonian (2013) explanam que no mapa da população da Capitania de 1976, 110 ex-escravos, esses libertos residiam na freguesia de Desterro. A condição dos escravos em Desterro era de submissão para a sobrevivência, ou seja, ser escravo era se submeter a castigos, ao trabalho forçado, às constantes ameaças de surras e de mortes. Um escravo negro não era visto como outra coisa senão um escravo negro. A exploração da mão de obra escravizada em Desterro era empregada em “novas categorias socioprofissionais como escravo de roça da casa, feitor, mestre de forno, do engenho etc.” (p. 32).

Cabe salientar que, Cardoso e Mamigonian ainda apresentam ao leitor que a escravidão que predominava nesse universo agrário Desterrense era diferente daquela tida como estritamente “doméstica e “minifundiária” ou, como pontuaram os historiadores Walter Piazza e Oswaldo Cabral, sem importância.  (CARDOSO; MAMIGONIAM, 2013, p. 32).

Fazendo possível uma análise do conteúdo dos relatos com o empreendimento colonial da coroa portuguesa encontra-se em Desterro a pesca de baleias e a cultura da mandioca, que serão observados em sequência. Evidencia-se que houve escravidão em Desterro, que houve sim um comércio de escravos no litoral da capitania e que isso moldou a sociedade de Desterro ao longo do século XIX.

No que diz respeito ao Império Russo, Reis Filho (2003) assinala que nas terras do Czar, o trabalho braçal era realizado essencialmente pelos mujiks (nome destinado aos camponeses da Rússia czarista), a Rússia Imperial do fim do século XIX, era predominantemente agrária, cerca de 85% da população vivia no meio rural. A esse respeito cabe considerar a reflexão do autor sobre a questão da sociedade agrária encontrada na Rússia nesse período:  a pirâmide da sociedade rural russa, composta pelos pomeschtchiki e mujiks.

Os pomeschtchiki eram grandes proprietários de terras de vínculo nobre, que devido à força política e prestígio social, formavam a base social da autocracia czarista. No sul e no oeste do império, esses grandes proprietários conduziam expressivas produções de açúcar de beterraba para exportação, enfatizando a desigualdade e atribuindo à Rússia o título de celeiro da Europa. Já os mujiks, “trabalhavam na terra com os braços e instrumentos rudimentares”; eles eram divididos em biednakis: cerca de 60% da população rural, eram classificados como pobres; batraks: 1,5 milhões de trabalhadores assalariados, sem acesso às terras; seredniakis: considerados “os medianos”, constituíam 22% da população e os kulaks: menos de 19% da população rural. Os kulaks controlavam os demais camponeses, devido aos seus empréstimos de sementes e dinheiro. Embora não pudéssemos chamá-los de ricos, gozavam de certo prestígio social e possuíam alguns privilégios básicos, como oferecer instrução básica à família. Apesar disso, viviam em casinhas apertadas, sem muito conforto e sujeitos a doenças e a passar fome (REIS FILHO, 2003, p. 20).

O sistema de escravidão brasileiro e o regime de servidão russo foram trazidos nessa análise com fins de ajudar a visualizar como era a organização social da mão de obra da colônia, sob domínio do império português, e do império russo. Tanto o sistema de escravidão quanto o regime de servidão russo manifestavam características próprias das sociedades. Existem estatutos sociais próprios dos sistemas escravista e servil que foram descritos ao longo desse trabalho, os viajantes russos conhecem o sistema serviu dos seus conterrâneos, e não souberam reconhecer o sistema de escravidão em Desterro.

Observam-se também, como destaca Zimmermann, que a divisão de tarefas dentro das armações continha trabalhadores livres. “Muito embora, os trabalhadores escravizados realizassem a maioria dos trabalhos na armação, para algumas tarefas especializadas contratavam-se trabalhadores livres mesmo libertos” (ZIMMERMANN, 2013, p. 55).

Como se verifica o exposto entende-se que a economia colonial de Desterro tem por base a escravidão como em outras províncias da colônia. Os escravos foram responsáveis pelas atividades da pesca de baleias, mas também, não menos importante, pela produção de farinha de mandioca.

