Ver, é ter desejado


Por Míriam Santini de Abreu.

O vento desta noite cheira a tempestade. Um domingo inquieto. Tudo porque ontem vi um filme cujo nome me tomou de assalto na locadora: “Nostalgia” (1983), de Andrei Tarkovski. Concluo que as prateleiras de “Clássicos” ou “Coleções”, raras na maioria das locadoras, são como buracos negros. Engolem a nossa luz, mas temos o privilégio de saber o que ela ilumina lá dentro. Foi assim com “Nostalgia”, de um diretor sobre o qual eu nunca havia lido.
Li um livro, “Blink”, que fala sobre o encontro de algo que se busca, por muito tempo, e se encontra, às vezes, “num piscar de olhos”, por intuição. É porque o olho foi treinado, a mão ficou mandona. O filme “O Óleo de Lorenzo” mostra isso. O pai só compreende o sonho que tem e que salva a vida do filho porque, meses a fio, comprometeu-se com a busca da cura. A resposta veio como num “piscar de olhos”, mas não. O piscar de olhos é a faísca, o lampejo, que acende tudo, mas porque havia matéria acumulada, só esperando a faísca para a energia se expandir.
Se em dezembro passado eu não tivesse buscado respostas que procurava, “Nostalgia” talvez tivesse outro significado, ou nem sequer teria sido retirado da prateleira na qual me esperava, ao lado de Bergman, Fellini, Antonioni. Mas a matéria acumulada se expandiu porque eu ali vi o que estava desejando ver.
Um poeta russo, no norte da Itália, busca acumular matéria para escrever sobre um músico de seu país. O que o move na busca é o que move todos os viventes: dar um sentido ao intangível. A solitária busca de cada um.
Há uma cena em que o escritor vê uma menina, Angela, e conta a ela a história de um homem que parecia se afogar em uma poça profunda. Outro homem o vê e quase morre para salvá-lo. Exaustos os dois, na beira da poça, o que foi tirado da poça pergunta ao outro homem:
– Estás bem? Por que fizeste isso? Tolo, eu vivo ali!
Naquele úmido lugar na Itália, o poeta encontra Domenico, que todos consideram louco. Domenico vive em uma casa onde chove ou goteja por todos os lados. Mas, para mim, foi um assombro a cena em que o escritor entra na casa de Domenico. Ele busca uma determinada resposta. Caminha ao longo da casa, onde ervas entram janela adentro e se enroscam na paredes. Num canto da casa, encontra um espelho, se mira no velho objeto, e, conforme a câmera se aproxima, ele lentamente baixa o rosto, que vemos também refletido no espelho.
Quando, em dezembro passado, visitei a casa de meu bisavô, fiz esse mesmo movimento, de querer me ver fotografada no velho espelho de uma penteadeira. E em uma outra casa, tão velha quanto a de meu bisavô, próxima da dele e na qual ele também morou por algum tempo, agora repleta de coisas enroscadas e cheias de pó, coisas que mal pude identificar, me fascinaram os buracos e rachaduras por onde a luz entrava – e certamente a chuva – e as ervas que cresciam janelas adentro e ao longo da escada que levava ao sótão.
A cena de “Nostalgia” era tão parecida com aquela vivida por mim que várias vezes voltei a ela no laptop. Fiz, do instante em que poeta passa na frente da janela e encontra o espelho, um “PrintScreen” no Word e no Photoshop. Queria guardar as duas cenas, e gravei ambas. Mas, depois de entregar o filme na locadora, abri os arquivos e vi apenas uma tela azul-escura. Certamente o “PrintScreen” só funciona com o filme no drive, mas fiquei a pensar não nas artimanhas tecnológicas, e sim na impossibilidade de capturar um instante do qual, pela sensação que nos provoca, dele não se deseja sair.
Encontrei a cena mencionada no You Tube, esse estranho e fascinante repositório de instantes, e na abertura deste texto estão as fotografias que menciono, o espelho e a velha casa cheia de aberturas para luz e água.
Vi em “Nostalgia” o que, em mim, já havia desejado ver. É assim. Num “piscar de olhos”, a gente compreende algo talvez ínfimo e aparentemente tolo, mas capaz, por sua intensa luz, de iluminar, mesmo que por um momento, o nosso buraco negro.

A cena do Espelho:

http://www.youtube.com/watch?v=YGrNus738Dw&feature=related

A gotejante morada de Domenico:

http://www.youtube.com/watch?v=kyc9w8tYmM0&feature=related

Foto: Miriam Santini de Abreu.

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