A historiadora brasileira Daniela Moreau refaz percurso feito pelo fotógrafo francês Edmond Fortier em 1906 pela África do Oeste e registra, além de sua biografia inédita, parte pouco revelada da história da colonização no continente africano
Foi um encontro incrível. De um lado, a historiadora brasileira Daniela Moreau, dona de um currículo invejável. De outro, o fotógrafo francês Edmond Fortier, que morreu desconhecido, apesar de ser o autor de quase cinco mil imagens da África do Oeste no início do século 20, quando a região passava por fortes transformações provocadas pela presença do colonizador europeu.
Fortier viveu entre 1862 e 1928. Nasceu na França, em uma pequena cidade da Alsácia Lorena, anexada ao império alemão quando ele ainda era um menino. Com 20 anos, ao ser obrigado a servir o Exército alemão, ele, que já era contador, mas não se sentia nem um pouco alemão, fugiu para Paris. Nos quatro anos seguintes, enfrentou toda espécie de burocracia para reconquistar sua cidadania francesa. Foi em seu país de origem que ele se casou e teve a primeira de suas duas filhas. Na virada do século 19 para o 20, a família se transfere definitivamente para Dakar, capital do Senegal, provavelmente motivada por questões econômicas.
Daniela, formada pela USP e mestre em Ciências Políticas pela Unicamp, deu uma volta enorme antes de encontrar Fortier. Há mais de 20 anos, um pouco cansada da academia, decidiu investir em outro segmento: artesanato. “Sempre me interessei por peças da Guatemala, do México e do Peru. Fui pesquisando e cheguei ao universo africano das tecelagens, dos adornos. Montei um trabalho de pesquisa com tecelagem artesanal e decidi que eu tinha de conhecer a África.”
Em fevereiro de 1995, Daniela pisou pela primeira vez no continente, na capital de Burkina Faso, Uagadugu, onde acontece um tradicional festival de cinema. Conheceu africanos e teve contato com a obra Amkoullel, o Menino Fula, do malinês Amadou Hampâté Bâ, que narra a história do grupo étnico fulani. Ficou tão impressionada que coordenou a tradução desse livro no Brasil (Palas Athenas, 2003), que já está na terceira edição. “Quando o livro ficou pronto, as pessoas falavam que ia ser difícil entender, por exemplo, o que é uma mesquita na África, feita de adobe, bem diferente do que temos no nosso imaginário, e comecei a investigar. Foi assim que cheguei às primeiras imagens de Fortier.”
A descoberta
Da primeira viagem à África até aqui, foram muitas. Para a França, também. Ninguém sabia nada sobre Edmond Fortier, nem sobre o homem nem sobre o fotógrafo. Foi Daniela quem se encantou por ele, inclusive pelo inacreditável anonimato desse grande fotógrafo que, provavelmente, não teve a menor noção da importância de seus registros que documentam o cotidiano e a cultura da África do Oeste. A pesquisa em torno dele começou há mais de dez anos e resultou no maravilhoso livro Edmond Fortier –Viagem a Timbuktu (Literart), que reúne um conjunto de imagens de excelente qualidade do que foi o século 20 por aquelas regiões. O livro de Daniela tem prefácio do historiador baiano Paulo Fernando de Moraes Farias, seu orientador nesse trabalho.
A pesquisadora focou sua investigação em uma das muitas viagens que Fortier vez pela África. Pelo livro, o leitor é transportado a 1906, quando Fortier, já instalado em Dakar e pai de duas meninas, partiu de lá com destino a Timbuktu. Percorreu cinco mil quilômetros de navio, trem, outros meios de navegação, a pé, de carona, até chegar à cidade histórica, porta do Saara, norte do atual Mali, na época quase intocada pelos europeus. Durante o caminho, que durou uns quatro meses, fotografou muito. “Ele foi um dos primeiros profissionais a fotografar Timbuktu, depois da ocupação francesa em 1894. Djenné, nas margens do rio Bani, a cidade mais antiga de toda a África subsaariana, também foi objeto de seus registros”, diz Daniela.