A agricultura em Desterro

A Capitania de Santa Catarina, segundo os viajantes russos, era mais uma província mal administrada, os viajantes, na medida do possível manifestaram sua crítica em relação ao comércio restrito com o Rio de Janeiro e o quanto isso prejudicava a economia de Desterro:

Os produtos desta terra são muito variados e podem ser usados como fontes inesgotáveis de um rico comércio, se esse não fosse tão limitado e dependente do Rio de Janeiro, pois, os moradores daqui só podem vender seus produtos para esta cidade (LANGSDORFF apud BERGER, 1979, p.177).

Golovnin, que chegou em 1808, apontava que os principais produtos que ele viu na Vila de Nossa Senhora do Desterro eram o arroz e o café. Ele não esquece de pontuar que também se produzia muito açúcar e as verduras e frutas cresciam em grande quantidade. Krusenstern, Lisiansky, Golovnin e Langsdorff mencionaram as diversas provisões que Desterro oferece: melancias, abacaxis, bananas, abóboras, limões, laranjas, rum, água em abundância, algodão, etc. e ainda comentam que o preço era atrativo.

Ao partir deste princípio, um dos principais produtos de Desterro e apontado pelos russos era a mandioca. Lisiansky mencionou que a raiz era um dos principais alimentos dos habitantes e que poderia ser cultivada em toda a extensão do solo fértil de Desterro. Ainda informou que era nutritiva e que na capitania era feito um pão de mandioca, muito mais branco que o pão encontrado na Rússia nem tão saboroso quanto (LISIANSKY apud BERGER, 1979, p.165). Langsdorff segue o mesmo caminho que Lisiansky, mas se aprofunda nos tipos “a espécie mais fina é designada de “tapioca”, um verdadeiro sagu branco; a mais grosseira é chamada de “farinha de pão” e é usada como alimento pelas classes mais modestas e pessoas mais pobres”. (LANGSDORFF apud BERGER, 1979, p.174-175).

Georg Heinrich von Langsdorf ou Grigory Ivanovitch Langsdorf. Com esses nomes o Barão serviu aos governos da Rússia e da Alemanha.

A população de Desterro

Diante do exposto é possível entender como se deu o processo de ocupação da Capitania, e perceber que aquilo que os viajantes encontram aqui é fruto desse processo. Em seus relatos ambos os viajantes trazem dados sobre a população desterrense, tanto em especulações numéricas como de composição; Krusenstern especula que a população seja de 2.000 ou 3.000 portugueses pobres e escravos negros (apud BERGER, 1979, p. 150).

Mais adiante em seu relato, o mesmo autor explica que os seus esforços para obter os dados sobre a população deste governo falharam, mas segundo ele, esses dados devem ser muito insignificantes, já que somente a costa é habitada (KRUSENSTERN apud BERGER, 1979, p. 150).

O outro comandante, Lisianski, faz colocações com diferentes números que diferem de Krusenstern, ele considerou que a população é de 10.142 almas, das quais umas 4000 são negras, mas Lisiansky diz que seus números estão de acordo com a estimativa do governo. (LISIANSKY apud BERGER, 1979, p. 162). Estes dados demonstram que os viajantes não se preocuparam em detalhar a fundo a constituição da sociedade por si, mas é possível observar o registro da presença dos negros.

Ao tomar por referência a obra de Mamigoniam e Vidal, (2013), percebe-se que essas autoras buscaram construir e retirar da invisibilidade, da história de Florianópolis, os negros e a escravidão. Na introdução, observa-se que os vários relatos sobre a formação da Ilha mencionam a presença de negros, mas nenhuma contempla a importância que eles tiveram. Pelos relatos dos viajantes russos é possível compreender que havia negros em Desterro, mas a construção historiográfica tradicional esquece de mencioná-los, o papel social, sua importância na economia é invisibilizado. A população e os trabalhadores da vila de Desterro não eram apenas brancos de origem açoriana, mas também negros. Pelas informações fornecidas pelos viajantes foi possível identificar que os habitantes eram constituídos por um núcleo de portugueses, escravos africanos.

