Por Natália Pesciotta.
Como acontece a cada quatro anos, em 1º de janeiro bancadas de homens, na maioria brancos, tomam posse nas câmaras de todos os municípios brasileiros. Mas, em algumas delas, pela primeira vez uma mulher negra estará ocupando um assento. Já é alguma coisa diante dos dados pouco animadores levantados pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc): as mulheres estão apenas em 9,2% das vagas de vereança nas capitais brasileiras, enquanto as mulheres negras, para piorar, são apenas uma a cada 25 vereadores das capitais.
Difícil comparar os números com as legislaturas anteriores, pois esta é a primeira eleição municipal em que o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) cadastrou a autodeclaração de cor dos candidatos, prática que começou em 2014. Mas no pleito deste ano já chamou atenção que, em meio a uma onda conservadora nacional e internacional, algumas candidatas negras tenham desafiado os baixos índices de representação feminina e negra com número avassalador de votos.
Áurea Carolina e Talíria Petrone, ambas do Psol, foram as mais votadas em Belo Horizonte e Niterói, apontando lutas sociais, feministas e anti-racistas como prioridades dos seus mandatos. A pergunta que muitos se fizeram foi: Como?
“Para conquistar espaços de poder, é preciso ter organização e enfrentar um contexto de arrancada de setores contrários aos avanços sociais. É enfrentar muitas barreiras o tempo todo. Mas me fortaleci e tenho fortalecido com o encorajamento de outras parceiras, que também acreditam que essa é uma escolha necessária, para que estas lutas tenham espaço de voz e influência no poder público. É um compromisso de vida.”
Áurea Carolina, cientista social e vereadora eleita mais votada em Belo Horizonte, pelo Psol
.“Apesar de olhar para o parlamento e não ter referências de gente como a gente ali, temos olhado para nossa experiência na cidade e visto necessidade de estar naquele espaço, sim.”
Talíria Petrone, historiadora, educadora e vereadora eleita mais votada pelo Psol em Niterói (RJ), cidade que terá uma negra na Câmara pela primeira vez
CABO DE GUERRA
“É um momento difícil em que sofremos desmonte das políticas de promoção da igualdade racial, para mulheres, de cultura, de juventude”, analisa a própria Áurea, campeã de votos em Belo Horizonte. “No entanto, as lutas permanecem vivas e colocadas na cena pública, resistindo a todos ataques”, continua a cientista social, que surgiu como rapper na cidade e coordenou área estadual de promoção da igualdade racial. Ela cita as recentes ocupações de estudantes e ações de mulheres contra a cultura do estupro, para explicar: “Minha eleição é uma demonstração de como esse campo da resistência tem se projetado. Vivemos neste paradoxo muito difícil entre o avanço do conservadorismo, por um lado, e a nossa resistência muito forte”.
A historiadora e educadora carioca Talíria Petrone, por sua vez, cogita a possibilidade do conservadorismo ter avançado justamente por conta das crescentes conquistas de espaços por negros, mulheres, pobres e periféricos. “Saímos do armário! Assumimos nossos cabelos, nossos corpos, nossos lugares. Saímos da senzala. E tentam nos colocar de novo lá”, explica. Do topo da lista de eleitos para a Câmara de Niterói (RJ), ela avisa logo que não vai soltar esta corda tensionada pelos dois lados: “Estamos na resistência desde que saímos dos navios negreiros. E, por mais que o outro campo avance, continuaremos resistindo”.
Foi mais ou menos o que pensou Ana Nice (PT), ao também se eleger a primeira mulher negra na Câmara de sua cidade, São Bernardo do Campo (SP). “O que encorajou minha candidatura foi justamente o fato de, desde 1948, nós termos conseguido eleger apenas seis mulheres na bancada municipal. Precisávamos de representatividade”, afirma a metalúrgica e historiadora, retirante de Espinosa (MG) e coordenadora da área de Igualdade Racial no Sindicato dos Metalúrgicos do ABC. Ela analisa a vitória: “Quando falamos em negros e negras no meio político, a gente tem oportunidade de sonhar e achar que é possível. Acho que fui eleita também por pessoas que viram esta perspectiva”.
“O espaço público sempre foi dos homens, enquanto as mulheres ficaram restritas ao espaço privado. Até o voto feminino é recente no Brasil, de 1932. Chegar na Câmara como única mulher é um retrato dessa sociedade machista, racista e conservadora”.
Ana Nice, metalúrgica, historiadora e coordenadora licenciada da comissão de Igualdade Racial do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC. Primeira vereadora negra eleita em São Bernardo do Campo (SP), pelo PT.
“O sistema quer você trabalhador, filho de operário. Mas vi outras meninas estudando pelo Prouni e resolvi prestar Enem. Agora a filha de um pedreiro é vereadora. Entrei no mundo político em busca de igualdade. Quando não era minha mãe alvo de violência doméstica, eram as vizinhas. “
Taynara Faria, estudante de Direito, aos 20 anos foi a mulher mais votada em Araraquara (SP) pelo PT e será a primeira negra na câmara da cidade
ZUMBI DOS PALMARES E CULTURA AFROBRASILEIRA NAS ESCOLAS
A primeira vez que a sindicalista Ana Nice subiu na plenária da Câmara de São Bernardo, antes de eleita, foi para defender o feriado da Consciência Negra numa audiência. “É importante reconhecer Zumbi dos Palmares como líder negro, herói brasileiro. E contrapor ao 13 de maio, dia da ‘falsa’ libertação dos escravos”, sustenta. Todas as vereadoras negras eleitas ouvidas pela UNE veem o feriado municipal de 20 de novembro com importância máxima para o reconhecimento da contribuição negra na formação nacional, sem contar o marco na luta por igualdade.
