Dia 16/10, a organização israelense Yazkern reuniu vários soldados israelenses veteranos da “Guerra de Independência” de Israel, em 1948, para examinar a que aquela luta realmente levou[1]. Os veteranos confirmaram o que só pode ser descrito como esforço consciente de limpeza étnica – a destruição sistemática de vilas palestinas inteiras e inúmeros massacres.
O objetivo do esforço de Yazkern para reconstituir a verdade é quebrar a “narrativa nacionalista dominante” expurgada, sobre 1948, e a negação automática, também dominante em Israel, de qualquer legítima contranarrativa palestina. Filme documentário dirigido pela jornalista russo-israelense Lia Tarachansky[2], que trata desse assunto, a Nakba, Catástrofe Palestina, está em processo de finalização. O filme também traz depoimentos de soldados israelense da guerra de 1948.
Essas revelações que começam a sair à luz confirmam, por sua vez, o que têm dito os “novos historiadores” israelenses, como Ilan Pappe, que publicaram livros, a partir de documentos de arquivos do governo de Israel, em que mostram que, mesmo antes de se iniciarem as hostilidades que levaram à criação do Estado de Israel, as autoridades sionistas planejaram a limpeza étnica, na Palestina, da maior quantidade possível de não judeus.
OK, poderá dizer alguém, os israelenses tiveram comportamento selvagem em 1948 – e só uma pequena minoria de israelenses admitirá que sim –, mas e depois da “Guerra de Independência”? Como hoje se começa a saber, a limpeza étnica jamais parou. Convenientemente, a tática de negar que jamais tenha começado ajudou a esconder o fato de que prossegue até hoje.
Ainda essa semana, tivemos notícias de que o ministro da Defesa de Israel Ehud Barak ordenou a demolição de oito vilas palestinas[3], onde residem 1.500 pessoas, ao sul das colinas de Hebron. O pretexto de Barak, dessa vez, foi que a terra é necessária para treinamento militar.
Segundo os “novos historiadores”, é comportamento padrão do governo de Israel, para ocultar a limpeza étnica. Acontecerá que, sim, por alguns anos, o exército israelense usará a área das vilas demolidas. Em seguida, quase inevitavelmente, o ‘campo de treinamento’ dará lugar a um novo projeto imobiliário, de colonização, exclusivo para israelenses.
Dia 20/10, a rede Al-Jazeera noticiou[4], baseada em documentos israelenses, que, entre 2008 e 2010, o exército israelense controlou a entrada de alimentos na Faixa de Gaza, seguindo um cálculo de dieta mínima, de modo a manter sempre um ponto antes do estado de desnutrição, a população de 1,5 milhão de palestinos.
Segundo o Gisha Legal Center for Freedom of Movement [Centro Gisha Legal pela Liberdade de Ir e Vir], organização israelense de direitos humanos, “a meta oficial da política de ‘dieta mínima’ é fazer guerra econômica que paralise a economia de Gaza e, segundo o Ministério da Defesa de Israel, pressionar o governo do Hamás.” Essa prática selvagem começou, de fato, antes de 2008.
Ainda em 2006, Dov Weissglass, então conselheiro do primeiro-ministro Ariel Sharon, já dizia que “a ideia é pôr ‘em dieta’ os palestinos, não matá-los de fome.” Claro, há precedentes dessa tática, também usada contra os judeus europeus nos anos 1930s e 1940s. Deve-se assumir que Weissglass sabia disso.
Contudo, como nos episódios da barbárie durante a “Guerra da Independência”, também nesse caso há uma bem azeitada prática de negar a história, em Israel, em termos nacionais. Segundo Gideon Levy, no Haaretz, “o país tem inúmeros meios (…) para esconder os esqueletos no armário, de modo a que não perturbem abertamente os cidadãos.”[5]
Os militares autores do documento que converteu a idéia monstruosa de Weissglass em prática selvagem, operaram num país em que a cegueira é cultivada. Ainda hoje, o atual governo de Israel não tem qualquer motivo de preocupação com o risco de que surja ali algum mal-estar geral, quanto ao fato de que os israelenses estão lenta, mas incessantemente, destruindo o sistema de esgoto e tratamento de água de Gaza, de modo a tornar a água inservível para beber.
São atos de crueldade que fazem prova de selvageria. Por exemplo: os funcionários da alfândega israelense confiscaram as folhas de prova, em outubro de 2012, destinadas às escolas da Cisjordânia[6]; eram exames que os alunos esperavam poder fazer, para concluir o curso colegial, indispensáveis para que possam chegar à universidade.
AMIDEAST, a organização que aplica as provas escolares nos Territórios Palestinos, tomou todos os necessários cuidados para que as autoridades israelenses recebessem as folhas de prova com semanas de antecedência e pudessem distribuí-las às escolas. Mas, no que parece ser ato de crueldade, os funcionários da alfândega israelense confiscaram as provas e não as distribuíram a tempo; e a AMIDEAST teve de cancelar as provas finais.
A pergunta óbvia, veio de um observador local: “o que têm os testes escolares a ver com a segurança de Israel?” É possível que passe pela cabeça pervertida do israelense encarregado da alfândega, que seria ato patriótico impedir que mais palestinos estudem nos Territórios Palestinos, porque, assim, menos serão as testemunhas qualificadas que conhecerão a opressão israelense.