 Em determinado momento é falado sobre os indígenas, no relato de Lisiansky tem-se que “os nativos americanos daqui são tão arredios, que nenhuma correspondência consegue se estabelecer entre eles e os portugueses; para essa razão faz não os via” (LISIANSKY apud BERGER, 1979, p.165). Ainda sobre os indígenas, Flores (2000) pontua que os carijós que viviam na região, foram incessantemente exterminados pela escravidão durante os séculos XVI e XVII.

No relato de Langsdorff, o viajante descreve que os moradores que viviam mais no interior estavam mais expostos aos assaltos nativos da região e dos índios, que eram chamados de “gentio brava”. Segundo o autor, durante a estadia russa em desterro aconteceram assaltos e o governador precisou enviar soldados para averiguar (LANGSDORFF apud BERGER, 1979, p. 175).

Vila do Desterro (Gravura de Gaspar Duche de Vancy – 1785)

Sobre esses assaltos, o comentário de Krusenstern é que o povo estava exposto aos ataques nativos, como aconteceu mesmo durante sua estada em Desterro. Mas que esses ataques não tinham efeitos com quaisquer consequências sangrentas, os nativos se contentavam em pilhar e levar consigo particularmente o gado pertencente aos portugueses (KRUSENSTERN apud BERGER, 1979, p. 151).

As informações contidas em relatos de viagem exploram desde o sentido da observação dos autores, as catalogações, as suas memórias, e os seus próprios interesses com o discurso do texto. Usar os dados escritos por Krusenstern, Lisiansky, Golovnin e Langsdorff para a produção desse artigo vai ao encontro de novas possibilidades de investigação sobre o passado. Conhecer um pouco mais sobre a história de Desterro a partir do recurso desses relatos permite criticá-los também, afinal o relato de viagem é um documento pessoal do autor, por isso para o historiador é necessária uma análise crítica. Mesmo assim, o relato de viagem é um documento de pesquisa histórica, é papel do historiador pesquisar sobre as informações apresentadas e debatê-las com outras fontes.

No que diz respeito às mulheres, Langsdorff se dirige às mesmas como representantes do “belo sexo”, afirmando que:

as representantes do sexo feminino não são feias e entre as mulheres de classes mais altas estão algumas que, mesmo na Europa, teriam motivos para se firmarem como beldades. Na maioria são de estatura média, bem constituídas, de cor castanha (“basané”), se bem que algumas são muito claras, têm fortes de cabelos pretos e olhos escuros e sensuais; acresce-se que o belo sexo recebe com muita gentileza os hóspedes e, em geral, não vive retraído ou confinado como na própria terra natal, Portugal, onde as damas vivem, durante o ano inteiro, enclausuradas, ou se escondem por detrás das portas e espiam o visitante pelo buraco da fechadura ou pela fenda da porta. Tão sem importância que possa parecer da observação, não faltam pequenas intrigas de amor que se espalham aqui. Presentes europeus, mesmo os mais insignificantes, com as fitas, brincos, etc, são gratamente recebidos  (LANGOSDORFF apud BERGER, 1979, p.174).

A primeira leitura desse trecho já dá para levantar os questionamentos sobre como eram representadas as mulheres nos relatos de viagens. Na expedição russa, enquanto nada se tem nos relatos de Krusenstern ou Lisiansky escrito sobre a função social das mulheres, o relato de Langsdorff é repleto de comentários.

Por entender o paralelo levantado pelo autor de que as mulheres da colônia agem de forma diferente das mulheres de Portugal, percebe-se uma conotação de que as mulheres devem seguir um padrão comportamental. O relato ao dar visibilidade para essa comparação, evidencia um distanciamento da cultura europeia na qual diversas mulheres eram obrigadas a uma vida reclusa, de introspecção, no interior dos seus lares e até mesmo na Igreja. E em Desterro elas tinham liberdades.