Além desta reivindicação regional, elas apontam a necessidade de, como vereadoras, cobrarem que o ensino de história e cultura africana sejam efetivados nos municípios, como determina lei nacional de 2003. “É um dos meios até para a gente se ver de outra forma, saber qual a contribuição que o povo negro tem ao longo da história, não só do Brasil. Isso pode melhorar a autoestima das crianças e jovens negros”, reflete Ana Nice.
Talíria, que é professora de história, diz ter sentido na pele a falta de formação em história africana: “Minimizei esse deficit por fora da educação formal”. Ela também vê, no dia a dia das escolas, muita falta de estímulo para que os estudantes negros reconheçam sua identidade: “A história das etnias não está representada nem nos materiais didáticos. A escola não fala do jovem negro, o trata como se fosse invisível”. Pelo contrário, ela acha que a escola deveria ser “lugar de criar novas referências, de valorizar a mulher negra, de mostrar para os estudantes que os negros são uma população excluída, mas resistente”..
“Ser negra, oriunda de um bairro popular, ser mulher, militante feminista e anti-racista, me traz muitas responsabilidades. Quero dar visibilidade para os movimentos sociais de combate ao racismo”
Nildma Ribeiro, gestora ambiental graduada em Serviço Social, assessora da Fetag (Federação dos Trabalhadores e Trabalhadoras na Agricultura), é a primeira vereadora negra eleita em Vitória da Conquista (BA), pelo PCdoB.
Nildma Ribeiro (PCdoB), primeira vereadora negra eleita em Vitória da Conquista (BA), concorda: “A luta pela igualdade de direitos e oportunidades são constantes e a escola é uma instituição privilegiada, na medida que cabe a ela construir a consciência crítica e cidadã. No Brasil, as diferenças são sempre invisibilizadas. Portanto, é necessário que a escola seja espaço de combate das desigualdades”.
Enquanto o ensino ainda caminha para ser emancipatório de fato, todas elas ressaltam grande preocupação com o projeto Escola Sem Partido, entre outros retrocessos que rondam a educação nos municípios, como a retirada da discussão de gênero nas escolas feita por diversas Câmaras Municipais. “Certamente a identidade negra não teria chance de centralidade com este projeto Escola Sem Partido”, enfatiza Talíria.
COMO BANDEIRAS VIRAM PRÁTICAS
Eleitas como minorias, as vereadoras negras progressistas que assumem em janeiro já pensam em como traduzir para condutas legislativas as bandeiras humanistas, feministas e anti-racistas que defenderam para as cidades. E, claro, como farão para lidar com câmaras bastante adversas.
“Precisamos fazer pressão no Orçamento, promover audiências públicas para denunciar injustiças sociais e até mesmo sessões especiais para garantir visibilidade ao povo negro”, enumera Marta Rodrigues (PT), eleita para seu terceiro mandato em Salvador. Ela lembra de uma sessão marcante em homenagem à Mãe Menininha do Gantois, no seu mandato anterior: “Foi um momento bonito, mas também de combate à intolerância religiosa”.
Talíria, de Niterói, explica que o poder legislativo pode promover desde campanhas de combate ao racismo até políticas de formação para os profissionais da guarda civil ou da saúde, para estimular o respeito à população negra. Ela fala também em rodas com as populações específicas para ouvir as demandas e compreender quais políticas públicas são necessárias.
Sobre o contexto adverso para a atuação delas, Áurea pesa: “Sei que na Câmara, em configuração que predomina presença de homens, brancos, conservadores, que não tem relação com lutas sociais, nossa atuação vai ser difícil. Por outro lado, estamos com essa cidade pulsante. A perspectiva é que nossos mandatos, meu e da Cida Falabela [também eleita pelo Psol em Belo Horizonte], sejam também espaços de reflexão, de mobilização popular, para que essa resistência seja ampliada”..
“Há bastantes candidatos negros, mas poucos eleitos. É preciso tratar de reforma política de forma séria, com financiamento público de campanha. Assim, vamos equiparar a disputa eleitoral. Ressalte-se que votar negro
não é apenas votar em negros, mas em representantes da política racial”
Marta Rodrigues, ex-professora de Ensino Médio, formada em Letras, presidenta do PT municipal de Salvador e eleita para o terceiro mandato na cidade. Há apenas 4 mulheres negras a cada 100 parlamentares das capitais
O trabalho delas é também para que estejam cada vez menos sós. Marta resume: “Não pode ser normal que em relação a homicídios e população carcerária a maioria seja negra e, nos espaços de decisão, de poder, de formadores de opinião, a maioria seja branca. Tem alguma coisa errada nisso e precisamos mudar”. Ainda que veja os entraves, ela coloca as fichas na via institucional: “Vamos encontrando algumas adversidades que nos fazem repensar, nem por isso me intimidei. Tenho em mim algo muito claro: devemos persistir no caminho da política, não podemos negá-la”.
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Fonte: UNE.