Do lado de Gaza, no mesmo quadro, os EUA tiveram de cancelar, há alguns dias, um pequeno programa de bolsas escolares para alunos de Gaza[7], porque as autoridades israelenses negaram-se a autorizar a saída dos alunos beneficiários, da prisão a céu aberto em que vivem, mesmo que, apenas, para ir só até uma escola na Cisjordânia. (Aos interessados em acompanhar o dia a dia dos atos de opressão a que Israel submete os palestinos, acompanhados diariamente, recomendo a página Today In Palestine, em http://www.imemc.org/article/64461.)
Desafio e negação
Dado o que Israel continua a fazer, o apoio público com o qual o país contava nos EUA começa afinal a desaparecer.
Recentemente, 15 destacados líderes religiosos[8], representantes de vários grupos cristãos, enviaram Carta Aberta ao Congresso dos EUA, exigindo “imediata investigação sobre violações, por Israel, da lei de assistência a países estrangeiros dos EUA [orig. U.S. Foreign Assistance Act] e à lei norte-americana que regula a exportação de armas [orig. U.S. Arms Export Control Act] as quais, respectivamente, proíbem que os EUA prestem assistência a país que dê mostra de prática consistente de violações de direitos humanos:
“Exigimos que o Congresso inicie investigações para examinar a situação de Israel nos termos dessas duas leis. E exigimos que Israel seja chamada a prestar contas de atos relacionados ao disposto nessas duas leis, no sentido de obediência ao que aquelas leis dispõem.”
Até o momento, o Congresso continua a fazer-se de surdo, mas a reação dos sionistas[9] fez-se ouvir imediatamente, alta e clara. À testa, apareceu, como sempre, Abraham Foxman, presidente da chamada muito inadequadamente “Liga Anti-Difamação” [orig. Anti-Defamation League (ADL). Acusou os líderes cristãos de “espantosa falta de sensibilidade”. É caso de perguntar-se quanta sensibilidade se exige para negar água potável e comida suficiente a milhões de pessoas e impedir estudantes de fazer provas na escola! Foxman optou por castigar os clérigos atrevidos: declarou que não participaria do “diálogo inter-fés” contemporâneo.
Ter cérebro avantajado é espada de dois gumes para os seres humanos. Implica que podemos pensar todos os tipos de pensamento criativo; podemos até controlar em boa medida nossos impulsos menos recomendáveis, se, pelo menos, tentarmos; mas significa também que podemos ser manipulados para nem tentar controlá-los; para crer que não precisamos tentar – que somos vítimas… mesmo quando somos os opressores; e a acreditar que qualquer crítica contra nossas ações sempre será, sempre, mais uma prova de o quanto somos vítimas perseguidas.
A cultura israelense – e, de fato, a cultura do sionismo em geral – é projeto em curso de automanipulação para alcançar exatamente esse estado mental. E, em grande parte, é projeto bem-sucedido. Pesquisa recente[10], feita em Israel, mostra que “uma maioria do público [judeus israelenses] deseja que prossiga a discriminação contra os palestinos (…) o que revela o racismo profundamente enraizado na sociedade de Israel.”
Os sionistas não são os únicos especialistas em negar fatos. Os EUA, principal aliado de Israel, também se tem mostrado muito bom nessa especialidade. Depois dos ataques do 11/9, qualquer consideração à possibilidade de que a política exterior dos EUA para o Oriente Médio ter ajudado a motivar e disseminar o terrorismo passou a ser anátema – e ainda é. Mais de uma década depois.
Em vez de nos debruçarmos sobre nosso comportamento, os EUA simplesmente aumentamos nossa capacidade de matar, sem discussão, quem quer que desafie, em armas, nossas políticas. Temos respondido com assassinatos premeditados contra alvos predefinidos, usando os drones ou outros tipos de armas: os EUA já estamos copiando a selvageria israelense.
Maquiavel, que sempre se deve ouvir, quando se trata de ver o lado mais obscuro das coisas, disse que “Quem queira perscrutar o futuro deve consultar o passado; porque os eventos humanos assemelham-se sempre. Isso se deve a que eventos humanos são produzidos por seres humanos que sempre foram e sempre serão animados pelas mesmas paixões; por isso, necessariamente, sempre levam aos mesmos resultados.” Mas… será, mesmo, inevitável?
[1] Em http://www.middleeastmonitor.com/news/middle-east/4462-israeli-army-veterans-admit-role-in-massacres-of-palestinians-in-1948
[2] Em http://972mag.com/between-anger-and-denial-israeli-collective-memory-and-the-nakba/57822/
[3] Em http://rt.com/news/israel-demolish-palestinian-west-860/
[4] Em http://www.aljazeera.com/news/middleeast/2012/10/20121017115529845399.html
[5] Em http://www.haaretz.com/opinion/for-some-israelis-gazans-receive-2-279-calories-too-many.premium-1.471214
[6] Em http://www.thecrimson.com/article/2012/10/16/israel-sat-oped/
[7] Em http://www.salon.com/2012/10/15/us_cancels_scholarships_for_gaza_strip_students/
[8] Em http://www.redressonline.com/2012/10/us-church-leaders-question-open-ended-israel-aid/
[9] Em http://www.redressonline.com/2012/10/us-church-leaders-question-open-ended-israel-aid/
[10] Em http://972mag.com/poll-israelis-support-discrimination-against-arabs-embrace-the-term-apartheid/58258/
Fonte: Consortium News
Tradução: Vila Vudu