Em outro momento, mais a frente desse relato, Langsdorff vai ao encontro do senhor Matheus Cardoso Caldeiras, conhecido em Desterro por estudar e colecionar insetos. Logo que Langsdorff encontra-se na propriedade do senhor Matheos, ele comenta:

A esposa, mulher trabalhadeira e muito habilidosa em artes femininas, era diretora de uma escola para moças, que funcionava na própria casa. A minha entrada na sala e observei jovens moças sentadas sobre uma esteira de palha, estendida no chão, onde uma delas tecia e a outra costurava, a terceira bordava, outra soletrava e aprende a ler, outra fazia rendas, enfim, todo e se entretinham, de sorte que o todo me causou uma impressão muito viva e me deu a melhor ideia o trabalho e da atividade dos meus hospedeiros. […] Duas filhas adultas, muito bem educadas, cantaram igual ao meu pedido, umas canções agradáveis e expressivas, se bem que não tocavam o instrumento musical, mas acompanhavam seu canto com uma concha, dentro da qual havia umas pedrinhas, semelhantes às castanholas espanholas e que davam uma cadência com muita graça e simplicidade. (LANGSDORFF apud BERGER, 1979, p. 181-182).

Outrossim, um trecho em específico do relato que chama atenção como um exemplo de uma prática cultural é que em Desterro havia o lava pés, que era o nome do procedimento em que as pessoas lavavam os pés antes de dormir.  E durante a estadia de Langsdorff na casa do senhor Matheos, à noite o viajante russo foi dormir, um escravo trouxe a água morna para lavar os seus pés. Aqui é preciso comentar que é um escravo que leva a água morna até Langsdorff, e assim que o escravo chega com a água morna, Langsdorff coloca os pés na água para que o escravo massageie e lava os pés, e ele comenta que o escravo durante esse processo foi tão delicado que o autor deve reconhecer que tal processo faz para ele um bem incomum, alívio e bem-estar. Mas durante isso, vem na memória do viajante uma colocação do autor Forter, que afirmava que o lava pés era melhor remédio contra os músculos cansados, nisso ele prossegue com a narrativa e começa e dizer que uma massagem nas pernas e nas coxas com as suaves mãos da filha do senhor Matheos seriam melhores ainda.  Langsdorff, confessa que ele teria com muito prazer se sujeitado com essa ideia, de que no lugar desse escravo negro tivesse no lugar a filha do Mateus e o efeito desse lava pés se diferencia por quê o escravo dá para ele e o magnetismo animal. (LANGOSDORFF apud BERGER, 1979, p. 182).

Ressalta-se que no entendimento desse relato de viagem como fonte documental, buscou problematizar o que estava escrito e como estava escrito, logo, destacamos que o viajante destaca as funções consideradas “femininas”. Atribuindo assim, descrições que normatizam as ações das mulheres. Podemos perceber pelo relato de Langsdorff, são funções designadas a partir do sexo.

Isto se caracteriza porque as mulheres eram consideradas como o sexo frágil e a elas também estava resguardada a “função maternal”. Como aponta Franco (2017), a dedicação ao outro – comentário trazendo a informação sobre a escola, mas também é possível entender que as mulheres eram vistas como prestadoras de serviços incondicionais aos filhos, aos maridos, aos doentes, às pessoas que necessitavam. Promovendo também um ideal onde as mulheres são sinônimos da modéstia.

Os levantamentos desse e outros trechos constituem em parte, uma necessidade de expor às representações dos viajantes autores sobre as mulheres. Nem sempre isso é possível num primeiro momento, reconhecer o discurso de gênero, problematizar as representações.

Considerações finais

Ao longo desse artigo pretendeu-se apresentar os relatos dos viajantes da marinha russa, devido ao fato de que no século XIX, o gênero relatos de viagem ajudaram a reproduzir uma narrativa imperialista. Ao analisar relatos de viagens é possível distinguir esse discurso imperialista, bem como compreender as relações políticas tanto do império russo quanto do império português e, assim, desmistificar as imagens estereotipadas de uma parte da colônia.