Não se sabe ao certo como Fortier abandonou a contabilidade, ofício que praticava na França e com o qual se sustentava modestamente, para se dedicar à fotografia. “Havia muitos fotógrafos trabalhando na África porque a fotografia surge com as explorações como suporte documental, cientificista. Provavelmente, começou como amador e depois como fotógrafo itinerante, o que era muito comum. A minha hipótese é que ele tenha entrado em contato com a fotografia na África e, aos poucos, foi deixando de depender do trabalho de contador. Deve ter começado como assistente de algum fotógrafo até se tornar um empreendedor”, afirma a historiadora.
O perfil de Fortier, traçado por ela, indica que ele teve uma vida familiar estável, o que certamente facilitou sua trajetória. Fotógrafo, viajante, aventureiro e dono de si mesmo, o fotógrafo empreendedor imprimia seus cartões-postais na Europa, na cidade francesa de Nancy. O gráfico se chamava Bergeret, um dos fundadores da Escola de Nancy, ponta de lança do Art Nouveau na França. A impressão, como quase tudo naqueles tempos, era uma arte ainda artesanal e cara. No caso, o processo era a colotipia, que permitia rodar algumas centenas de cópias de um mesmo original com uma qualidade rara.
Fortier tinha uma papelaria em Dakar, cidade portuária, onde paravam os navios que cruzavam o Oceano Atlântico. O negócio funcionava perto do porto, ao lado da Agência Central do Correio. Além de seus postais, eram vendidos souveniers variados. Certamente, não foi um tolo comerciante. Suas filhas o ajudaram no negócio até o fim da vida. “Elas se casaram em idade madura apenas depois da morte do pai e não deixaram herdeiros. A mãe morreu antes.”
A história
Apesar de Fortier ter sido resgatado de uma profunda obscuridade por Daniela Moreau, a historiadora vai além da biografia do fotógrafo em sua investigação. A pesquisa é sobre a história da África do Oeste por meio dos registros feitos por Fortier. “Fotografar na África não é fácil ainda hoje por causa da luz, da umidade. Imagina há cem anos. Estive muitas vezes por lá e precisei usar diversas câmeras porque entra areia, emperra tudo.”
A viagem para Timbuktu foi o recorte escolhido por alguns motivos. Além da magia do destino, em 1906 a imposição dos regimes coloniais na África era relativamente recente e o documentarista captou imagens “preciosas” de pessoas comuns, da vida cotidiana, de manifestações culturais e transformações políticas até então pouco, ou nada, conhecidas.
Em uma delas, por exemplo, Fortier aparece, fato raro, em cena montada, mas que diz muito. Nela, o tripé, a cadeira, as bacias para a revelação (ele revelava as fotos pelo caminho porque os filmes não resistiam ao calor), toda a bagagem e ele, o próprio documentarista, sendo transportado por carregadores esfarrapados em uma espécie de maca suspensa, levada por quatro homens, com abrigo para o sol. Nessa foto, que virou cartão-postal, a legenda informa: “Como se viaja na Guiné”. Daniela ressalta: “Como os ricos viajavam na Guiné, o que não era o caso de Fortier”.
Em seguida, ela explica: “Esse é um momento da África do Oeste importante. A França decretou o fim da escravidão nas colônias em 1848. Teoricamente, porque a situação, em 1906, ainda continava igual. Durante a guerra de penetração francesa, os escravos vão sendo libertados, digamos, mas ao mesmo tempo sendo transformados em soldados a serviço dos franceses”. Esse processo, ela diz, gera um “fenômeno maluco”, quando muitos africanos resolvem voltar para casa, pensando que os franceses iriam dar um jeito na situação, arrumando trabalho para eles, mas, infelizmente, não acontece exatamente isso. “Em 1906, quando Fortier passa por esses lugares, está havendo esse êxodo. Por acaso, encontrei imagens que retratam essa realidade. Nessa em que Fortier aparece carregado, na verdade, ele cria uma imagem. Pede a ‘entourage’ emprestada para contar como se viajava na Guiné. Não ele, mas a elite, que se beneficiava desses ex-escravos que não se submetiam à mão de obra forçada nas estradas de ferro.”
Fortier também documentou as ruínas da antiga mesquista de Djenné, templo muçulmano no Mali, construída em adobe no século 13 e que, devido a uma série de guerras e conflitos, acabou sendo arruinada – foram justamente essas imagens, as das ruínas, que Fortier captou. Um ano depois de sua expedição, em 1907, os franceses, seduzidos pela magnitude da obra, decidiram restaurá-la.
