Véspera de Páscoa na ferrugem dos esperançosos. Por Carlos Weinman.

Imagem: Pixabay.

Por Carlos Weinman, para Desacato. info.

A nossa morada é o lugar que costumamos chamar de casa, um abrigo, um refúgio, o lugar que denominamos de lar. A grande questão que surge é onde encontramos essa fortaleza do nosso ser e como garantir a sua permanência. Dado que a vida é, como afirmou Heráclito, um devir, a mudança constante. Por isso, não existem garantias suficientes para que os alicerces continuem firmes.

Durante a jornada dos viajantes, a questão é qual o fundamento dessa grande dádiva, o lugar em que existem os sentimentos de segurança, de amor, de solidariedade, o forte do nosso ser. Ocorre que muitos viajantes esquecem da jornada e fundam seu alicerce não nas pessoas, passam acreditar que o alicerce de muitos bens dará essa segurança, porém, esquecem que a condição humana revela o ser e o caminho como passagem, não há garantias, a não ser a morte e o ciclo da vida. Infelizmente, o engano, ou como diria o filósofo inglês Thomas Hobbes, o absurdo constitui uma capacidade exclusivamente humana, pois muitos viajantes não vivem mais a viagem, se apagam no universo das buscas intermináveis por várias formas de poder, ganhar, vencer, mas no final  todos perdem, visto que a grande morada deveria ser o  planeta terra, os lugares que percorremos, mas a história que os humanos constroem para si  não é bem assim, são poucos os lugares durante uma vida que tem as condições necessárias para designar, nomear como lar.

Na história de Inaiê, Ulisses e Roberto, o mundo se apresentava como uma necessidade de buscar, não há uma casa, com paredes, um alicerce físico, mas os três desenvolveram um sentimento intenso de família, a ferrugem dos esperançosos é apenas o lugar em que passaram a socializar e viver sua existência. Como era de esperar, no lar as experiências e os sentimentos acabam sendo partilhados, mas a morada anterior, as vivências não são esquecidas, fazem parte dos seres de cada um. Essas experiências trazem marcas para alma, foram essas marcas que despertam Ulisses, que acordou na madrugada e não mais conseguiu dormir. Enquanto Roberto e Inaiê dormiam, levantou para fazer o café, para começar cedo, a água começou a borbulhar e o cheiro de café contaminou o ambiente, foi o que despertou Inaiê, que ao virar para lado viu o deslumbrante fenômeno do nascer do sol, o dia começara bem. Todavia, viu seu irmão contemplativo, como se fosse chorar. Então, resolveu levantar, alguns minutos depois foi conversar com o Ulisses e o questionou:

O que foi Ulisses? Seus pensamentos parecem divagar para muito longe.

Nesse momento uma lágrima surgiu no rosto de Ulisses. Seu espírito fora invadido por um intenso sentimento de saudade, seu semblante parecia trazer o passado e o presente ao mesmo tempo. Ulisses demorou para falar, ficaram os dois irmãos, um olhando para o outro, até que Ulisses encontrou forças para responder:

Hoje é véspera de Páscoa, uma memória antiga de nossa família surgiu em meu espírito. Nossos pais não tinham muitas condições, mas era um momento que tínhamos um feriado para aproveitar a presença de cada um, ninguém era mais importante, a ausência de um era suficiente para estragar o momento. Você era pequena, ficava com os nossos pais, enquanto os demais iam jogar bola, em um campo improvisando, às vezes a bola atingia as rosas de nossa mãe, ela ficava furiosa, mas no fim tudo acabava bem. Esse dia era importante para nós, não por ser uma data essencialmente cristã ou por movimentar todo o comércio, ganhar presentes, pois não tínhamos muitas condições, mas era um dia que passaríamos juntos, jogando futebol, confraternizando. Esse era o nosso lar, as paredes da casa de madeira, sem pintura, demostravam a falta de recursos financeiros. Em contrapartida, o amor que unia era intenso, tornava o lugar o melhor de todos. Esses momentos são inesquecíveis, cada um de nós tinha uma tarefa para auxiliar, a minha era alimentar os cães, meu irmão Kauê deveria varrer o terreiro com uma vassoura feita de guanxuma. O dia da Páscoa era celebrado, como uma presença de pessoas que não queriam que o momento acabasse. Nossa mãe era muito religiosa, mas sua fé fazia sentido quando a celebração, que sempre participávamos, dizia que a solidariedade e amor era o que importava. Essa parte é que lembro, o restante do ritual, não importava muito, pois queríamos era brincar, fazer o churrasco. O almoço de domingo fazia sentido pelo fato de estarmos juntos. Essa saudade contamina meu ser, pois gostaria que toda nossa família estivesse reunida.  

Inaiê diante do relato do irmão ficou emocionada, não tinha lembranças daquele momento, pois era pequena quando seus pais os deixaram, sentiu a vontade de ter vivido mais com eles, de ter aquela morada e a segurança para si. Ela queria sentir o abraço, a presença dos irmãos, o lar é feito por pessoas envolvidas em um sentimento de solidariedade e de amor recíproco. Inaiê começou a pensar se seus irmãos desconhecidos seriam receptivos, pois a família é muito mais que um elo de sangue, é uma formação de um grupo social, envolvidos em um sentimento de pertencimento, de desejo de encontrar e confraternizar, de pensar atividades para estar juntos. Inaiê externou para o irmão o seu receio. Diante disso Ulisses acalmou a irmã:

Todos eles são mais velhos que você, provavelmente não passe um só dia que não pensem onde estamos, se estamos vivos.

Roberto havia ouvido a conversa dos irmãos, pegou uma xícara de café e disse:

Vocês tem uma história, o humano é o resultado de várias escolhas, algumas pertencem a nós, já outras são escolhas de pessoas que estão a nossa volta, temos, ainda,  as coisas que se apresentam para nós, que aquilo que não podemos escolher. A diferença é como que vamos encarar as dificuldades, a situação social que vivemos, os determinismos da natureza. A família, o lar têm um princípio da segurança, que por mais estranho que pareça está alicerçado na liberdade, no o desejo e na escolha de estar juntos. Para mim, é isso que compõem um lar, uma fortaleza. Sem a liberdade, não há solidariedade e muito menos o sentimento de amor, apenas a prisão de um ser que tenta dominar o outro. A família de vocês sofreu com as questões financeiras, mas escolheram viver e lutar juntos. Isso era a fortaleza de vocês e, no meu modo de ver, continua, pois estão buscando encontrar uns aos outros, em um universo de estranheza. Veja Inaiê, era um bebê, agora está buscando suas raízes, mas para ela tudo é novo.

Quando Roberto terminou de falar, Ulisses com entusiasmo disse:

Vamos guardar as nossas coisas e começar o nosso dia! Vamos encontrar o nosso lar, a nossa fortaleza. Por ora, a ferrugem dos esperançosos é o lugar de nossa família, pois você Roberto é como um irmão para nós.

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Carlos Weinman é graduado em Filosofia pela Universidade do Oeste de Santa Catarina (2000) com direito ao magistério em sociologia e mestrado em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Maria (2003), pós-graduado Lato Sensu em Gestão da Comunicação pela universidade do Oeste de Santa Catarina. Atualmente é professor da Universidade do Oeste de Santa Catarina. Tem experiência na área de Filosofia e Sociologia com ênfase em Ética, atuando principalmente nos seguintes temas: Estado, política, cidadania, ética, moralidade, religião e direito, moralidade e liberdade.

A opinião do autor/a não necessariamente representa a opinião de Desacato.info.

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