Os participantes das expedições deixaram descrições importantes para as ciências naturais e para a pesquisa etnográfica e linguística. Notavelmente, o trabalho de Krusenstern, Lisiansky e do naturalista alemão Georg Heinrich von Langsdorff contribuiu de forma inestimável para a descrição da literatura do povo e da cultura dos locais em que a tripulação esteve, uma vez que a expedição científica russa foi a primeira a realizar estudos etnográficos.

Fedorova (2011) relata que na visão do tenente Löwenstern, cada oficial era obrigado, por ordem do Ministério Naval do império russo, a apresentar seu diário ao almirantado e, é graças a essa decisão que é possível conhecer as impressões dos viajantes russos sobre a Ilha de Santa Catarina.

A marinha russa tinha objetivos específicos em sua viagem de exploração, principalmente o estabelecimento de um comércio com a China e o Japão. Os relatos sobre o que encontraram na Ilha de Santa Catarina são hoje objeto de estudo do presente trabalho. Tais relatos permitiram o acesso a informações importantes sobre a vida dos habitantes em Desterro, as impressões que eles tiveram sobre as relações sociais e econômicas com a coroa, as dificuldades da Ilha em si. Desse modo, percebeu-se as coincidências e às discordâncias nas observações em diversos pontos e, consequentemente, foi possível compreender que os focos nos relatos são diferentes para cada viajante-autor.

Por meio de um cruzamento de fontes conseguiu-se pensar em um contexto histórico do relato de viagem, procurando questionar todos os encontros e desencontros da historiografia e, interpretando a veracidade/fidedignidade dos relatos dos viajantes russos sobre Desterro. Ao investigar sobre a circum-navegação russa entrou-se em contato com um tema ainda maior, a colonização russa nas Ilhas Aleutas, e tal fato acabou influenciando a vinda dos russos a Desterro. A aproximação mais significativa foi a conexão entre os impérios russos e português, em um contexto que ambos viam em outros territórios um aproveitamento para lucro da coroa como empreendimento, mas o modo que os dois impérios articulam seus interesses foi colocado como parte do projeto de cada império em específico.

A compreensão que o uso dos relatos de viagens pode ser usado na historiografia se torna cada vez mais pertinente se junto com tais relatos o historiador tiver outros documentos e trabalhos sobre o conteúdo de preferência.

Isto se caracteriza por meio da pesquisa do historiador e como ele pretende seguir com seu método. Aqui, escolheu-se acompanhar os relatos como fontes historiográficas de pesquisadas e, a partir deles chegou-se aos conteúdos de pesquisas elaboradas por historiadores catarinenses. Na busca desses historiadores em escrever uma história que é mais um levantamento sobre informações do que uma problematização das fontes, foi possível concluir que determinados autores, em suas linhas de pesquisa não usufruíram do potencial do relato de viagem. O que foi feito aqui foi contribuir para uma melhor compreensão do contexto historiográfico de Desterro. Assim seria possível um paralelo: às representações russas e os historiadores de suas áreas complementando para melhor entendimento dos assuntos.

O acesso a fonte e os trabalhos da historiografia contemporânea sobre os mais diversos temas sobre a história de Santa Catarina, tal como os estudos sobre as mulheres no sul da Colônia, a participação dos africanos enviados a Capitania como mão de obra escrava e os indígenas permitiu dar visibilidades a esses sujeitos e sua importância para o desenvolvimento histórico-social e econômico da Capitania de Santa Catarina, sua importância no sistema colonial português e uma região de interesse do Império Russo. Finalmente, ao fazer uso do relato de viagem e de sua utilização pela historiografia catarinense foi possível desvelar novas compreensões sobre o passado da Ilha de Santa Catarina.

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LEITE, Mirian Lifchtz Moreira. Livro de viagem: 1803-1900. Rio de janeiro. Ed. da UFRJ, 1997.

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SILVA, Júlio César Lázaro da.&nbsp”História Econômica da Região Sul”; Brasil Escola. Disponível em <https://brasilescola.uol.com.br/brasil/historia-economica-regiao-sul.htm>. Acesso em 10 de junho de 2018.

Keywords: Travel Report; Russian travelers; Desterro; Early 19th Century.

 

 

 

 

 

 

 

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