Ele tinha ainda um lado documental e registrou mulheres e homens africanos na lida com o algodão e na construção de estradas de ferro, além dos aspectos modernos e urbanos de Bamako e Conakry, capitais do Mali e da Guiné. Possuía, ainda que intuitivamente, forte noção da importância do registro da história, ao fotografar Samori Ture, poderoso guerreiro e fundador de um império que resistiu 15 anos às investidas europeias até ser preso e morrer no exílio. Até hoje, o retrato feito por Fortier de Samori Ture circula por blogs africanos, como o de Che Guevara entre os latinos.
Acima de tudo, Fortier foi um francês apaixonado pela África e por suas mulheres. “Ele era um esteta”, diz Daniela. Por isso fez retratos de moças africanas com os seios à mostra, que representavam o exótico e agradavam aos europeus que chegavam a Dakar. São imagens inéditas recolhidas, documentadas e organizadas pela historiadora por meio desses cartões-postais, comprados por ela durante suas viagens e também pela internet, por preços que variam muito, de menos de 3 euros a 70 euros.
E há outros registros importantes encontrados por Daniela em postais de Fortier, como a mensagem que Oswald de Andrade enviou a Mario de Andrade, na década de 1920, quando passou por Dakar, e a coleção de 40 postais que Pablo Picasso possuía.
O futuro
Toda a pesquisa resultou, além do livro com primorosa edição de Pedro Jezler, em mostra que se encerrou recentemente no Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo. Nela, era possível ver 200 cartões-postais originais e suas ampliações.
Por quase três décadas, Fortier publicou anualmente novas séries de cartões-postais, vendendo-os aos colonos europeus e turistas em sua pequena papelaria no porto de Dakar.
Viajante incansável, ele andou por uma grande extensão do Oeste africano, visitando cem localidades de sete países. Apesar do sucesso comercial, as fotografias de Fortier quase ficaram esquecidas. A historiadora correu atrás dos negativos, mas ainda não os encontrou. Por sorte, conseguiu um registro dos impressos, agora reunidos.
Daniela vive e trabalha em São Paulo, cidade onde fundou e coordena o Acervo África, espaço que disponibiliza, com recursos próprios, uma coleção de mais de duas mil peças da cultura material africana para outras pesquisas, inclusive parte de sua coleção de postais de Fortier, que morreu pobre e sem qualquer reconhecimento até agora. O fato é que ele publicou cerca de um milhão de cartões-postais, que estavam espalhados pelo mundo.
Por meio dessa investigação, Daniela descobriu que Fortier começou sua carreira como um documentarista muito sério, mas acabou relaxando e reeditou imagens com outras legendas. “Por isso peguei a primeira edição, que são as fotografias e os documentos mais confiáveis.” Então, há fotos publicadas em 1928 que foram feitas no fim do século 19, por exemplo, mas só descobertas nessa catalogação.
Depois da Primeira Guerra Mundial, os postais passam a concorrer com outros meios de comunicação, como o telegrama, os telefones e as câmeras fotográficas individuais. Fortier morre em 1928 e a sua papelaria aos poucos vai agonizando.“Ele fez outras viagens pela África, pela Costa do Marfim, pelo Benin até a Nigéria. Para quem gosta da relação África-Brasil, do candomblé, ainda tem muito material a ser pesquisado.”
Para Daniela Moreau, o continente africano é o futuro. “A gente ainda vê o desmonte dessas ditaduras horrorosas colocadas pelos europeus. Mas, pouco a pouco, alguns países estão conseguindo sair dessa situação. Agora, a briga é entre os franceses, os americanos e os chineses, que não estão de brincadeira. O Níger, por exemplo, é o país mais pobre do mundo. Em compensação de onde vem o urânio que abastece as usinas nucleares francesas? De lá. Paris é iluminada com usinas atômicas, que é opção francesa, com o urânio pronto, o yellow cake, que chega da África. A parte mais contaminante da manipulação desse material é feita em solo africano. A pergunta, então, é: pode a energia da França vir do país mais pobre do mundo há mais de 50 anos? Esse é um processo lento, doloroso. Enquanto isso, precisamos falar da África, de outras coisas da África, porque ela é o futuro.”
—
Fonte: Brasileiros